Lançada no primeiro álbum do grupo em 1973, a composição de João Ricardo e Luli, que mistura vários ritmos e aborda o folclore nacional, se tornou um clássico da música popular brasileira e alçou a exótica banda de rock à consagração.
Na coluna Músicas de hoje, vamos discutir “O Vira”, uma das composições mais importantes da música popular brasileira e um ícone do rock nacional. Apesar de sua importância histórica e cultural, quando falamos do título dessa canção em 2023, muita gente acha que estamos nos referindo ao famoso hit do português Roberto Leal ou à hilária paródia do Mamonas Assassinas. Não! “O Vira” da qual estou me referindo neste post do Bonas Histórias é a principal criação de João Ricardo e Luli (cantora, compositora e escritora carioca também grafada como Luhli). A faixa foi interpretada pelo Secos & Molhados, banda composta por Ney Matogrosso, João Ricardo e Gérson Conrad e que surgiu como um meteoro nos anos 1970. E como todo bom meteoro que se preze, o grupo explodiu rapidamente no cenário musical, mas teve trajetória coletiva abreviada em pouco menos de dois anos.
“O Vira” foi a canção que catapultou a carreira do Secos & Molhados, um dos mais emblemáticos e originais conjuntos musicais brasileiros. O hit foi lançado no primeiro álbum do grupo, em 1973. Por falar neste disco, ele é considerado um dos mais importantes da nossa história. A Revista Rolling Stone Brasil elegeu, em outubro de 2007, “Secos & Molhados” (o álbum é homônimo à banda) como o quinto melhor da música nacional. Ele só perde em impacto e importância para “Acabou Chorare” (1972), dos Novos Baianos (1º lugar na lista da Rolling Stone), “Tropicália ou Panis et Circencis” (1968), dos tropicalistas Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Nara Leão e Tom Zé (2º lugar), “Construção” (1971), de Chico Buarque (3º lugar), e “Chega de Saudade” (1959), de João Gilberto (4º lugar).
O motivo dessa relevância é que “Secos e Molhados” não foi um álbum de uma só música. Ele trazia vários sucessos e canções que permanecem até hoje no imaginário coletivo dos brasileiros. Além da fenomenal “O Vira” (música mais tocada no Brasil em 1973), o LP tinha “Sangue Latino”, composição de João Ricardo e Paulinho Mendonça que foi imortalizada pela interpretação impecável de Ney Matogrosso (terceira faixa mais executada naquele ano), “Rosa de Hiroshima”, poema de Vinicius de Moraes que fora musicado pelo Secos & Molhados (vigésima nona música mais tocada em 1973), e “Assim Assado”, uma das melodias mais experimentais de João Ricardo. Outras duas faixas que adoro deste LP são “Primavera dos Dentes”, de João Ricardo e João Apolinário, e “El Rey”, de Gérson Conrad e João Ricardo. Vale a pena ouvi-las! Certamente você deve conhecer algumas delas, principalmente “Sangue Latino” e “Rosa de Hiroshima”, clássicos da MPB.
Em relação à sonoridade musical, os integrantes dos Secos & Molhados provocaram uma legítima revolução na música brasileira. Suas composições misturavam vários gêneros diferentes que contagiaram o público. Eles combinaram Rock Psicodélico, Folk, Pop Romântico, Underground, Baião, Jazz, Forró e Música Latina. Para completar, ainda mesclavam poesia, folclore nacional, crítica social e, por que não, ingredientes do que podemos chamar atualmente como empoderamento LGBT (algo impensável para a época) às canções e às apresentações. Em alguns casos, como em “O Vira”, até valia salpicar à composição ritmos pouco comuns por aqui como o Vira, a folclórica dança portuguesa original do século XVI. A sensação é que tudo era possível e nada podia ser censurado, justamente o que os milicos que estavam no poder em Brasília mais temiam e queriam evitar a todo custo.
Além da rebeldia estilística das músicas, o Secos & Molhados ficou famoso pela ousadia de suas apresentações. O trio se exibia normalmente com o rosto pintado (à la Kiss – muitos dizem que os norte-americanos copiaram os brasileiros, hipótese que acredito tamanhas são as semelhanças de figurino entre as duas bandas) e com roupas extravagantes. No caso de Ney Matogrosso, o vocalista mais performático da história do show business nacional, ele gostava de se apresentar nu da cintura para cima e com o corpo banhado de purpurina. Com um rebolado escrachado, uma interpretação passional e a voz aguda, Matogrosso se tornou a personificação midiática do grupo. Ele chamava mais atenção do público e da imprensa do que o próprio João Ricardo, criador do grupo e seu principal compositor. Esse choque de egos entre criador e criatura não demoraria para se transformar em briga e ser o responsável pelo fim precoce da banda.
Não é errado dizer que o Secos e Molhados representou uma ruptura conceitual e performática para a música brasileira e para o rock nacional. Até então, as bandas não transgrediam o conservadorismo da sociedade com tamanha afronta. O período entre o final dos anos 1960 e o início dos 1970 foi marcado justamente por uma forte reação artística ao reacionarismo imposto pelos militares, que deram o golpe político em 1964 e implementaram uma ditadura com forte censura a partir de 1969 (o famigerado ano do AI-5). Diante do cenário político-social trágico que se descortinava, os músicos extravasavam em suas criações o sentimento de revolta e de crítica ao sistema careta, impositivo e retrógrado.
