No segundo programa de 2024, Darico Nobar entrevista uma das personagens centrais de Em Câmera Lenta, o romance de Renato Tapajós que foi censurado pela Ditadura Militar brasileira.
[No camarim, o apresentador do Talk Show Literário acabava de ser maquiado. Apenas base para correção das olheiras, sombreamento na pele do pescoço e corretivo para diminuir as marcas de expressão foram suficientes. Para um homem que trabalhava com literatura, as rugas eram bem-vindas, sinais de maturidade e conhecimento. Quando a maquiadora da emissora deixava o apertado cubículo localizado atrás do auditório, uma jovem de cabelos louros e longos entrou correndo pela porta do camarim. Ela tinha a expressão pisada da face, os lábios lívidos e as olheiras arroxeadas. Como se fugisse de alguém, abordou intempestivamente o velho entrevistador, que colocava o paletó que usaria nos programas daquela noite].
Darico Nobar: Que susto, menina! Quase me mata do coração. [A braveza era compatível com o sobressalto de ver alguém pulando do nada em cima dele]. Como conseguiu passar pelos seguranças?! Santo Deus, você surgiu como um fantasma!
Marta da Ala Vermelha: De certa forma não deixo de ser um... Não tenho tempo, companheiro. Precisamos conversar e acertar os detalhes da operação. Todo o Comando Regional foi preso, pelo menos dois estão mortos. Se não agirmos agora, a nossa iniciativa esfriará. Precisamos reorganizar o Comando, programar algumas ações de emergência para garantir a sobrevivência do grupo.
[A moça o encarava com ar de imenso cansaço e desânimo. Tinha os olhos vermelhos de quem há muito tempo estava tentando mudar as coisas e não conseguia. Ao desviar o olhar para a mesa, viu um antigo aparelho à manivela].
Marta da Ala Vermelha: Este mimeógrafo está funcionando?
Darico Nobar: Não sei. Ninguém tentou usar. [O susto dava lugar à curiosidade na mente do apresentador]. Quem é você?
Marta da Ala Vermelha: Me chame de Marta.
Darico Nobar: Marta? Olha, se você é uma dessas fãs loucas do Talk Show Literário que acha que pode chegar aqui e...
Marta da Ala Vermelha: Sou da Ala Vermelha.
Darico Nobar: Ala Vermelha?!
Marta da Ala Vermelha: Não tenho muito tempo. Os homens do DEOPS ou do II Exército podem chegar a qualquer momento. Muitos camaradas já tombaram. Todo cuidado é pouco neste jogo de armar.
Darico Nobar: Jogo de armar?!
Marta da Ala Vermelha: O jogo de armar está aí, para quem puder entender e encaixar todas as peças.
Darico Nobar: Não vai me dizer que você é uma... uma guerrilheira.
Marta da Ala Vermelha: É a luta, companheiro. Alguém tem que fazer o trabalho sujo para as famílias dormirem tranquilas. Podemos sentir uma ponta de arrependimento, mas a revolução prossegue e precisa de cada um de nós.
Darico Nobar: Isso é loucura. Você vai acabar se estrepando.
Marta da Ala Vermelha: Uma hora ou outra todo mundo cai. A diferença é o que fazemos até o tombamento. [Parou um pouco e contemplou a fisionomia do apresentador. Ela era fisicamente delicada, pequena, de gestos suaves, mas de uma imensa e tranquila coragem]. Você parece tão solidamente cartesiano. Não sei se irá ajudar na nossa causa, como o Fernando falou. Como saberei se posso confiar na sua disposição em relação à causa.
Darico Nobar: Disposição? Causa?! Veja bem, Marta, eu sempre li muito e vivi pouco. Aprendi a conhecer o mundo pelos livros, e só depois, aos poucos, reconhecer na vida as palavras impressas. Sou um homem mais da reflexão do que da ação. Infelizmente, não poderei contribuir, seja lá de que maneira imaginaram que eu deveria agir.
Marta da Ala Vermelha: Você não poderia entender, você não compreende nada. É um covarde!
Darico Nobar: Os serviços de segurança consideram os livros altamente subversivos. [Após alguns segundos de silêncio, mostrou-se ofendido]. Você não pode entrar no meu camarim para me ofender, tá? Se recuso a me envolver nos seus planos terroristas, tenho lá meus motivos. Não sou criminoso!
Marta da Ala Vermelha: Não é ofensa, é constatação. Quem conhece a morte de perto sabe que o único crime é permanecer na superfície da vida. Não existe pior falha de caráter do que ser isento e impassível. A Agência Nacional acabou de transmitir a decretação do Ato Institucional Número 5. Na minha cabeça ainda soam confusamente parágrafos, suspensão de habeas corpus para crimes políticos, recesso forçado do Congresso e novas cassações a critério do presidente.
Darico Nobar: O quê?! De que tempo você veio?
Marta da Ala Vermelha: É muito tarde. A imagem já se perdeu no tempo, mas está bem viva – como um corte de navalha. O tempo acabou e todos os gestos serão inúteis, mas serão feitos porque precisam ser feitos. [Pela primeira vez, ela vacila, como se tivesse uma vertigem passageira e fosse desmaiar. Mesmo assim, se mantém em pé e segura a pose de durona].
