No último programa da sétima temporada do TSL, o entrevistado de Darico Nobar é o protagonista de Quarup, romance mais famoso de Antonio Callado.
Darico Nobar: Boa noite, galera do Talk Show Literário!
Plateia: Booooooa nooooooite.
Darico Nobar: Se vocês já estão animados, quero ver quando eu anunciar que vamos conversar hoje com um rapaz talhado para a vida eclesiástica. Protagonista do romance "Quarup", ele nasceu em Pernambuco, é um dos sacerdotes católicos mais respeitados do país e acredita em tudo aquilo que aprendeu na Bíblia e prega aos fiéis. Por favor, suba ao palco, Padre Nando!
[As luzes do auditório acendem de repente e focam no jovem de cabelo bem cortado vestindo batina negra que está sentado na primeira fila. Ele parece surpreendido com o chamamento e, principalmente, com os indecorosos feixes luminosos sob o rosto. Envergonhado, Padre Fernando, que estava enrolando um cigarro de aspecto duvidoso, coloca tudo no bolso, se levanta correndo e vai até o apresentador. Os dois se cumprimentam com um abraço afetuoso e sentam-se nos respectivos assentos].
Darico Nobar: É um prazer recebê-lo em nosso programa, Nando.
Padre Fernando: O prazer é sempre meu.
Darico Nobar: Gostaria de começar nosso bate-papo sabendo da sua vontade de viver entre os índios do Posto Capitão Vasconcelos, no Xingu. Por que esse desejo de se enfurnar no meio da mata, hein?
Padre Fernando: Em geral as pessoas acham que o nosso país é o Rio de Janeiro, São Paulo, as cidades barrocas de Minas e as praias do Nordeste. Alguns se arriscam até o rio Amazonas.
Darico Nobar: E para onde deveriam ir?
Padre Fernando: Eu por mim acho que para pegar o espírito do Brasil e as raízes de sua vocação no mundo o roteiro seria outro. [Coloca a mão no bolso da batina e tira, além do cigarro suspeito, uma calcinha minúscula e vermelha. Sem se abalar, guarda os itens indesejados rapidamente. Após remexer o bolso mais um pouco, encontra um lenço branco e um frasco cilíndrico de metal, que são colocados em cima da mesa do apresentador]. Pouquíssimos brasileiros o fazem e daí a confusão em que vivemos. Eu considero a ida ao centro do Brasil onde vivem os índios em estado selvagem, mais importante, muito mais importante do que conhecer o Rio ou São Paulo. [Encharca o pano com o líquido do frasco]. E considero a mudança para o Xingu mais importante do que viver em Olinda, Bahia, Ouro Preto.
Darico Nobar: Daí a ideia de fundar uma Prelazia sob seu comando?!
Padre Fernando: Veja bem, é só no Brasil que ainda existem, tão perto das grandes cidades, homens mais em contato com Deus do que com a história, isto é, com o mundo da razão e do tempo [Cheira com vontade o lenço]. Entre eles a aventura do homem na terra poderia começar de novo.
Darico Nobar: Por um acaso isso aí é lança-perfume?! Nando, você está cheirando lança-perfume?
Padre Fernando: É só para curar o resfriado. Não quero que nossa conversa seja atrapalhada por minha respiração vacilante e por espirros.
Darico Nobar: Vamos fingir que não vi isso [O convidado balança a cabeça para cima e para baixo e guarda o pano junto ao corpo]. E por que ainda você não foi para lá?
Padre Fernando: Continuo na mesma angústia.
Darico Nobar: Soube que você está há meses no Rio de Janeiro e não embarca para o Mato Grosso. Como entender que alguém desde menino se prepare para um trabalho e que depois o refugue, o evite, o adie assim? E para quê? Para ficar vagabundeando pelo Rio, cidade que você diz detestar!
Padre Fernando: Perdoe-me Seu Darico, eu compreendo seu desapontamento, mas a verdade é que... [Parece um tanto zonzo ou incomodado com algo]. A verdade é que... que...
Darico Nobar: Você está bem?
Padre Fernando: Acho que sim. Só estou com muita sede.
Darico Nobar: Quer água?
Padre Fernando: Tem whisky?
Darico Nobar: Whisky?!
Padre Fernando: É. Só um ou dois copinhos para matar a sede [O entrevistador faz sinal para que alguém da produção providencie o que foi solicitado]. E copo com gelo, por favor. Pouco gelo. Muito gelo tira o gosto da bebida e não mata a sede. E se você misturar com hóstia, é ótimo para indigestão.
Darico Nobar: Você deu para beber agora, Padre Nando?
Padre Fernando: Ai! A virtude pode ser cômica às vezes, não é? Onde estamos mesmo na conversa?
Darico Nobar: Você falava da demora para ir ao Xingu.
Padre Fernando: Eu fracassarei diante de Deus e dos homens se um dia não me dedicar de corpo e alma aos índios. Mas a verdade é que quero muito.
Darico Nobar: Então, por que não parte logo? É orgulho?!
