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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorRicardo Bonacorci

Talk Show Literário: Marcelinho

O quarto entrevistado da oitava temporada do TSL é Marcelinho, o narrador-protagonista de Feliz Ano Velho, romance autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva que se tornou best-seller na década de 1980.

Talk Show Literário: Entrevista com Marcelinho, o narrador-protagonista de Feliz Ano Velho, o romance autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva

Darico Nobar: Boa noite, Marcelinho. Como vai este meninão carismático e desbocado?


Marcelinho: Vai bem, meu velho amigo gorducho e fofinho.


Darico Nobar: Olha o respeito, garoto! Senão eu te coloco de castigo e você não participa do Talk Show Literário.


[Os dois riem, o que evidencia o clima de descontração e intimidade. O cenário do programa é bem diferente do habitual. Ao invés do estúdio da emissora de TV no Rio de Janeiro, as câmeras foram instaladas num quarto apertado de hospital em São Paulo. O entrevistado, um rapaz de vinte anos, careca e cheio de espinhas no rosto, está totalmente imobilizado no leito. Seu pescoço é sustentado por um colar metálico ortopédico cheio de pinos e parafusos. Ele veste um cinto que envolve sua coluna. O entrevistador, um senhor septuagenário de volumosos cabelos brancos, aparece sentado na poltrona ao lado da cama. Pelo barulho, nota-se que há muita gente em volta].


Marcelinho: Tá bom, Daricóviles. Dessa vez, só dessa vez, vou me comportar. Prometo não pegar o violão para tocar um bom Rock dos anos 1970.


Darico Nobar: Não dá para começarmos essa conversa de outro jeito, meu amigo. Preciso perguntar o que aconteceu. O que se passou para você vir para cá?!


Marcelinho: Nada demais. Só quebrei a quinta cervical num passeio de fim de semana com a rapaziada. Estávamos em um lago às margens da Rodovia dos Bandeirantes e subi numa pedra para mergulhar. Queria fazer como o Tio Patinhas na piscina de moedas. Meu movimento foi perfeito, só não contava que não havia profundidade na água. Aí bati a cabeça no chão. Quem nunca, né?


Darico Nobar: Meu Deus! Isso é muito sério!


Marcelinho: Não esquenta a cabeça, que caspa vira Mandiopan.


Darico Nobar: O que você vai fazer agora?


Marcelinho: Agora?! Minha vontade é transar com a Lídia Brondi, mas como ela não apareceu no hospital, estou me resguardando e fazendo tratamentos paliativos. 


Darico Nobar: Claro... [O apresentador não se aguenta e cai na risada]. Por falar nisso, parece que você tem recebido muitas visitas. Seu quarto é tão movimentado e barulhento como as quadras das escolas de samba nos ensaios pré-Carnavalescos.


Marcelinho: Assim que as visitas foram liberadas, acabou o sossego do hospital. Começou a chegar gente, mais gente e não parou mais. Tios, tias, amigos, todos querendo me ver. Eles precisam falar comigo, não sei o porquê. Aliás eu sei, é que estou com preguiça de explicar. Os primeiros a aparecerem foram Cassy, Laurinha, Ana, Gorda, Big, Bunds, Nalu, Eliana. Acho que gostam do meu quarto, do astral daqui. Todo dia é uma festa. Cassy me disse que fica o dia inteiro esperando chegar a hora de vir me visitar. É incrível o espírito de ajuda que se criou em volta de mim. Cada um querendo dar um pouco de si, e é por isso que é tão gostosa a presença deles.


Darico Nobar: Conversando com Dona Eunice, soube que você teve inclusive visitantes famosos nos últimos dias.


Marcelinho: Visitinhas políticas. Chegou um telegrama dizendo que o Leonel Brizola viria me ver. Ele, que foi colega do meu pai antes do Golpe de 1964, acabou de chegar no país, beneficiado pela Anistia. Mas quem pintou por aqui foi sua mulher, uma senhora loira, simpática e bonita. Depois, numa tarde qualquer, entraram pela porta do meu quarto o Eduardo Suplicy, o João Breda e a Irma Passone. Queriam saber minha opinião sobre a mudança deles do MDB para o PT. Quem diria, eu, que nunca trabalhei na vida, convencendo uns deputados a irem pro Partido dos Trabalhadores.    


