O Natal de 2020 será, muito provavelmente, o mais chocho dos últimos cem anos. Para onde foi o espírito natalino, hein?! As ruas e as residências não estão enfeitadas como antes. As autoridades pedem para as famílias evitarem reuniões. O comércio reclama da queda acentuada nas vendas. Os shopping centers não apresentam suas versões do Papai Noel. As pessoas têm medo de sair de casa. Os médicos orientam para que beijos e abraços sejam evitados ao máximo. Nesse cenário sombrio, não duvidaria se até Santa Claus cancelasse sua visita anual à criançada. Pela idade avançada, o bom velhinho deve estar em confinamento aguardando a chegada da vacina.
Confesso que não sou um grande fã do Natal. Nunca entendi a obrigatoriedade de reunir a família em eventos longos, enfadonhos e com excesso de gente e de comida. Ao invés de ficar acordado até tarde com pessoas com as quais nunca nutri grande admiração, sempre preferi ficar em casa sozinho. Nada melhor do que dormir cedo (no horário normal), mesmo quando a folhinha do calendário indica ser 24 de dezembro. Para mim, o Natal perfeito é aquele em que eu passe lendo um bom livro, assistindo a um belo filme ou ouvindo música de qualidade. E com as pessoas (que dá para contar nos dedos de UMA mão) que eu goste realmente. O resto é obrigação social.
Mesmo para um antissocial incorrigível como eu, é difícil aceitar o Natal desse ano. Não é porque eu não goste das cerimônias natalinas que eu vá vibrar com o clima estranho de 2020. Pelo contrário! Eu quero a volta da normalidade. Gostaria do retorno do velho espírito do Natal: as ruas cheias de gente e de enfeites luminosos; as pessoas comprando presentes e comida em doses exageradas; as famílias exigindo nossas presenças em várias casas simultaneamente; eventos chatíssimos em que precisamos aturar parentes malas; os shopping centers apresentando as versões mais bizarras do Papai Noel; e as estradas e aeroportos cheios, com multidões viajando para lá e para cá.
Fiquei tão deprimido com a nossa realidade natalina de 2020 que precisei procurar na literatura um consolo. E se eu lesse alguns contos de Natal, pensei um pouco mais animado, será que teria de volta o velho clima dos anos anteriores?! Com essa ideia fixa na cabeça, li nos últimos dias uma série de narrativas curtas que tratam do Natal. E admito que elas me ajudaram na (re)construção do espírito natalino.
Por isso, no post de hoje da coluna Recomendações, indico sete contos ambientados no Natal para aqueles que, como eu, precisam de uma injeção de natividade na veia (ou na alma). Na coletânea que apresentarei a seguir no Bonas Histórias, há um pouco de tudo: ficção científica, terror, romantismo, drama, aventura, ação, suspense. Além da temática, a única coisa em comum entre essas histórias é que elas estão disponíveis em ebooks no Kindle ou em pdf no site de suas editoras. Ou seja, quem quiser ler, é só baixá-las. Todas as obras são gratuitas. Nesse caso, não há desculpa para seu Natal continuar chocho.
Confira, abaixo, as sete tramas natalinas mais interessantes que li nos últimos dias e que comento uma a uma:
1) “Um Conto de Natal” (Boitempo) – China Miéville (Inglaterra) – Ficção Científica – 20 páginas – Gratuito – Disponível para leitura em pdf no blog da Boitempo: clique aqui.
“Um Conto de Natal” foi a melhor trama natalina que li nessa minitemporada de fim de ano. China Miéville é um dos mais originais escritores de ficção científica da literatura inglesa. Esse texto foi publicado pela primeira vez, em inglês, em uma coletânea de contos de 2010. No Brasil, a narrativa foi lançada, em português, no caderno Ilustradíssima da Folha de São Paulo em dezembro de 2014. Em um texto distópico, Miéville faz uma sátira divertida sobre o capitalismo, a mercantilização do Natal e o poderio excessivo dos grandes conglomerados empresariais.
O enredo de “Um Conto de Natal” se passa em 24 de dezembro de um ano indeterminado do futuro. Nessa época, para se fazer uma festa de Natal genuína e legalizada, as pessoas precisam pagar por uma licença para a Natividade Co, empresa responsável pelos direitos autorais do evento. Sem a compra da licença da Natividade Co, ninguém pode, por exemplo, ouvir músicas natalinas oficiais, usar a árvore de Natal, decorar os lugares com enfeites típicos, vestir a roupa do Papai Noel... São os efeitos colaterais do mercado hipercapitalista.
Sem muito dinheiro no bolso, o protagonista dessa história (que não tem o nome revelado) raramente passou o Natal como gostaria. Isso até ganhar na loteria a possibilidade de ir ao evento oficial promovido anualmente pela Natividade Co no centro de Londres. Ao lado da filha de quatorze anos, ele poderá usufruir, enfim, do verdadeiro espírito natalino. O que a personagem principal do conto não imaginava é que, justamente nesse dia, grupos de revoltosos radicais invadiriam as ruas da capital inglesa em protesto contra as imposições dos grandes conglomerados empresariais.
