Talk Show Literário: Ana Rosa da Silva
- Ricardo Bonacorci
- há 7 horas
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Na quinta entrevista da oitava temporada do TSL, acompanhamos o bate-papo com a protagonista feminina de O Mulato, romance naturalista de Aluísio Azevedo que foi publicado em 1881.

[Em uma noite abafadiça, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro parecia entorpecida pela literatura naturalista do século XIX. Quase não se podia mexer no auditório – o público que superlotava o local não desgrudava a atenção do palco. Uma moça com faiscantes olhos pretos, cabelos castanhos, dentes fortes e bonita de formas era entrevistada por um senhor septuagenário de volumosa e rebelde cabeleira branca. A conversa do Talk Show Literário, que já corria fazia alguns minutos, era registrada por câmeras de televisão e retransmitida ao vivo para todo o Brasil].
Darico Nobar: Mas o que ela disse exatamente?
Ana Rosa da Silva: Algo como “Minha filha, não consintas nunca que te casem, sem que ames deveras o homem a ti destinado para marido. Não te cases no ar! Lembra-te que o casamento deve ser sempre a consequência de duas inclinações irresistíveis. A gente deve casar porque ama, e não ter de amar porque se casou. Se fizeres o que te digo, serás feliz!”.
Darico Nobar: E a senhorita seguirá os conselhos dela?
Ana Rosa da Silva: Como não se mamãe me confidenciou seu mais íntimo aprendizado de vida no leito de morte?!
Darico Nobar: Mas isso já faz muito tempo!
Ana Rosa da Silva: Ah, tempos! Tempos!
Darico Nobar: E agora você quer se casar, D. Anica? Tem essa gana?
Ana Rosa da Silva: Mais do que querer, sinto que me convém um marido! O meu homem, o verdadeiro, o legal, o único e definitivo! Aquele que será o senhor da casa, o dono do meu corpo, a quem eu possa amar abertamente como amante e obedecer em segredo como escrava. Preciso dar-me e me dedicar a alguém. Sinto absoluta necessidade de pôr em ação a competência para tomar conta de uma casa e educar muitos filhos.
Darico Nobar: E como deveria ser esse rapaz? Tem algo em mente?
Ana Rosa da Silva: Em meus devaneios íntimos, antevejo um mancebo forte, corajoso, com um bonito talento, e capaz de matar-se por mim. Tem que ser encantador e galgar precipícios para ser merecedor da ventura do meu sorriso.
Darico Nobar: E quando o encontrar, o que a senhorita fará?
Ana Rosa da Silva: Um banquete esplêndido de noivado! Depois, quando os nossos lábios tiverem se acostumado a se unirem com graça e ternura, vamos até o cônego Diogo para selar o matrimônio.
Darico Nobar: Como será o dia a dia da versão casada de D. Anica?
Ana Rosa da Silva: Oh! Como deverá ser feliz! Serei dona de casa que só pensará no bem-estar do marido e dos filhos. Vou me realizar na dependência da prisão do ninho de amor e no domínio carinhoso do meu marido. E as criancinhas morenas vão balbuciar tolices engraçadas e comovedoras. Não vou me cansar de ouvi-las chamando “mamãe, mamãe!”.
Darico Nobar: A senhorita sabe que, aqui no Rio de Janeiro do século XXI, suas palavras podem soar um tanto perturbadoras. Muita gente não concorda com essa visão do casamento convencional e com a relação homem-mulher com tantos desequilíbrios.
Ana Rosa da Silva: Sr. Dr. Darico, estou falando o que eu sonho para mim, conforme me perguntaste. Se há por aí mulheres que são contra o matrimônio romântico, escuto de boa-fé suas frioleiras.
Darico Nobar: A senhorita se sente pronta para o casório?
Ana Rosa da Silva: Estou sempre ouvindo as bobagens da Eufrasinha. Ela conta cada coisa que jamais sonhei. É bom que instrui as amigas solteiras sobre certos mistérios da vida conjugal.
Darico Nobar: O que exatamente D. Eufrasinha conta para vocês?
Ana Rosa da Silva: Dos prazeres que conheceu nos dez dias e dez noites que viveu como mulher casada. Infelizmente, o marido dela era oficial do quinto de infantaria, batalhão que morreu todo na Guerra do Paraguai. Com essa fugaz, mas intensa experiência nupcial, ela nos dá lições de amor. Fala muito nos homens, diz como a mulher esperta deve lidar com eles, quais são as manhas e os fracos dos maridos ou dos namorados. Também explica quais são os tipos preferíveis e o que significa ter olhos mortos, beiços grossos, nariz comprido.
Darico Nobar: Imagino que deve ser uma prosa divertida. A senhorita é a favor ou contra o celibato?
Ana Rosa da Silva: Não admito, principalmente para as mulheres! Para os homens ainda passa. Vivem tristes só. Mas em todo o caso, os homens têm outras distrações! Mas para a pobre mulher, que melhor futuro poderia ambicionar do que o casamento? O mais legítimo prazer feminino é a maternidade. Que companhia mais alegre do que a dos filhos, esses diabinhos tão feiticeiros?
Darico Nobar: E o celibato dos padres?