Darico Nobar: Olha só. Não sabia disso. E qual é a sua rotina hospitalar?


Marcelinho: O ritual é o seguinte, Daricóviles. Café de hotel, papo com Chico e Santista na hora do banho e fisioterapia com Helô. Almoço, jornal com vovó e colete. Tiro uma soneca à tarde de mais ou menos uma hora, visitinhas. Fisio com Nana e Big, jantar, mais visitas e colete. Novela, fisio com quem estiver no quarto, relaxamento da Veroca, pensar na medula, sonífero e dormir. O maior programão, né?


Darico Nobar: Ninguém gosta de hospital, mas você parece satisfeito com o atendimento recebido.


Marcelinho: É uma pseudo-satisfação. O hospital é a droga da sociedade, o carro-chefe da segurança, das ilusões. Pode pôr sua vida em risco, que ele garante. Estropie-se, que não estará sozinho. Com o pouco que você sofre em nossas mãos, e alguma paciência, estará pronto para viver novamente entre os filhos do senhor, compartilhar com eles o sofrimento de uma vida cheia de buscas, riscos e frustrações.  


Darico Nobar: Qual a pior parte da internação e do seu tratamento médico?


Marcelinho: Não aguento pedir pros outros coçarem a minha cabeça. Como não mexo nada, você pode imaginar a agonia de uma simples coceirinha. Se a Lídia Brondi estivesse aqui, acho que ela faria isso nos intervalos do nosso sexo selvagem.  


Darico Nobar: Às vezes, acho que é difícil falar sério com você. [Ri da ironia do jovem]. A sensação que tenho é que, de alguma forma, você já estava preparado para encarar os desafios dessa infelicidade. Loucura pensar assim, não?


Marcelinho: Mais estranho ainda, e disso eu fui testemunha, foi o sonho que a Eliana, minha irmã, teve comigo uma semana antes do acidente. Ela sonhou que eu estava me afogando e não conseguia levantar a cabeça. E que, depois de eu ser salvo, ela só me via do pescoço pra cima. Isso, numa sexta-feira. Como de costume, sábado fui de Campinas onde estudo para São Paulo, e ela me abraçou assustadíssima, quase chorando. “Tive um pesadelo horrível com você, ainda bem que você está vivo”.


Darico Nobar: Além da sua mãe e da sua avó, suas irmãs são muito presentes?


Marcelinho: Mais tarde, vem a Eliana ou a Veroca. Elas estão lendo para mim o novo livro do Gabeira. Você já leu O que é Isso, Companheiro? [O apresentador balança a cabeça para cima e para baixo]. Na maioria das vezes, eu não consigo prestar a atenção. As dores de cabeça e de barriga são infernais, me tiram de órbita. Em compensação, quando eu presto atenção, as aventuras do Gabeira entram pelo meu ouvido e me fazem lutar junto dele. Tem momentos que me identifico profundamente. Principalmente na parte em que ele é perseguido pela polícia, é obrigado a ficar um mês no apartamento de uma pessoa desconhecida. Para não dar bandeira pros vizinhos, quando essa pessoa saía para trabalhar, ele não podia ouvir som, atender a porta, fazer nenhum barulho, pois podiam desconfiar. Era uma situação muito parecida com a minha, preso num lugar que não conheço, absolutamente sem nada para fazer. O Gabeira nem imagina o quão importante seu livro está sendo para mim.     


Darico Nobar: Por falar em Ditadura Militar, quais as lembranças que você tem do seu pai?


Marcelinho: Enquanto alguns pais levavam seus filhos pra jogar tênis, o Rubens levava o Marcelo pra Pavuna, um bairro operário da Zona Norte do Rio, onde ele estava construindo umas casas populares. Eu adorava, ajudava a fazer cimento, levantar muro, passar argamassa nas paredes. Aprendi a comer feijão com farinha na marmita, a beber café mineiro no copo, usar capacete de obra e carregar martelo na cintura. Meu pai me ensinou a andar a cavalo. Meu pai me ensinou a nadar. Me incentivou a ser moleque de rua. Me ensinou a guiar avião. Mas meu pai não pôde me ensinar mais.


