Na segunda entrevista da nova temporada do TSL, o convidado de Darico Nobar é o herói de O Uraguai, epopeia de Basílio da Gama e clássico do Arcadismo brasileiro.
Emanava intento à literatura.
Em outro programa, pedia encanto
O erudito Darico achar sossego.
No perturbado interrompido sono
(Talvez fosse ilusão) se lhe apresenta
A triste dor de Cacambo destruído.
Pintado o rosto do temor da morte,
Banhado em negro sangue, que corria
Do peito aberto, e nos pisados braços
Inda os sinais da mísera caída.
Sem adorno a cabeça e aos pés calcada,
A rota alijava e as descompostas penas.
Quanto diverso Cacambo valente
Que no meio dos nossos espalhava,
De pó, de sangue e de suor coberto,
O espanto, a morte! E diz-lhe em tristes vozes:
Fumam ainda nas desertas praias,
Lagos de sangue tépidos dos puros
Em que ondeiam cadáveres de índios,
Pasto de corvos. Dura inda nos vales
O rouco som da irada assassina
Da gente que não vê o herói que
Padeceu do Uraguai e nosso sangue
Dos decretos reais lavou a afronta.
Ai tanto custas, ambição de império!
E Tu, que na televisão perdura,
Fala para milhões de embalados,
Herói e irmão de heróis, saudosa e triste
Se ao longe a vossa América vos lembra,
Protegei os meus tristes lamentos
Sentindo as dores as novas asas
Em que um dia me leve para morte.
Nobar no sofazão. Porém Cacambo
Fez, ao seu modo, cortesia estranha,
E começou: Ó âncora famoso,
Tu tens à vista quanta gente morre
Do soberbo Uraguai a esquerda margem.
Bem que os nossos avôs fossem despojo
Da perfídia de Europa, e daqui mesmo
Casos não vingados ossos dos índios
Se vejam branquejar ao longe os vales.
Eu, desarmado e só, buscar-te venho.
Tanto espero deles. E enquanto as armas
Dão lugar à razão, senhor, vejamos
Se se pode salvar a vida e o sangue
De tantos belos povos. Muito tempo
Pode ainda tardar-nos o recurso
Com o largo oceano de tormento.
Aqui não temos. Os padres faziam
Crer aos índios que os portugueses
Eram gente sem lei, que adoravam o ouro.
Rios de areias de ouro. Essa riqueza
Que cobre os templos dos fétidos padres,
Fruto da sua indústria e do comércio
Da folha e peles, é riqueza sua.
Com o arbítrio dos corpos e das almas,
O céu lhe deu em sorte. A nós somente
Nos toca arar e cultivar a terra,
Sem outra paga mais que o repartido
Por mãos escassas mísero sustento.
Podres choupanas, e algodões tecidos,
E o arco, e as setas, e as vistosas penas
São as nossas fantásticas riquezas.
Muito suor, e pouco ou nenhum vintém.
Obra de meu estimo valor! Tenho
Real esposa, a senhoril Lindoia,
De costumes suavíssimos e honestos,
Em verdes anos: com ditosos laços
Amor nos tinha unido; mas apenas
Nos tinha unido, quando ao som primeiro
Das trombetas me arrebatou dos braços
A glória enganadora. Ou foi que Balda,
Engenhoso e sutil, quis desfazer-se
Da minha presença inoportuna
E do meu posto pro filho bastardo.
Saudosa manhã, que a despedida
Presenciou de nós amantes, nunca
Consentiu que outra vez tomasse os braços
Da formosa Lindoia e descobria
Sempre novos pretextos da demora.
Tornar não esperado e vitorioso
Foi todo o meu delito. Não consente
O cauteloso Balda que Lindoia
Chegue a falar ao seu esposo; e manda
Que uma escura prisão a esconda e aparta
Da luz do sol. Nem os reais parentes,
Nem dos amigos a piedade, e o pranto
Da enternecida esposa abranda o peito
Do obstinado juiz: até que à força
De desgostos, de mágoa e de saudade,
Por meio de um licor desconhecido,
Que lhe deu compassivo o santo padre.
Cá fiquei eu, Cacambo, entre os gentios
Único que na paz e em dura guerra
De virtude e valor deu claro exemplo,
Derrotado estou em qualquer cenário.
Acabou de falar; e assim rebate
O ilustre apresentador: Ó alma
Digna de compadecer melhor causa,
Vê que te não enganam rica memória
Vãs, funestas imagens, que alimentam
Envelhecidos mal fundados ódios.
Por mim te falo o que sei: ouça-me
E verás uma vez nua a verdade
Dos pobres índios, e no chão caídos
Fumegavam os nobres edifícios,
Deliciosa habitação dos padres.
Entram no grande templo e vêm por terra
As imagens sagradas. O áureo trono,
O trono em que se adora um Deus imenso
Piedoso, muito amoroso,
Que o sofre, e não castiga os temerários.
E o índio, um pouco pensativo, manda:
Gentes de Europa, nunca vos trouxera
O mar e o vento a nós. Ah! não debalde
Estendeu entre nós a natureza
Todo esse plano espaço imenso de águas.
Prosseguia talvez; mas o interrompe
Nobar, que entra no meio, e diz: Cacambo
Fez mais do que devia; e todos sabem
Que estas terras, que pisas, o céu livre
Deu os teus avôs; eles também livres
As receberam dos antepassados.
Livres não hão de herdar teus filhos.
Dentro de pouco tempo: e o vosso Mundo,
Se nele um resto houver de humanidade,
Sentirá a injustiça do meu Deus.
Não quereis a guerra, mas a terás.
Lhe disse: Ó Darico, eu te agradeço
As dicas que me dás e te prometo
Lembrarei bem depressa uma por uma
Entre nuvens de pós no ardor da guerra.
Despediram-se índio e apresentador
Se vão dispondo em ordem a plateia
Como manda o figurino da TV.
Cobrem o público de alegria,
E estão no centro firmes as mentiras
Contadas dos índios a nossa frente.
De agudas baionetas rodeada,
Fez a trombeta o som da guerra. Ouviram
Aqueles montes pela vez primeira
O som da caixa portuguesa; e viram
Pela primeira vez aqueles ares
Desenroladas as reais bandeiras.
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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas seis primeiras temporadas, neste sétimo ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.