2) “Feliz Natal” (Rocco Digital) – Patrícia Melo (Brasil) – Drama – 24 páginas – Gratuito – Disponível na Loja Kindle: clique aqui.
“Feliz Natal” é a narrativa natalina de Patrícia Melo, uma das autoras mais premiadas da literatura brasileira contemporânea. Seus romances de maior destaque até aqui são “O Matador” (Companhia das Letras) e “Inferno” (Companhia das Letras). Publicado pela primeira vez, em 2011, na coletânea de contos “Escrevendo no Escuro” (Rocco), “Feliz Natal” foi lançado de maneira independente em ebook em dezembro de 2013. Nesse drama com tintas de suspense e de terror, Patrícia Melo tece uma forte crítica à desigualdade social no Brasil.
Ao longo das páginas de “Feliz Natal”, conhecemos Neide, a faxineira de um laboratório universitário que faz pesquisas científicas com animais. Extremamente prestativa, a ponto de trabalhar até no dia de folga, a funcionária da limpeza ajuda os professores, os pesquisadores e os alunos em muitas atividades que não fazem parte de sua função original. Os vários anos atuando ali fizeram dela mais do que uma auxiliar de limpeza convencional. Neide é quase uma assistente de pesquisa. Não à toa, ela é bem-quista por todos.
Em uma véspera de Natal, Neide não se importa de ficar até mais tarde para ajudar o Professor Roger a dissecar alguns coelhos. O docente fica grato mais uma vez pela contribuição da faxineira. Contudo, ele não imagina que por trás daquela atitude altruísta, Neide esconde interesses escusos. Prepare-se para um final surpreendente e terrível.
3) “Dia de Folga – Um Conto de Natal” (Companhia das Letras) – John Boyne (Irlanda) – Suspense – 20 páginas – Gratuito – Disponível na Loja Kindle: clique aqui.
“Dia de Folga” é o conto natalino de John Boyne, escritor irlandês famoso pelo romance “O Menino do Pijama Listrado” (Companhia das Letras). Para se ter uma ideia do sucesso de “O Menino do Pijama Listrado”, o livro vendeu mais de seis milhões de unidades no mundo e foi adaptado para o cinema em 2008. “Dia de Folga” tem uma ambientação parecida ao do best-seller de Boyne. Tal qual o romance, essa narrativa curta se passa em meio a um conflito bélico (provavelmente a Segunda Guerra Mundial – não há uma datação clara no texto). Contudo, a perspectiva da trama é de um soldado britânico (e não do filho de um militar alemão). Depois de “Um Conto de Natal”, de China Miéville, e ao lado de “Fui Uma Boa Menina?”, de Carolina Munhóz, esse conto foi o melhor que li nos últimos dias.
O enredo de “Dia de Folga”, um suspense psicológico forte e emocionante, se passa em uma véspera de Natal. Hawke, o protagonista, é um jovem de dezessete anos que virou soldado da Força Expedicionária Britânica. Ele já está cansado da longa guerra travada em território alemão. Tudo o que o rapaz quer é ter uma noite de sono e poder vestir as meias novas que acabou de ganhar de presente da mãe.
Aproveitando-se do raro dia de folga, Hawke decide caminhar pela floresta, longe do seu batalhão. Ele quer espairecer. Por isso, não pensa nos perigos que está correndo ao perambular solitário em uma zona de guerra. Ao respirar novos ares e se distanciar dos colegas combatentes, novas ideias surgem na mente do jovem soldado. Além de lembranças dos natais passados, ele começa a almejar uma nova realidade.
4) “Fui Uma Boa Menina?” (Rocco Digital) – Carolina Munhóz (Brasil) – Suspense/Drama – 28 páginas – Gratuito – Disponível na Loja Kindle: clique aqui.
“Fui Uma Boa Menina?” é o conto natalino de Carolina Munhóz, escritora, roteirista e jornalista nascida, em 1988, em São José do Rio Preto. Especialista em literatura infantojuvenil e em literatura fantástica, Carolina tem mais de dez livros publicados. “Fui Uma Boa Menina?” foi lançado em 2013 e é a história dessa seleção de contos que mais resgata o espírito natalino. Com um texto elegante, uma trama cativante e uma narrativa recheada de mistérios, a autora paulista produz um suspense dramático impecável. Sem dúvida nenhuma, esse foi um dos contos que mais gostei de ler da lista que estou apresentando.
Essa história começa com uma jovem escrevendo em seu diário. É véspera de Natal e ela completa um ano desde a saída da casa dos pais. Ela fugiu de lá por não aguentar mais o ambiente opressivo da família. Abrindo mão do conforto e das posses de seus parentes, a garota preferiu morar sozinha em uma quitinete simples de uma grande cidade brasileira.
A protagonista dessa trama odeia o Natal e possui cabelos precocemente brancos. Apesar da fuga da casa dos pais, ela continua com os dramas do passado fixados na memória. Por mais que ela tente esquecer as lembranças amargas e os sentimentos negativos de outrora, eles acabam surgindo sempre que algo relativo as cerimônias natalinas aparecem.