Darico Nobar: Lembro muito bem desse outro episódio delicado da sua família. Marcelinho, o que aconteceu exatamente naquele 20 de janeiro de 1971?


Marcelinho: Quando todos se preparavam pra ir à praia, nossa casa foi invadida por seis militares à paisana, armados com metralhadoras. Enquanto minhas irmãs e a empregada estavam sob a mira, um deles, que parecia ser o chefe, deu ordem de prisão. Meu pai deveria comparecer na Aeronáutica para prestar depoimento. Ordem escrita? Nenhuma. Motivo? Só deus sabe. No dia seguinte, minha mãe e a Eliana, então com quinze anos, também foram levadas à força. Minha irmã ficou só um dia presa, mas minha mãe voltou depois de duas semanas. Meu pai... até hoje nada. Sumiu no quartel da Barão de Mesquita e ninguém do Exército se preocupou em nos dizer seu paradeiro.


Darico Nobar: Triste, muito triste.


Marcelinho: Revoltante! Meu pai não foi o único “desaparecido”. Há centenas de famílias na mesma situação – filhos que não sabem se são órfãos, mulheres que não sabem se são viúvas. Provavelmente o homem que me ensinou a nadar está enterrado como indigente em algum cemitério carioca. O que posso fazer? Justiça neste país é uma palavra sem muita importância. As pessoas de farda ainda se acham donas do Brasil, tem um código de ética para se protegerem mutuamente.


Darico Nobar: Para terminarmos essa entrevista, você gostaria de deixar uma mensagem natalina para nosso público? As festas de fim de ano estão logo aí e essa data é muito importante para várias famílias brasileiras.


Marcelinho: Nunca fui muito de Natal, exceto quando criança, óbvio. Mas apesar das dificuldades que enfrentamos, sabemos que sempre haverá celebrações em família no fim de dezembro. Porque não ter um momento de ternura e amizade com as outras pessoas, mesmo levando uma vida fodida o ano inteiro? Estamos todos na mesma. Não sejamos tão egocêntricos a ponto de querer, quando estamos mal, que esteja todo mundo péssimo. Foi o nascimento de um cara incrível, de um revolucionário que lembrou às pessoas que, acima do poder, o amor e a felicidade são mais importantes. E que poderemos construir um mundo melhor. Então, é um dia em que teremos a oportunidade de renascermos em nós mesmos. De brilhar, de ser gente. Lutar por aquilo que desejamos, defender a nossa condição. E como disse o poeta: “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.


Darico Nobar: Belas palavras. Elas se casam com o que você está vivenciando. Mais uma etapa da recuperação vencida, certo? Mas a batalha prossegue!


Marcelinho: Só vou vencer quando sair daqui andando. Esse papo de etapa superada parece uma coisa de conformista – se contentar com pouca coisa. Nada disso. A luta está começando, até agora não venci nada, quem está vencendo é a porra do meu destino. Puta que pariu. O homem foi à Lua e ninguém descobriu a cura para uma lesão de medula. Ora bolas, vão todos tomar no cu.


Darico Nobar: Marcelo, obrigado por essa entrevista franca e direta. E agradeça também a Dona Eunice, essa mulher tão obstinada e inspiradora, por ter nos permitido conversar com o filho dela.  


Marcelinho: Falô, meu chapa! O prazer foi meu de transar um lero contigo.


Darico Nobar: Pessoal, o Talk Show Literário dessa noite fica por aqui. [Olha diretamente para uma das câmeras]. No mês que vem, voltaremos com mais uma entrevista ao vivo e exclusiva para vocês. Até lá!

[Enquanto os créditos do programa sobem na tela, é possível assistir à entrada de várias pessoas no quarto. A maioria é de jovens que parecem sorrir e se divertir como se estivessem numa festa universitária].


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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas sete primeiras temporadas, neste oitavo ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.


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