Em cartaz no Espaço Cultural Encena, a nova produção da companhia de teatro liderada por Orias Elias e Walter Lins apresenta uma comédia musical ambientada em uma loja de artigos eróticos.
Hoje é dia de teatro, bebê! Como os leitores mais assíduos (e atentos) do Bonas Histórias devem ter percebido, fazia um booooom tempo que eu não analisava uma peça teatral. Os últimos espetáculos cênicos comentados no blog foram, se minha memória não estiver enganada, “Acusticando em Vários Tons”, “60! Década de Arromba – Doc.Musical”, “Marte, Você Está Aí?” e “Ato Falho”. Bons tempos aqueles quando tínhamos mensalmente novidades na coluna Teatro, né? Isso não quer dizer que eu não esteja frequentando regularmente os teatros paulistanos. O problema é que algumas editorias do Bonas Histórias acabaram um tanto preteridas nos últimos anos (joguemos a culpa na realidade pandêmica e está tudo resolvido). Isso aconteceu não apenas com o conteúdo teatral, mas também com as colunas Exposições, Gastronomia e Passeios. Como consequência, tivemos um maior destaque para as seções Livros – Crítica Literária, Contos & Crônicas, Talk Show Literário, Cinema, Música e Dança.
Peço desculpas publicamente aos fãs da coluna Teatro e prometo corrigir minha falha daqui para frente (algo que já comecei a fazer, em 2023, com as outras partes do blog até então desprezadas). Minha promessa (anote aí e pode me cobrar depois!) é que, nos próximos meses, deixarei o papel de mero espectador dos palcos cênicos e voltarei a assumir a carapuça de crítico teatral. E para valer minhas palavras, vou comentar hoje uma divertida peça de uma companhia teatral que conheci no ano passado e que me surpreendeu positivamente. Estou me referindo à comédia musical “Sex Shop Café”, de Gilberto Amendola, e à Encena Companhia de Teatro, grupo sediado no Jardim Jussara e que possui 25 anos de existência. Tenho certeza de que é uma ótima reestreia da coluna Teatro, senhoras e senhores!!!
Comecemos falando da peça e de seu autor. “Sex Shop Café” é um dos trabalhos teatrais do jornalista, dramaturgo e escritor Gilberto Amendola. Mais conhecido pela produção jornalística nas editorias de cidade, política, economia e cultura, Amendola trabalha atualmente no O Estado de São Paulo e na Rádio Eldorado, além de manter o Balcão do Giba, blog dedicado ao universo dos bares e da coquetelaria. Há alguns dias, ele assumiu a coluna Direto da Fonte, uma das mais icônicas do jornal paulistano. Assim, substitui Sônia Racy, que ficou por mais de três décadas à frente da seção mais importante do Caderno 2 do O Estado de São Paulo.
Os livros de Gilberto Amendola são: “Um Mundo Sem Bar e Outras 50 Crônicas Pandêmicas” (Patuá), coletânea de narrativas curtas publicada em maio de 2022 com as colunas do autor que saíram no Estadão no período mais crítico da Covid-19; “Corações de Mentira Não Pagam Aluguel” (Chiado Books), coleção de crônicas de maio de 2016; “Maria Antônia – A História de Uma Guerra” (Letras do Brasil), relato histórico lançado em janeiro de 2008 sobre o movimento estudantil paulista nos anos da Ditadura Militar; “Meninos Grávidos – O Drama de Ser Pai Adolescente” (Terceiro Nome), ensaio de janeiro de 2006; e “Assassinatos Sem Nenhuma Importância – Banalização da Violência no Brasil” (Terceiro Nome), ensaio de janeiro de 2005.
No papel de dramaturgo, a vertente menos conhecida de sua produção textual, Gilberto Amendola começou criando peças teatrais para empresas de 1996 a 1998. No circuito comercial, ele estreou, em 1998, com o espetáculo “Asdrubal C – O Viajandão”. Na sequência, vieram “Antibióticos”, “Espeto de Coração”, “Sex Shop Café”, “Nos Anos 80”, “A Peça é Comédia?”, “Pirou, Jussara? Pendurar a Vovó no Banheiro” e “Jussara City – O Paraíso das Enchentes”. A maioria desses espetáculos gira em torno do humor de costumes, críticas sociais, temas contemporâneos e comédias musicais.
