Primeira integrante da literatura sul-coreana e primeira mulher asiática laureada pela Real Academia Sueca de Letras, a romancista e poetisa de 53 anos apresenta obras ficcionais com prosa poética, denúncia social e estrutura narrativa convencional.
Na semana passada, foram revelados os vencedores do Prêmio Nobel de 2024. Como o Bonas Histórias é um blog de literatura, cultura e entretenimento (algo que agradeço todos os dias e todas as noites ao Deus Pai Todo Poderoso – mesmo sendo ateu), vamos focar na seção mais artística da honraria – o Nobel de Literatura. É sobre isso o que discutiremos no post de hoje da coluna Premiações e Celebrações. Até porque, admito sem um pingo de vergonha na cara, não saberia sequer começar os comentários sobre os premiados das outras cinco categorias: Medicina, Paz, Física, Química e Ciências Econômicas.
Depois de dois autores europeus, o norueguês Jon Fosse (em 2023) e a francesa Annie Ernaux (em 2022), a Real Academia Sueca de Letras, Histórias e Antiguidades laureou Han Kang, a primeira representante da literatura sul-coreana a conquistar o Nobel de Literatura. Ela também é a primeira figura literária efetivamente da Ásia a comemorar essa honraria desde o genial Kenzaburo Oe, japonês premiado em 1994 e autor de obras-primas como “Uma Questão Pessoal” (Companhia das Letras) e “O Grito Silencioso” (Francisco Alves).
Usei o termo “efetivamente” na frase anterior porque, convenhamos, os últimos asiáticos premiados são praticamente europeus ou foram ocidentalizados. Kazuo Ishiguro, vencedor em 2017 e romancista do maravilhoso “Os Vestígios do Dia” (Companhia das Letras), é naturalizado britânico e só escreve em inglês. Falar que ele é japonês é uma piada (de mal gosto). E o chinês Mo Yan, laureada em 2012, é mais lido no Ocidente do que em seu país natal. O motivo, claro, é a censura imposta pelo governo comunista de Pequim, que nunca viu com bons olhos a maioria das histórias do autor.
Por isso, vejo o feito de Han Kang também como uma conquista da literatura e da cultura sul-coreana. Há alguns prêmios que conferem uma dimensão que extrapola o caráter individual do vencedor. Quando José Saramago, autor de “Ensaio sobre a Cegueira” (Companhia das Letras), “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (Companhia das Letras) e “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (Companhia das Letras), ganhou o Nobel de 1998, a literatura em língua portuguesa celebrou a honraria recebida por extensão. Quando “O Segredo dos Seus Olhos” (El Secreto de Sus Ojos: 2009) levou para casa a estatueta do Oscar em 2010, o cinema argentino inteiro celebrou. E quando Karol G (sim, estou a colocando no mesmo parágrafo de Saramago e do trabalho cinematográfico de Juan José Campanella) se torna a cantora latino-americana mais ouvida no mundo (graças a onipresente “Si Antes te Hubiera Conocido” – ainda vou comentar essa canção na coluna Músicas), o feito é indiretamente da música colombiana.
O Prêmio Nobel de Literatura de 2024 só vem reforçar algo que até os extraterrestres devem ter notado lá do espaço: nas primeiras décadas do século XXI, a dona do campo artístico-cultural do planetinha azul é a Coreia do Sul. Depois da febre do K-Pop, da supremacia do cinema sul-coreano com a conquista do Oscar por “Parasita” (Gisaengchung: 2019) e do sucesso internacional dos doramas, chegou a vez dos escritores do país mais charmoso do mundo (pelo menos segundo o conceito do soft power) demonstrarem seu talento. Há inclusive, segundo dizem, uma canção de um sambista de lá que fala justamente do florescimento da ficção e da poesia sul-coreanas. Os versos da música seriam mais ou menos assim: “Chegou a hora desses escritores de olhos puxados mostrarem seu valor/Eu fui à Seul, fui pedir ao governo para me publicar/Salve as ruas de Insadong/Põe os óculos, eu quero ler/Eu quero ver o tio Sam aplaudindo os coreanos como todo mundo faz”.
Vale a pena citar que o movimento de ascensão da Coreia do Sul ao primeiro plano da arte e da cultura internacional se chama Hallyu. A Onda Coreana, como o esforço governamental é chamado popularmente, foi um programa estatal dos anos 1990 que estimulou o desenvolvimento da música, do cinema, da gastronomia, da televisão, da literatura, da língua e da moda locais. Além de reforçar a identidade cultural do país internamente, o Hallyu visava a exportação de produtos e serviços da indústria artística (também conhecida pelo termo “indústria criativa”). Pelo visto, os resultados são extremamente positivos e não param de dar novos frutos.
Aos 53 anos, Han Kang, o mais novo reflexo da Onda Coreana, nasceu em Gwangju e vive desde os dez anos de idade em Seul. Ela é filha de Han Seung-won, romancista que teve destaque exclusivamente nacional. Para falar a verdade, os vínculos da família da Nobel com a literatura não param por aí. Dois dos irmãos de Kang (como no coreano o sobrenome precede o nome da pessoa, Kang é o que chamamos no Brasil de primeiro nome e não a designação da família) são também romancistas. O marido dela é crítico literário e professor de literatura. E o filho do casal administra uma livraria na capital sul-coreana. Se isso não for um clã mergulhado no universo dos livros, não sei mais o que é imersão literária.
Após se formar em Literatura, Han Kang trabalhou por muitos anos como jornalista em veículos impressos. Em 1993, estreou na literatura com uma antologia poética. A partir daí, lançou regularmente livros de vários gêneros: romances, novelas, coletâneas de contos e coleções de ensaios. Até pela preferência do público leitor nos quatro cantos do planeta, suas obras mais populares são os romances.