Ana Rosa da Silva: Oh, esse não tenho dúvida, é obrigatório. Até porque é um designo divino. Os religiosos deveriam ter a honradez e as virtudes morais do cônego Diogo. Não existe homem mais correto do ponto de vista da ética cristã do que nosso reverendo. Isso só é possível porque ele nunca chegou perto de uma mulher. É casado com Deus Nosso Senhor e é para Ele que o bom senhor vive.
Darico Nobar: Falando em casamento, minha caprichosa, soube que Luís Dias tem interesse em se casar com a senhorita. Até onde esse boato é verídico?
Ana Rosa da Silva: Com o Dias?!
Darico Nobar: O Manuel Pescada me confidenciou as boas intenções do gajo.
Ana Rosa da Silva: Ora, ora. São coisas da imaginação do Sr. Manuel. Quando o assunto é sua filhinha, ele alimenta muitas ilusões infundadas.
Darico Nobar: O que tem de mal em querer casar a filha única?! A senhorita já tem vinte anos! Está na idade de fazer o ninho!
Ana Rosa da Silva: Mas não precisa ser com o Dias!
Darico Nobar: Qual o problema com ele?
Ana Rosa da Silva: Acho que essa história está cheirando mal! Literalmente.
Darico Nobar: E o Sr. Dr. Raimundo José da Silva?
Ana Rosa da Silva: O que tem o primo Mundico?
Darico Nobar: Ele é um bom partido?
Ana Rosa da Silva: Boa parte das mulheres de São Luís, entre solteiras, casadas e viúvas, crê que seria bom ouvir o sussurro da voz dele ao pé do ouvido. Quantos tesouros de ternura não se escondem naqueles braços fortes? E o que dizer do feitio de amêndoas, banhados de bondade e cercados de pestanas crespas e negras, como os pelos de um bicho venenoso? Aquelas pestanas lembravam as sedas de uma aranha caranguejeira. [Ao estremecer, para de falar. Só após apalpar os lábios, retoma o fôlego]. Como deve ser bom ouvir “Eu te amo!” daquela boca.
Darico Nobar: A senhorita deve saber o que andam falando pelas costas dele, né? O povo do Maranhão pode ser muito maldoso às vezes...
Ana Rosa da Silva: Diabo de peste! O que andam falando?! Aos meus ouvidos, ninguém se atreveria a dizer patacoadas de Mundico.
Darico Nobar: Ah, tenho até vergonha de dizer as maldades que propagam por aí [sua voz adquire assombro de uma denúncia]. Só porque o homem é de cor, já viu, né?
Ana Rosa da Silva: O Raimundo é um cavalheiro distinto com um futuro bonito. Ora, deixem falarem o que quiserem. Ele será um marido de encher as medidas!
Darico Nobar: Mas, Anica, é revoltante a maldade saindo das bocas de tantas pessoas pretensamente cultas e educadas.
Ana Rosa da Silva: Há gente para tudo nesta vida! Credo!
Darico Nobar: Juro que fico revoltado quando o chamam de “cabra cheio de fumaças”, de “mancebo de cor de senzala”, “filhote de bode”, “macaquinho criado em Coimbra”, “bastardo alforriado” e “moreno suspeito”?
Ana Rosa da Silva: O que é isso?! Santo Deus, o senhor está falando como a vovó.
Darico Nobar: A Sra. D. Maria Bárbara fala assim?
Ana Rosa da Silva: Fia-te. Fala coisas até piores. Ela não é muito escrupulosa a esse respeito. Ela acredita que preto é preto, branco é branco. Que português é português, brasileiro é brasileiro. E quanto menos confusão houver, melhor para todos.
Darico Nobar: De certo que a senhorita não concorda com esse preconceito.
Ana Rosa da Silva: Iche! Que ideia o senhor tem de mim? Tenho jeito de rapariga racista?! [O apresentador balança a cabeça para os lados com convicção]. Ora, não me faça perguntas indelicadas.
Darico Nobar: Desculpe-me, minha filha. É que diante de tantos absurdos que ouvimos por aí, acabamos sem saber o que cada um pensa de verdade.
Ana Rosa da Silva: Não fique maçado comigo. [Sorve tranquilamente um gole de chávena de café]. Sei que o senhor não é preconceituoso. Por isso, faço questão de sua presença lá no sítio da vovó na próxima Festa de São João. Será deveras um evento muito importante para mim. [Pega-lhe as mãos com afeto]. O senhor vai, não vai?
Darico Nobar: Não perco o São João nordestino por nada, minha menina. Já falamos sobre isso em um segundo. Primeiro tenho que encerrar a entrevista. [Vira-se para a câmera 2 em tom de formalidade]. Pessoal, esse foi o bate-papo com Ana Rosa da Silva, a filha do meu compadre Manuel Pedro da Silva. Na semana que vem, voltaremos com mais um episódio inédito do Talk Show Literário. Boa noite!
[Enquanto a plateia aplaude a dupla no palco, as letras de crédito do programa sobem apressadas nas telas dos televisores dos brasileiros. Indiferentes aos movimentos ao redor, entrevistador e entrevistada seguem proseando amistosamente, agora sem a captação do áudio].
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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas sete primeiras temporadas, neste oitavo ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.