É legal mencionar que vários dos trabalhos teatrais de Amendola são produzidos pela Encena Companhia de Teatro. O grupo já apresentou “Espeto de Coração”, “Sex Shop Café”, “Nos Anos 80” e “Pirou, Jussara? Pendurar a Vovó no Banheiro”. Inclusive, alguns espetáculos do dramaturgo foram desenvolvidos especialmente para a trupe paulistana. São os casos de “A Peça é Comédia?” e “Jussara City – O Paraíso das Enchentes”. Em outras palavras, Encena e Gilberto Amendola possuem uma parceria frutífera e de longa data.
Por falar na Encena, preciso apresentar esta companhia para os leitores da coluna Teatro. Fundada na cidade de São Paulo, em 1998, pelos atores Orias Elias e Walter Lins, o grupo nasceu para promover a arte cênica de forma ampla. As peças produzidas pelo coletivo teatral vão do clássico ao contemporâneo e da comédia ao drama. O nome disso, senhoras e senhores, é diversidade! Os espetáculos de Elias e Lins contemplam os melhores textos teatrais que foram desenvolvidos no Brasil e no exterior.
Em 2023, se minha calculadora não estiver com falhas consideráveis, a Encena Companhia de Teatro completa 25 anos de existência, uma marca que pouquíssimas iniciativas culturais alcançaram no Brasil, sil, sil. Ao longo desse período, Orias Elias e Walter Lins desenvolveram um núcleo fixo e talentoso de artistas que apresenta regularmente espetáculos, como saraus, leituras dramáticas e shows musicais, além, claro, das peças teatrais, a essência do grupo. Como consequência, além de levar o teatro de qualidade para muita gente, eles ainda revelaram/revelam novos talentos para os palcos nacionais. Incrível, né?!
A Encena já foi contemplada duas vezes pelo PROAC (Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo). Com o apoio do mais relevante programa paulista de incentivo à cultura e às artes, o grupo promoveu, em 2009 e 2015, as peças “Ossos do Barão” e “A Escada”, ambas de Jorge Andrade, por várias cidades. Em 2011 e 2020, a trupe liderada por Elias e Lins foi premiada pelo Programa de Fomento ao Teatro, concedido pela cidade de São Paulo. Nesse caso, o patrocínio governamental permitiu a exibição de “Pirou, Jussara?”, peça de Gilberto Amendola com a proposta de conscientização social para o problema das enchentes nos bairros periféricos da maior metrópole brasileira.
É importante dizer que, ao longo dessas duas décadas e meia de existência, o incentivo estatal aconteceu pontualmente. Os demais espetáculos da Encena foram realizados de maneira independente e utilizaram recursos próprios da companhia e de seus líderes. Só quem trabalha com cultura e arte no Brasil sabe as dificuldades que essa opção acarreta. Por isso, o correto é enxergarmos a Encena Companhia de Teatro como um grupo semiprofissional. Se por um lado ela está longe (muuuuuito longe!) de ser uma trupe amadora, por outro lado os espetáculos realizados não permitem que sua equipe viva exclusivamente da arte cênica. Todos os atores, atrizes e profissionais da parte técnica da Encena possuem outras carreiras, praticadas durante a semana e no horário comercial.
Depois de realizar incontáveis apresentações em vários palcos paulistanos (e, em alguns casos pontuais, em palcos do interior de São Paulo), a Encena Companhia de Teatro inaugurou, em 2009, seu espaço próprio para espetáculos no Jardim Jussara, bairro da Zona Oeste da cidade de São Paulo. O local é chamado de Espaço Cultural Encena e abriga, ao mesmo tempo, o teatro e a sede do grupo. O amplo casarão do Espaço Cultural Encena fica no número 130 da Rua Sargento Estanislau Custódio. Para quem não conhece a região, posso dizer que o endereço está situado perto do Parque Chácara do Jockey e da Avenida Pirajussara. Para os íntimos, o QG do grupo teatral fica na chamada Grande Vila Sônia.