Padre Fernando: Não é orgulho, é o temor, um temor kierkegaardiano.
Darico Nobar: Mas o que Kierkegaard tem a ver com isso? Nem na moda ele está mais!
Padre Fernando: Vocês estão aí duvidando de mim, mas sentem como eu a tragédia que é a Babel moderna, a confusão de incontáveis línguas, o tempo perdido. [Se levanta para pegar a bebida da bandeja trazida pelo garçom, toma um gole do copo com avidez e começa a andar pelo palco]. Se amolo vocês com minhas histórias, prometo não voltar ao assunto. Mas palavra que eu gostaria de ver a República dos Guaranis das Missões dos Sete Povos, no Rio Grande do Sul, estudada pelos biologistas. Ou, quem sabe, assistir à sua reconstituição como governo cristão e comunista.
Darico Nobar: E a Prelazia nisso tudo?
Padre Fernando: Está certo. Eu preciso fazer uma confidência [ri em agonia ao ponto de se sentar novamente]. Escute, Seu Darico, você vai ter a honra duvidosa de ser a única pessoa a saber por que não segui ainda para o Xingu. Nem d. Anselmo sabe. Só você e o meu confessor. Tenho medo de me defrontar com os índios nus.
Darico Nobar: Medo do quê?!
Padre Fernando: Da nudez dos índios.
Darico Nobar: Você quer dizer das índias, né? Temor de vê-las peladas.
Padre Fernando: Não, dos homens. Não estou acostumado. Fui um dos poucos que conseguiu passar intacto pelas investidas dos professores e dos colegas mais velhos no Seminário. Medo de talvez perder os sentidos. Ou como reagir aos abraços, ao contato físico mais próximo com os índios.
Darico Nobar: Mas do que exatamente você tem temor, Nando?
Padre Fernando: Têm membros grandes, esses índios, o que de certa forma é mais uma apreensão que me aguarda na selva. Soube que muitos não tem envergadura normal se comparada a nós brancos de origem europeia. E se quiserem se impor pela força e não entenderem que sou padre, que fiz votos de castidade?! Confesso que custo imaginar alguém mais bem servido que esses índios.
Darico Nobar: E dos corpos femininos, não teme os pensamentos pecaminosos?
Padre Fernando: Aí será batata. Nas tribos, segundo dizem, a maioria das mulheres envelhece precocemente e tem peitos caídos, mamados às vezes por crianças grandes a sugarem de pé o seio. São pobres Evas dilaceradas pela implacável força da natureza. É raro uma índia verdadeiramente bela depois da adolescência. Creio que não será nem um pouco difícil olhá-las todas como homem de Deus e do espírito.
Darico Nobar: Por falar nos pecados da carne, o que você poderia dizer sobre as acusações que o Padre Hosana está sendo investigado lá na sua antiga arquidiocese?
Padre Fernando: Essa é uma questão delicada porque não dá...
[Um homem amarelo, esquelético e com cabelos em desalinho vestindo batina cinza entra no palco sem se importar com a gravação. Ele fica lado a lado com o convidado e o segura pela manga. Pela proximidade com Padre Fernando, os microfones captam sua fala].
Homem: Nando, d. Anselmo está chamando no telefone.
Padre Fernando: Está me ligando, André? Você não está de mangação?
Homem/André: Não estou de troça. Ele está pra valer na ligação. Disse para eu ficar aqui no seu lugar enquanto você atende. Não quer ser interrompido na conversa.
Darico Nobar: Estamos no meio de uma entrevista!!! Estamos ao vivo para o país!
Padre Fernando: D. Anselmo está me chamando e deve ter novidades sobre minha viagem. Vai que o Ministro Gouveia autorizou minha partida para o Xingu [Se levanta com urgência e mete a cara mais uma vez no lenço ainda úmido]. Que Deus acompanhe você, Seu Darico, nessa jornada pela literatura brasileira. Ele lhe há de mostrar sempre o caminho, de guiá-lo seguro como até agora.
Darico Nobar: Muito obrigado, Padre Nando, pelos pios votos e pela sua presença.
[O apresentador pega a mão estendida do convidado, curva a cabeça e a beija com todo o respeito. O padre sai do palco em direção ao camarim para tristeza do âncora e da plateia do Talk Show Literário. André senta-se no sofá].
André: Boa noite, Seu Darico [Cumprimenta o entrevistador em um aperto de mão tímido]. No que posso ajudá-lo?
[Darico ignora o substituto de Padre Fernando e olha incrédulo para a câmera 2, que dá um zoom in em seu rosto de dúvida e decepção. Imediatamente, as letras de crédito do programa começam a subir na tela ao som de "Se Eu Quiser Falar com Deus", música de Gilberto Gil. A imagem da TV pula para a câmera 1 que dá um take geral na plateia, que aplaude de maneira mecânica e pouco entusiasmada os acontecimentos no palco. Em poucos segundos, a transmissão é interrompida e uma nova atração começa].
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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas seis primeiras temporadas, neste sétimo ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.