5) “A Última Ceia – Um Conto de Terror Natalício” (ebook independente) – Ana C. Nunes (Portugal) – Terror – 30 páginas – Gratuito – Disponível na Loja Kindle: clique aqui.
“A Última Ceia – Um Conto de Terror Natalício” é uma das primeiras narrativas curtas de Ana C. Nunes, escritora portuguesa nascida, em Barcelos, em 1983. Com uma produção que abrange romances e coletâneas de contos, a autora assina seus textos tanto com o nome verdadeiro quanto com os pseudônimos Cristina Corvo e Corvo Silva. “A Última Ceia” foi publicado originalmente em dezembro de 2012 e possui características das tramas de terror e das obras de realismo fantástico.
Nessa narrativa macabra, acompanhamos o relato de um adolescente (ele não tem o nome revelado) que viaja com os pais e com o irmãozinho para o litoral de Portugal. A família vai passar o Natal na casa do tio José, que ficara viúvo há sete meses. O problema é que o tio é uma figura muito sinistra, além de morar em uma casa velha no fim do mundo. O lugar onde ele vive está mais para um pantanal insalubre do que para uma praia turística.
Curioso, o narrador do conto fica perambulando pela residência do tio em busca de algo para se distrair. Não demora para ele descobrir os segredos mais horripilantes do anfitrião. Em um freezer no porão da casa, há algo que tornará a estada natalina do rapaz e de sua família naquele lugar uma experiência extremamente perigosa. Prepare-se para surpresas da narrativa que tem certo tom fantástico e para as delícias do texto que está no português de Portugal.
6) “Esquecemos de Nós – Um Conto de Vários Natais” (ebook independente) – Raul Damasceno (Brasil) – Drama romântico – 31 páginas – Gratuito – Disponível na Loja Kindle: clique aqui.
Em “Esquecemos de Nós – Um Conto de Vários Natais”, Raul Damasceno, jovem escritor cearense, acadêmico do curso de História na Universidade Estadual Vale do Acaraú e cronista, apresenta uma de suas primeiras narrativas curtas. Lançada em 2020, essa história retrata um drama romântico homoafetivo. Nela, um jovem que sonha em ser escritor se apaixona pelo primo de primeiro grau.
O enredo de “Esquecemos de Nós – Um Conto de Vários Natais” se passa sempre nos dias próximos ao Natal (na véspera, no próprio Natal ou no dia seguinte). A trama vai de 2009 a 2019. Em um texto que mescla narrativa em primeira e em terceira pessoa, o leitor conhece o jovem Luan. Ele é apaixonado por Caio, seu primo. Apesar de morar em Fortaleza, com a mãe, Caio viaja todo final de ano para o interior do Ceará. É na casa dos pais de Luan que a família toda passa as festas de final de ano. A proximidade dos primos nas férias de Verão faz aflorar os sentimentos de ambos.
Entretanto, Luan sonha em ser escritor. Assim, ele deixa o Ceará e vai viver sozinho na cidade de São Paulo. Na capital paulista, o rapaz irá descobrir o quão dura pode ser a vida em uma metrópole. Sentindo saudades de casa, da mãe e do primo, Luan mergulha no trabalho como assistente de cinema e em relacionamentos ocasionais. Sua meta é esquecer a vida antiga e a paixão por Caio.
7) “Dia Cinza de Natal” (ebook independente) – Yasmim Ferreira (Brasil) – Drama – 20 páginas – Gratuito – Disponível na Loja Kindle: clique aqui.
“Dia Cinza de Natal” é o drama produzido por Yasmim Ferreira, uma jovem escritora paraibana. Apaixonada por literatura e tecnologia, ela estreou nas narrativas curtas com a publicação de “Linhas e Palavras” (ebook independente) em abril de 2020. Sete meses depois, a autora lançou “Dia Cinza de Natal”, o retrato ácido da vida de um rapaz viciado em drogas.
Nesse conto, acompanhamos os relatos de Diogo, o narrador-protagonista de 17 anos. Ele apresenta sua história quase sempre nas vésperas de Natal – o capítulo 1 se passa em 24 de dezembro de 2017, o capítulo 2 em 24 dezembro de 2018 e o capítulo 3 em 24 dezembro de 2019 (apenas o epílogo quebra essa lógica – ele se passa em janeiro de 2020). Após a morte dos pais, vítimas de um acidente de carro, Diogo e Rodrigo, seu irmão mais novo, são levados para um internato. Eles não se habituam à vida na instituição socioeducativa e fogem dali.
Para sobreviver, os jovens começam a trabalhar em um bar. Graças à ajuda do dono do estabelecimento, Diogo e Rodrigo podem dormir em um quartinho nos fundos do prédio. Enquanto Rodrigo se torna o melhor funcionário do bar, Diogo cai nas drogas. Deprimido com a morte trágica dos pais, o irmão mais velho se entrega às bebidas e aos entorpecentes. Dessa maneira, sua vida afunda cada vez mais.
Com essa coletânea de sete contos natalinos tão diversificada, o Bonas História deseja um feliz natal para todos os seus leitores, autores e apoiadores.
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