O teatro do Espaço Cultural Encena tem capacidade para 60 espectadores. Se ele é pequeno, ao mesmo tempo é uma graça. A proximidade com o palco e a compactação da plateia (ao estilo ombro no ombro e joelhos nas costas) promovem um ar intimista e de teatro raiz. Impossível não se apaixonar por sua atmosfera. No hall de entrada, o público é recebido por uma ampla biblioteca e pelos cartazes dos principais espetáculos realizados pelo grupo. No corredor que dá acesso ao teatro, as paredes são decoradas com imagens de atores e atrizes de relevância nacional e internacional. Ao final dessa ala, ainda há um simpático jardim.
Dentro do teatro, são seis fileiras de dez lugares cada. Todo mundo fica bem pertinho um do outro e o conforto é, sendo bem otimista, regular. Não espere, portanto, luxos ou assentos almofadados. O palco é estreito e o pé direito muitíssimo alto permite, quando necessário, a configuração de um segundo andar cênico (como aconteceu em “Sex Shop Café”). Além da parte visível ao público, o local também possui camarim e um galpão.
A casa própria foi importante para a Encena Companhia de Teatro por três motivos. Em primeiro lugar, a inauguração da sede foi um marco para a consolidação do trabalho de tantos anos de Orias Elias e Walter Lins. Além de receber com mais atenção e carinho o público (algo que eles fazem como ninguém!!!), o grupo pôde ensaiar mais, aumentar o número de espetáculos e ampliar o leque de ações culturais. Hoje em dia, a companhia possui um canal no Youtube em que promove vários projetos audiovisuais, como “Memórias da Cena” (voltado para a biografia de atores e atrizes nacionais) e “Você Sabia – Jussara City” (projeto educacional da área socioambiental). As gravações acontecem quase sempre no Espaço Cultural Encena.
Além disso, o teatro particular representou uma economia de custos para a companhia. Ao invés de procurar recorrentemente espaços na cidade para suas apresentações, com valores altos de locação, a Encena realiza agora tudo dentro de casa. Por fim, o local próprio ainda abriga um galpão onde são armazenados os figurinos e as cenografias das mais de 20 peças que o grupo revisita constantemente. Essa proximidade entre o local onde os materiais são guardados e onde os espetáculos são encenados ajudou, obviamente, bastante na logística do grupo (e na qualidade final do produto exibido ao público).
Vale a pena comentar que, além das peças teatrais da trupe de Orias Elias e Walter Lins, o Espaço Cultural Encena possui uma variada agenda cultural. Não à toa, o lugar foi designado no nome como um espaço cultural e não simplesmente como um teatro. No local, já aconteceram saraus, sessões de cinema, leituras dramáticas, shows musicais, oficinas de teatro, pintura, clown e música, eventos privados, palestras e gravações audiovisuais. Com o fim da pandemia da Covid-19, os trabalhos vão sendo retomados. Impossível não ficarmos encantados com as atividades realizadas ali.
Eu conheci a Encena Companhia de Teatro e o Espaço Cultural Encena em meados do ano passado. Paulo Sousa, autor do romance “A Peste das Batatas” (Pomelo Editora) e da coletânea de haicais “Acinte 2020” (Publicação independente), chamou a turminha das Cartas Mágicas (nem queira saber o que é isso!!!) para conferir “Ossos do Barão”. Segundo as palavras do meu amigo escritor, era a reestreia da peça do grupo cênico que um amigo dele estava trabalhando. Por falar nisso: abraço, Gustavo! Confesso que, na hora que recebi o convite, pensei com a devida aflição: “Deve ser mais uma daquelas companhias amadoras de teatro que realizam espetáculos sofríveis para os familiares e amigos dos esforçados atores”. Quem nunca foi em um teatro desse tipo, né?! Como minha amizade com Paulo é longa e mais forte do que os desgostos propiciados por programas artístico-culturais de gostos possivelmente duvidosos, lá fui eu com a cara e a coragem.
Entretanto, minhas expectativas não poderiam estar mais equivocadas em relação à excelência da Encena e à qualidade de “Ossos do Barão”. A peça foi excelente!!! Desde “Ato Falho”, da fenomenal Bruna Anauate, não era surpreendido positivamente dessa maneira por um espetáculo teatral. A companhia de teatro paulistana e seu pequeno espaço cultural no Jardim Jussara me encantaram pra valer. Fui tão bem recebido pelo grupo (eles abraçam e conversam com todos da plateia antes e depois das apresentações) que fiquei quase uma hora proseando com a equipe da Encena depois da peça (algo raro para mim, um ser antissocial e tímido).