Darico Nobar: Você está bem? Não quer se sentar?
Marta da Ala Vermelha: A sensação de perda é física, como se faltasse a laringe ou o esôfago e não vai passar; porque se ao menos tivesse servido para alguma coisa. [Atendendo à sugestão do anfitrião, ela senta-se num sofá do camarim]. Mas não, apenas acabou, e com isso acabou o tempo. Agora o tempo que há – é preciso chegar até o limite, deixar tudo lá e tentar chegar no ponto como aquela cara, pelo menos na repetição.
Darico Nobar: Ser de esquerda é bom da boca para fora, mas na hora de fazer qualquer coisa é complicado. É preciso ter tantos cuidados que talvez fosse melhor ficar trancado em casa. Além do quê, revolução é algo para ser feita pelos jovens, não por alguém da minha idade.
Marta da Ala Vermelha: Quando a guerrilha começar, aí sim, vamos mobilizar as massas. Nosso movimento será um polo de atração, um exemplo para todos os revolucionários e para o povo. Já há guerrilheiros na Amazônia. Manaus será a nova Havanna e o Amazonas se transformará na versão brasileira de Cuba.
Darico Nobar: Li nos jornais. A grande máquina militar está procurando seis estudantes e um venezuelano. Você está envolvida com isso, Marta? [Ela fica em silêncio]. Tem valido a pena tanto sacrifício, tanto sofrimento?! [A moça coloca mão na testa como se medisse a temperatura ou tentasse aplacar a dor de cabeça]. Você quer um copo de água? Você não parece bem.
Marta da Ala Vermelha: Às vezes me sinto morta, como se tivesse levado uma rajada na barriga. É como se meu fim pudesse salvar os companheiros, o povo, o país inteiro. Bonito, não?
Darico Nobar: Não vejo beleza na violência.
Marta da Ala Vermelha: Não nos resta outra opção. Uma metralhadora, uma .38 e uma escopeta têm suas eficiências no dia a dia, mas também são belas, como esculturas de traços precisos. Eu não sei explicar, companheiro. É uma coisa que a gente sente. É preciso transformar o ódio pessoal em ódio de classe. O sentimento mais forte que existe não é o amor e sim o ódio. Eu odeio todos os que mataram meus amigos. Se pudesse, destruiria um por um.
Darico Nobar: Você parece gostar mais das armas do que de gente.
Marta da Ala Vermelha: Isso é verdade. [Dá uma risada tímida]. O senhor não conseguiria entender. [Volta a ficar séria]. Sua alma é de um ingênuo. Vejo no seu olhar o conformismo. Sua fisionomia não traz a pretensão de mudar nada em nossa realidade. Para mim, a vida é apenas um adiamento da morte próxima, uma pausa entre quem sobrevive e aqueles que já morreram. Quem constrói o futuro são os que se foram, não os que ficaram. A maior contribuição para a vitória comunista é o legado dos mortos, dos presos e dos torturados pela Ditadura Militar. São eles que fazem a roda do mundo girar na direção certa. Porque foram nobres em sacrificar a vida, sinalizando o que acreditavam e insultando os que ficaram parados. A única ambição legítima é mudar o mundo. Todas as outras são mesquinhas. Um amigo me disse isso há algum tempo e nunca mais esqueci.
Darico Nobar: Mas afinal, o que você deseja de mim? [Olha para o relógio de pulso]. Em cinco minutos irei para o palco. Tenho duas entrevistas para fazer hoje à noite.
Marta da Ala Vermelha: Precisamos de uma ação que chame a atenção da sociedade. Não podemos mais ficar só de protesto isolado na universidade, panfletagem tola no centro da cidade e bombinhas aqui e ali. Só estamos arranhando a pele do monstro. Não conseguimos atingir seus músculos. A economia cresce, dizem todos os jornais, e na rua continuamos vendo os mesmos rostos ausentes, a saber que a mesma miséria continua e que os donos do país prosperam pisando no sangue, na demissão, na apatia, no medo daqueles que trabalham nos intestinos da pátria.
Darico Nobar: Marta, ainda não entendi aonde você quer chegar. Seja mais clara, por favor!
Marta da Ala Vermelha: Tudo se desencadeará a partir deste primeiro grande ato. Tenho certeza de que este gesto mudará o curso da história do Brasil. Não haverá programa de televisão mais vermelho do que o Talk Show Literário.
[Como em câmera lenta, Marta se voltou para trás. Sua mão descreveu um longo arco, em direção ao sofá, mas interrompeu o gesto e desceu suavemente pela abertura da bolsa, escondida entre os pés. O rosto impassível olhava para o revólver que estava na bolsa e só ela via. O apresentador a encarou como se esperasse uma decisão. E, num movimento único, corpo, rosto e braço giraram novamente, o cabelo longo sublinhando o levantar da cabeça, os olhos, agora duros, apanhando de relance a imagem do apresentador que a encarava em busca de respostas. O revólver disparou, clarão e estampido rompendo o silêncio].
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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas sete primeiras temporadas, neste oitavo ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.