Além de escritora ficcional e poetisa, Han é atualmente professora no Instituto de Artes de Seul. Ela só passou a ser vista com mais atenção pela crítica e pelos leitores internacionais quando “A Vegetariana” (Todavia), romance de 2007, foi traduzido para o inglês e conquistou em 2016 o Man Booker Prize, uma das principais premiações literárias do Ocidente. A partir daí, essa obra foi traduzida para vários idiomas: francês, italiano, alemão, espanhol, catalão, galego, português, sueco, finlandês, húngaro, grego, holandês, croata, polonês, russo, albanês, islandês, servo, tcheco, turco, indonésio, tailandês, chinês, japonês, vietnamita e árabe. Uma vez encantado com essa trama, o mundo foi atrás do restante do portfólio narrativo da autora.
Além de “A Vegetariana”, os brasileiros têm à disposição em português outros dois livros da Nobel: “Atos Humanos” (Todavia) e “O Livro Branco” (Todavia), lançados respectivamente em 2014 e 2016 em coreano. Legal notar que a Editora Todavia teve a preocupação de traduzir esses títulos diretamente do idioma original (e não das versões inglesas ou francesas, como se fazia comumente no Brasil há algumas décadas).
A literatura de Han Kang, a primeira mulher asiática premiada pelo Nobel de Literatura (os outros laureados do continente foram homens: dois japoneses e um chinês – se você considerar Kazuo Ishiguro como asiático, então são três japoneses), tem como principais características a prosa poética, a denúncia social e a estrutura narrativa convencional. O que mais atrai os leitores ocidentais é o olhar sensível e o texto charmoso para complexos problemas da sociedade sul-coreana. Não por acaso, essas são marcas de alguns dos romancistas locais mais lidos no Ocidente – daí a minha afirmação que o prêmio é da literatura da Coreia do Sul como um todo e não apenas do portfólio artístico de Han. Por exemplo, no finalzinho do ano passado, comentei na coluna Livros – Crítica Literária o romance “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” (Intrínseca), de Cho Nam-Joo. Essa obra denuncia o machismo da cultura do extremo oriente e se parece muitíssimo com a estética e o conteúdo das publicações da agora escritora Nobel.
Para os leitores do Bonas Histórias que ficaram interessados em conhecer o trabalho literário de Han, vou resumir os títulos que já entraram no radar da Todavia, a editora brasileira que tem os direitos autorais da sul-coreana em nosso país. Em “A Vegetariana”, conhecemos Yeong-hyn, uma mulher que decide abolir a carne de sua vida. Sua decisão envolve todo tipo de contato carnal, não apenas o aspecto gastronômico. Assim, ela deixa de fazer sexo com o marido, o que provoca um caos doméstico e simboliza a subversão feminina ao patriarcalismo e ao machismo da sociedade sul-coreana.
Já a trama de “Atos Humanos” é construída com base em um episódio real: o massacre promovido pelo governo a um grupo de estudantes universitários que protestava em prol da democracia na cidade de Gwangju em 1980. Ao iluminar de forma ficcional as memórias de personagens que sobreviveram e morreram tragicamente, a autora descreve com beleza os dramas sentimentais e espirituais da população vítima dos desmandos do Estado.
Por sua vez, “O Livro Branco” se passa em uma cidade europeia coberta de neve. No frio do Inverno do Velho Continente, uma escritora de origem asiática rememora a morte da irmã recém-nascida. Esse evento ocorrido na infância foi um enorme trauma para a família inteira e marcou a vida de todos. No que é considerada a sua obra mais pessoal, Han Kang mostra com força, beleza e simbolicamente o luto feminino.
“작별하지 않는다” (ainda sem edição em português) é o mais recente romance da autora asiática. Lançado em 2021, ele será publicado no Brasil no primeiro semestre de 2025 pela Editora Todavia. Nessa narrativa, acompanhamos a relação de amizade de Inseon e Kyungha. Depois de um acidente, Kyungha viaja para a Ilha de Jeju para cuidar do passarinho de estimação da amiga.
E aí, ficou interessado(a) em conhecer mais o portfólio da escritora que acabou de adentrar ao panteão dos monstros sagrados da literatura?! Se a resposta foi positiva, saiba que você se juntará a uma pequena multidão. A premiação do Nobel já impactou a procura pelos títulos de Han tanto no Brasil quanto no exterior. Para termos a noção do impacto da honraria nas vendas, no dia seguinte ao anúncio da Academia Sueca, o site da Amazon Brasil registrou o crescimento de 15.000% (eu escrevi 15 mil por cento!!!) na comercialização dos livros da autora laureada. É mais ou menos essa a dimensão que o prêmio confere ao seu(sua) felizardo(a). Ou seja, Han Kang não só levou para casa o diploma mais invejável da literatura, a tradicional medalha de ouro 18 quilates com o perfil de Alfred Nobel e a bagatela de 11 milhões de coroas suecas (mais ou menos US$ 1 milhão). Ela também se tornou o foco da atenção do mercado editorial para sempre.
Há uma brincadeira do mundinho literário que parece nunca perder a validade: a Real Academia Sueca de Letras não premia o escritor que o mundo conhece e admira; ela alça ao estrelato o escritor que o planeta vai ler e festejar dali em diante. Uma vez que entendemos essa particularidade da premiação, pergunto: é ou não é uma bela conquista da literatura sul-coreana, hein?! Para ser mais preciso em meu último comentário deste post da coluna Premiações e Celebrações, talvez fosse melhor chamar esse acontecimento como mais um feito da Hallyu, a Onda Coreana que não para de mostrar sua força em todas as vertentes artístico-culturais.
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