Além de talentosíssimos, Orias Elias e Walter Lins são extremamente simpáticos e trabalhadores. Eles atendem ao público como se fossemos velhos amigos e não se negam a um dedo de prosa sobre teatro, arte, cultura, literatura, cinema e a vida no geral. Curiosamente, enquanto parte da equipe fala com os espectadores no hall do teatro, outra parte faz o serviço pesado de monta-desmonta da peça no backstage. Há muito tempo não me deparava com gente do teatro tão legal, competente no ofício e esforçada. É nítido que eles fazem o que amam e se prepararam muito para estar em cima do palco.
Por isso, não titubeei quando Paulo me disse no princípio do mês passado: “Bona, tem nova peça da Encena. Você vai?”. E eu ia perder?! Lá fomos eu e ele para a estreia de “Sex Shop Café” no último sábado de abril. Ainda pensando se tratar de um grupo amador e de peças de baixa qualidade (sabem de nada, inocentes!!!), os demais integrantes das Cartas Mágicas continuam não aparecendo no teatro, mesmo depois de confirmarem a presença. Beijo, Mara, Fabi e Marcelinha. E abraços, Enzito e Allan. Vocês não têm ideia do quão caprichada era a dupla de peças que vocês perderam, meus amigos! Talvez este post da coluna Teatro ajude vocês a descobrir que os convites do Paulo não são barcas furadas.
Admito que “Ossos do Barão”, como produção cênica, é um espetáculo mais completo e de qualidade superior. Porém, “Sex Shop Café” é uma comédia musical engraçadíssima e mantém em patamares elevados o grau de excelência do grupo teatral do Jardim Jussara. Em cartaz desde 29 de abril de 2023, a nova temporada de “Sex Shop Café” será exibida pela Encena Companhia de Teatro até 29 de julho no Espaço Cultural Encena. A peça de Gilberto Amendola é dirigida por Orias Elias e Walter Lins e traz no elenco Thânia Rocha, Zulhie Vieira, Daniella Murias, Raul de Andrade, Flávia D’Álima, Gabriel Kadaj, Jess Correia e Viktor Lou, além dos próprios Orias Elias e Walter Lins.
Na equipe técnica, a produção musical e a operação sonora ficaram sob responsabilidade de Gustavo Barcamor e a operação da luz e a criação de vídeos ficaram a cargo de Bruno Fávaro. A música é de Fábio Salles e Orias Elias, a maquiagem e o figurino são de Walter Lins, o desenho de luz é de Cesar Pivetti, o cenário é de Orias Elias e os efeitos cenotécnicos são da dupla Jones Cortez e Sergio Igino.
Esta é a sétima vez que a Encena Companhia de Teatro apresenta “Sex Shop Café”. Os espetáculos anteriores aconteceram em 2004, 2008, 2011, 2014, 2015 e 2018. Ou seja, essa é a primeira exibição da peça após a Covid-19. Enquanto as duas primeiras versões foram realizadas no Teatro Ruth Escobar e no Teatro Augusta, as demais já foram interpretadas no Espaço Cultural Encena.
As duas maiores novidades em relação ao último espetáculo de “Sex Shop Café”, de setembro e outubro de 2018, foram: (1) a substituição de Luis Bezerra (que apareceu no final da sessão de estreia para dar um “oi” para o povo) por Viktor Lou (em sua primeira participação nos palcos cênicos e como novíssimo integrante da Encena) no papel do Padre Zeca; e (2) de Cristiane Fernandes (que continua na companhia, mas não participa dessa edição da peça) por Jess Correia no papel da mocinha Lourdes. Na ponta oposta, Orias Elias, Walter Lins, Zulhie Vieira e Flávia D’Álima vão para a sétima participação.
Para quem ficou curioso sobre as demais peças de Gilberto Amendola que a Encena produz, podemos citar “Jussara City – O Paraíso das Enchentes” (realizada no primeiro semestre do ano passado), “Nos Anos 80” (em 2008 e 2014), “Pirou, Jussara? Pendurar a Vovó no Banheiro” (em 2012, 2013 e 2014), “Espeto de Coração” (em 2002) e “Antibióticos” (em 1998). Acredite se quiser, mas Amendola participou de alguns espetáculos como ator tanto em suas peças quanto em textos de outros dramaturgos. Juro que gostaria de ter assistido às suas atuações.
O enredo de “Sex Shop Café” se passa inteiramente em um café que foi transformado em sex shop. Ou seria um sex shop que serve comes e bebes? Agora não sei. Só sei que os proprietários do estabelecimento são um casal há tempos separado: Cátia (interpretada por Thânia Rocha) e Bruno (Orias Elias). Os dois não se suportam. Porém, em nome do ganha-pão, eles precisam se aturar diariamente no horário do expediente. Mesmo assim, as discussões e as brigas da dupla de sócios não são raras. Cada um parece ter uma estratégia diferente para atrair a clientela. Enquanto um acha que promover o show musical da drag queen Sônia Travis (Walter Lins) será bom para os negócios, o outro aposta na noite de autógrafos da atriz pornô Sandy (Flávia D’Álima).
Os clientes do sex shop são variados. Túlio (Gabriel Kadaj) é o rapaz nerd, muito tímido e gago. Sua gagueira é à la Raj, do seriado The Big Bang Theory: ela só aparece quando ele está diante de uma mulher. O doce e romântico rapaz se apaixona por ninguém mais, ninguém menos do que Sandy, a famosa atriz pornô. Igor (Raul de Andrade) é o judeu virgem que sonha em conseguir uma namorada. Enquanto esse dia não chega, ele brinca de papai e mamãe com Vera Fischer (Daniella Murias), sua boneca inflável.
A terrorista (Zulhie Vieira) adora detonar bombas utilizando os vibradores adquiridos na loja de Cátia e Bruno. Sua causa parece nobre e é extensa: luta pelo fim do modelo capitalista de produção, pela distribuição igualitária da renda, pela reforma agrária, pela destruição das fazendas de comida transgênica, pelo fim do embargo econômico à Cuba, pelo fim das dívidas dos países do terceiro mundo, em prol dos animais em extinção, pela proteção da Floresta Amazônica e blábláblá.
Doris (Zulhie Vieira – sim, ela de novo!) é a mãe alcóolatra e hipocondríaca que exige a presença do filho único em casa. Quando ele não está por perto, a senhora vai à procura do rebento em todos os lugares (inclusive no sex shop). E Lourdes (Jess Correia), a mocinha tímida que gosta de adquirir fantasias eróticas para apimentar a relação com o marido. Além de provar um modelito mais sexy do que o outro, a jovem adora bisbilhotar o que os demais clientes estão fazendo.
À medida que a peça avança, mais personagens aparecem, o que gera ainda mais confusão na loja de Bruno e Cátia. Em um passe de mágica, a boneca Vera Fischer ganha vida e se torna uma mulher real (para alegria e, mais tarde, desespero de Igor). Vera se torna amiga de Sônia Travis, incumbida de ensinar como uma mulher deve ser e como ela deve se comportar. Mais tarde, é o Padre Zeca (Viktor Lou), um religioso para lá de picareta e sanguinolento, que passará a frequentar o sex shop, para o pânico de Sandy e dos demais clientes.
A partir desse núcleo de dez ou onze personagens (só assistindo ao espetáculo para entender o motivo de eu ter colocado “dez ou onze” nesta frase) é que gira o conflito de “Sex Shop Café”. Na verdade, o correto seria eu dizer conflitos, porque são mais do que um. Para ser mais específico em meu comentário, são várias as subtramas que se desenrolam simultaneamente. As principais são: (1) entre tapas e beijos, Cátia e Bruno tentam fazer seu negócio dar certo; (2) história de amor pouco ortodoxa de Túlio e Sandy; (3) relação tumultuada de Igor e Vera Fisher; (4) sonho de Sônia Travis em ser uma diva do show business; (5) passado de Sandy com o Padre Túlio; (6) terrorista que não quer ser descoberta pela polícia.
Posto à mesa o enredo, comecemos a análise propriamente dita da peça. A maior qualidade do texto de Gilberto Amendola é a pluralidade narrativa. Acontecem muitas coisas simultaneamente em “Sex Shop Café”. Assim, a peça ganha em velocidade, ritmo e profundidade. Adorei esse recurso. Quando você pisca, o espetáculo já terminou. Aí você pensa: normal, devem ter se passado trinta ou quarenta minutos. Porém, quando se olha no relógio, se foram quase uma hora e meia. Incrível! Nesse sentido (pelo ritmo veloz da trama), essa peça é até mesmo superior a “Ossos do Barão” (que demora muito para pegar, mas depois que pega...).
Com tantas personagens e tantos conflitos tomando conta do palco concomitantemente, é até difícil apontar quem são os protagonistas e quem são os coadjuvantes. Confesso que fiquei me interrogando, durante a sessão teatral, quem eram as figuras centrais e quem eram as figuras periféricas desta história. E se havia um ou dois vilões em “Sex Shop Café”. Sei que isso é coisa de quem gosta de Teoria Literária (conceitos que podem ser aplicados em qualquer produção que tenha narrativas). E saiba que até agora não cheguei a uma conclusão sobre essas questões (principalmente sobre a quantidade de vilões).
Pela perspectiva da teoria ficcional (é melhor chamarmos assim, em um post da coluna Teatro, do que de Teoria Literária), talvez o grande protagonista seja, no final das contas, o estabelecimento comercial de Cátia e Bruno. Além de reunir um séquito um tanto pitoresco nos dois lados do balcão, o sex shop café tem uma dinâmica própria, que faz a roda da trama girar naturalmente. Utilizando a intertextualidade literária, dá para comparar o cenário dessa peça à ambientação de “Small G” (Mandarim), romance de Patricia Highsmith. A loja-café erótica é a versão brasileira (e mais ou menos heterossexual) do bar-restaurante Jakob's.
Outro ponto positivo é que o espetáculo é bastante engraçado. Você acha redundante dizer que uma comédia é divertida?! Se sim, é porque você tem tido sorte em suas experiências cinematográficas e teatrais. Infelizmente, eu não tenho esse mesmo êxito com tanta regularidade. Não foram poucas às vezes em que não achei a menor graça na comédia conferida. Por isso, eu costumo separar os conceitos: comédia é a pretensão da produção artística ser engraçada; e peça e filme engraçados são aqueles que fazem a plateia rir. E, nesse caso, eu atesto com segurança: a comédia musical de Amendola que a Encena produz é engraçadíssima.
O que mais gostei é que o humor de “Sex Shop Café” não é tão apelativo quanto imaginei à princípio. Pela temática sexual e pelos tipos estereotipados que são retratados no espetáculo, o caminho mais fácil a seguir seria pelo lugar-comum e pela comicidade pueril. Contudo, a graça da peça se dá tanto pelo enredo inteligente e pelas cenas bem construídas quanto pelo improviso dos atores no palco e por alguns recursos visuais inusitados (como os promovidos com a boneca Vera Fisher). Evidentemente, não é uma comédia para chorar de rir, mas dá sim para sair da sessão com a alma mais leve e com o sorriso no rosto.
Neste meu post do Bonas Histórias, classifiquei a peça como comédia musical. Afinal, é dessa forma que a Encena e Gilberto Amendola a catalogaram. Porém, não é errado afirmar que “Sex Shop Café” navega também por outros gêneros narrativos: suspense, drama, drama histórico, romance, tragicomédia, narrativa noir, crítica de costumes, thriller policial e comédia romântica. Uma das graças do enredo deste espetáculo está justamente no navegar fluido pelos vários estilos da ficção.
Outra questão que merece elogios foi a adaptação do texto da peça para a realidade contemporânea. É assustador notar como uma produção dos anos 2000 já envelheceu e precisou passar por adaptações sutis para se manter atual e engraçada. E, na maior parte das vezes, as novidades inseridas pela equipe da Encena foram satisfatórias e renderam boas risadas. Assim, “Sex Shop Café” manteve intacta a pegada anárquica e o tom hilário da história original.
Já que entramos na seara do trabalho da Encena, vamos falar agora da companhia teatral. O que mais me encantou nas duas peças que assisti do grupo foi a qualidade do elenco. Não há ninguém ruim no palco. E olha que eram dez profissionais atuando em “Ossos do Barão” e outros dez em “Sex Shop Café”. A questão é que a equipe da Encena Companhia de Teatro não é formada apenas por bons atores e atrizes, mas por um time muito acima da média. Não preciso comentar a excelência cênica de nomes como Orias Elias, Walter Lins, Thânia Rocha, Zulhie Vieira, Luis Bezerra (ausente nesta edição da comédia musical, mas figura emblemática dos espetáculos da Encena), Daniella Murias e Flávia D’Álima. Todos são espetaculares e muitas vezes roubam a cena naturalmente. Assisti-los no palco é um privilégio para a plateia do Espaço Cultural Encena.
O interessante a ser notado é que a nova geração que chega também bebe na fonte de excelência dos mais experientes. Aí os méritos vão para o trabalho de formação e de direção de Elias e Lins. A impressão que a plateia tem é que Jess Correia, por exemplo, é veterana nos palcos. Não! Ela chegou há pouco no grupo do Jardim Jussara e já brilha. E aposto que ninguém na plateia de “Sex Shop Café” percebeu que Viktor Lou estava estreando nos palcos. Sua segurança e desenvoltura em um papel para lá de complicado foram tamanhas que ele teve a ousadia de improvisar, o que gerou boas risadas nos espectadores. Por tudo isso, eu falo sem o menor medo de parecer exagerado ou condescendente: o elenco da Encena é competentíssimo!
A produção das peças também é digna de menção honrosa. Mesmo no acanhado teatro do Espaço Cultural Encena, a companhia entrega espetáculos com cenários, efeitos sonoros e luminosos, trilha sonora e figurino impecáveis. Em alguns casos (como em “Sex Shop Café”), as produções da Encena são melhores do que as encontradas em muitos grupos teatrais mais renomados e em muitos teatros mais badalados do centro da cidade de São Paulo. Quando falo que o nível de profissionalismo e de excelência da Encena é top, não é à toa.
Tudo isso é entregue para o público em um local charmoso e que exala simpatia. Não me canso de elogiar a atmosfera do Espaço Cultural Encena nos dias de espetáculo e a receptividade dos integrantes da Encena Companhia de Teatro. Para se ter uma ideia do atendimento caloroso ao público, Orias Elias e Flávia D’Álima dão as boas-vindas para a plateia vestidos como sadomasoquistas e fazendo brincadeirinhas do tipo quebra-gelo com os visitantes. Hilário!!! O mais curioso é que esse não é o figurino de Elias na peça. Em “Sex Shop Café”, ele interpreta o dono da loja de materiais eróticos, um sujeito normal e de roupas sóbrias. Ou seja, o ator e diretor tem a preocupação de se vestir especialmente para a recepção da plateia. Impossível não se tornar fã de um artista com esse tipo de preocupação e humildade, além de enorme talento no teatro.
Se esses foram os pontos positivos de “Sex Shop Café”, eu preciso descrever para os leitores do Bonas Histórias os aspectos negativos. O primeiro deles é em relação às músicas. Por sinal, as sete canções da peça estão disponíveis no Spotify: (1) “Sex Shop Café”, (2) “Outras Bobajadas”, (3) “Ping-Pong na ONG”, (4) “Me Acode Amor”, (5) “Gemidos”, (6) “Fada Azul” e (7) “Morrer é um Saco”. Elas até são divertidas e empolgantes, mas possuem uma qualidade bastante inferior se comparadas à excelência do texto não musical do espetáculo.
E olha que falo isso mesmo achando que Walter Lins foi muito bem no vocal (e no papel da impagável Sônia Travis). A questão não é o cantor e sim as músicas em si. Elas não se sustentam fora do espetáculo, o que seria esperado de canções verdadeiramente boas. Para quem deseja saber o que é uma trilha sonora de qualidade em um musical, posso citar “O Homem de La Mancha”. Você sai da sessão cantarolando as músicas e, quando chega em casa, quer ouvi-las outra vez. Definitivamente, não é o que aconteceu em “Sex Shop Café”.
Além disso, as dancinhas do elenco durante as sequências musicais são mais pitorescas do que de qualidade. Em outras palavras, o clima no teatro, nesse instante, é de constrangimento mútuo (dos atores e da plateia). Também senti uma quebra no tipo de graça praticada em “Sex Shop Café” entre os dois momentos: o musical e as cenas tradicionais. Enquanto a primeira etapa segue mais para o humor verde e para o grotesco, a segunda caminha melhor pela sátira e pelo nonsense. Normalmente, o público mais refinado prefere a segunda opção. De qualquer forma, há um contraste evidente no tipo de humor praticado nessas duas partes do espetáculo.
Em relação à estrutura narrativa da peça, confesso que achei tolinhas algumas “surpresas” do enredo. Se as personagens no palco se surpreenderam com a identidade da terrorista e a verdadeira profissão da mocinha aparentemente ingênua que frequentava a loja, a maioria dos espectadores deve ter pensado: “Mas isso era óbvio desde a primeira cena, meu Deus! Como ninguém percebeu isso!!!”. Admito que não gosto quando o dramaturgo e o diretor teatral questionam a inteligência da plateia.
Também considerei o enredo de “Sex Shop Café” falho em alguns momentos. Por exemplo, achei desnecessárias as brincadeiras de interrupção da peça, em um diálogo intertextual sem o menor cabimento para a história. Além disso, não gostei da repetição de algumas piadas (“quem hoje em dia lê jornal”). Por melhores e mais pertinentes que sejam os comentários cômicos, suas repetições diluem os efeitos do humor na plateia. E o que dizer, então, do aparecimento extremamente rápido e atabalhoado do vilão (Padre Zeca) no meio do espetáculo? Sinceramente, não vi qualquer lógica nisso.
Quanto à parte técnica da peça, a única falha se deu no final. Por falar nisso, “Sex Shop Café” tem um excelente desfecho: original, forte e engraçado! Ao invés de se optar pela locução gravada da mensagem de fechamento do espetáculo, escolheu-se a fala ao vivo por um dos atores (Viktor Lou). Aí o público não ouviu boa parte do que ele disse. Possivelmente, o microfone estava desligado ou em um volume que não deu alcance para o teatro todo. Não seria mais fácil deixar essa passagem para o operador de som apertar o play em um áudio gravado? Acho que sim.
Repare que esses são problemas pontuais, que não tiram o brilho da versão de “Sex Shop Café” realizada pela sétima vez pela Encena Companhia de Teatro. Como fui à estreia, é bem possível que alguns equívocos (principalmente os técnicos) sejam resolvidos nas próximas sessões. O que parece ser um problema crônico, que preciso comentar aqui na coluna Teatro, e de difícil solução é a estrutura física pouco confiável do Espaço Cultural Encena. Apesar de ser um lugar gostoso, fácil de estacionar e que exala arte e cultura, o QG da Encena tem alguns graves problemas que fogem da alçada do grupo. É comum a falta de energia naquela região da cidade, o que obriga a companhia teatral a cancelar espetáculos ou prosseguir as peças à luz de velas. No Verão, é comum ter alagamentos nas ruas do bairro, dificultando o acesso do público e dos atores. Coisas de São Paulo. Coisas do Brasil.
Assista ao vídeo de apresentação de “Sex Shop Café” feito pela Encena Companhia de Teatro:
As sessões de “Sex Shop Café” acontecem em todos os sábados de maio, junho e julho no Espaço Cultural Encena (Rua Sargento Estanislau Custódio, 130 – Jardim Jussara) às 20h30. A duração da peça é de aproximadamente uma hora e quinze minutos e a classificação etária é a partir de 16 anos (não vai me dizer que você pensou em levar crianças em um evento chamado “Sex Shop Café”, né?).
A entrada é gratuita, sendo que no final do espetáculo a plateia é incentivada a contribuir com o que pode e/ou com o que achou justo pela experiência teatral. É nesse momento que conseguimos atestar realmente o quanto o público gostou do espetáculo. Nas duas vezes em que fui até o Jardim Jussara, não foram poucas as pessoas que fizeram contribuições que se aproximaram ou atingiram a marca dos três dígitos. No fim das contas, acho que é mais lucrativo (e democrático) para a companhia essa dinâmica de pagamento do que se cobrasse ingresso.
Como o teatro do grupo é pequeno e a procura tem sido grande (na estreia, a casa estava lotada), é bom reservar com antecedência seus ingressos para “Sex Shop Café”. Dá para fazer isso pela página da peça no site da Sympla. Assim, você não perde a viagem até o Espaço Cultural Encena. A única coisa que se espera para um evento com entrada franca é que quem reserva as vagas não falte ou atrase. Afinal, quando se reserva o ingresso, alguém ficou sem, né?
E, assim, fecham-se por ora as cortinas. Até o próximo espetáculo da coluna Teatro, pessoal!