Não à toa, várias canções afrontavam o status quo. Desse período, podemos citar “Balada do Louco”, composição de 1972 dos Mutantes, “Ouro de Tolo”, grito angustiante de Raul Seixas de 1973, “Cálice”, composição de 1973 de Chico Buarque e Milton Nascimento, “Alegria, Alegria”, protesto musical de Caetano Veloso de 1967, “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, criação de 1973 de Sérgio Sampaio, “Como Nossos Pais”, obra-prima de Belchior de 1976, “Sinal Fechado”, canção mais famosa de Paulinho da Viola de 1969, e “Domingo no Parque”, música de Gilberto Gil de 1967. Note que em um intervalo de apenas seis anos (de 1967 a 1973) surgiram no Brasil várias faixas musicais clássicas, algumas letras mais fortes de protesto social e alguns dos álbuns mais icônicos de nossa história.
Ou seja, a efervescência juvenil contra o conservadorismo já estava acontecendo quando o Secos & Molhados apareceram. Porém, a banda de João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad representou a potencialização dessa sanha questionadora de crenças e costumes em duas frentes: musical e visual. Não havia no início dos anos 1970 grupo ou cantor tão exótico aos olhos da burguesia cristã e certinha. Chico Buarque era o bom moço que cantava letras de protesto. Os tropicalistas tinham visual hippie que as pessoas já estavam acostumadas. Raul Seixas fazia o estilo roqueiro norte-americano tão em voga no cinema. E os integrantes do Mutantes podem ser descritos como comportados perto do que o trio do Secos & Molhados fazia nos palcos, algo que não dava para classificar com o olhar da época.
Eles eram tão ousados que a ideia de aparecer pintado nas apresentações veio de Ney Matogrosso. Filho de um militar, ele não queria ser reconhecido pelo pai. Embaixo da máscara social e do nome artístico criados para ocultar a verdadeira identidade, o vocalista podia liberar sua veia artística sem qualquer filtro. Para acompanhá-lo na estética abertamente exótica e gay, Gérson Conrad e João Ricardo aceitaram se fantasiar também. Curiosamente, no primeiro ano de sucesso da banda, em 1973, a dupla que acompanhava Matogrosso era mais comportada no gestual e na dança, deixando o lado estravagante para as roupas. Só no ano seguinte, após a consolidação do sucesso, Gérson Conrad e João Ricardo se soltaram mais e acompanharam o vocalista nas roupas femininas e nos rebolados exagerados. Estava criada a receita do sucesso e da originalidade de um dos grupos mais icônicos da música popular brasileira.
O primeiro disco do grupo vendeu mais de um milhão de cópias. Gravado em São Paulo entre maio e junho e lançado em agosto de 1973 (portanto, há exatamente cinquenta anos!), o LP trazia uma capa interessantíssima. Na imagem estampada no álbum, o público assistia às cabeças do trio de músicos e à cabeça de Marcelo Frias, baterista que pulou fora do barco pouco antes do lançamento do disco (sim, o Secos & Molhados era para ter sido um quarteto!), sendo servidas em uma espécie de banquete mórbido. As cacholas aparentemente decapitadas dos integrantes da banda aparecem na mesa em meio aos produtos de uma refeição. O visual pode ser interpretado como uma crítica religiosa à Santa Ceia ou até mesmo uma referência direta ao nome do grupo – secos e molhados era uma espécie de armazém ou empório onde se vendiam comidas (os tais secos) e bebidas (os tais molhados da denominação).
De certa maneira, o visual da capa do disco “Secos & Molhados” de 1973 me lembra muito os versos de “Metrô Linha 743” que Raul Seixas lançaria uma década mais tarde: “Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha/ Eu era agora um cérebro/ Um cérebro vivo à vinagrete/ Meu cérebro logo pensou/ Que seja, mas nunca fui tiete” e “Fui posto à mesa com mais dois/ E eram três pratos raros, e foi o maitre que pôs/ Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado/ Meu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado/ Quem será este desgraçado dono desta zorra toda”.
Por mais que a consagração do Secos & Molhados estivesse no conjunto da obra, é preciso reconhecer que “O Vira” foi a canção que atirou o grupo para o alto das paradas de sucesso. De certa forma, a música resgata as origens e as personalidades de seus compositores. João Ricardo, idealizador da banda, era português. Ele veio para o Brasil ainda na adolescência. Fugiu da ditadura salazarista, mas acabou caindo na ditadura tupiniquim. Em uma espécie de sátira mais sutil e menos escrachada daquela do Mamonas Assassinas, João Ricardo conseguiu misturar o vira lusitano e tradicional ao rock brasileiro e moderno. A letra que trata do folclore nacional (sacis e lobisomens) e figuras místicas (fadas, gato preto e coruja) é contribuição de Luli. Muito ligada ao universo esotérico, a cantora que ficou famosa ao formar dupla com Lucina (eram Luli & Lucina – lembra delas?!) era autora de livros místicos.
Antes de discutirmos os detalhes de “O Vira”, confira a seguir a letra da composição de João Ricardo e Luli. Logo depois, assista a uma das apresentações mais marcantes do Secos & Molhados. Ela ocorreu no ano de lançamento do primeiro álbum do grupo e foi exibida no programa “Sempre aos Domingos” da TV Tupi. Essa atração ia ao ar, como o próprio nome diz, aos domingos à noite e era apresentada pelo mexicano Raúl Velazcos.
O Vira (1973) – João Ricardo e Luli
O gato preto cruzou a estrada
Passou por debaixo da escada
E lá no fundo azul, na noite da floresta
A lua iluminou a dança, a roda, a festa
Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem
Vira, vira
Vira, vira, lobisomem
Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem
Vira, vira
Bailam corujas e pirilampos
Entre os sacis e as fadas
E lá no fundo azul, na noite da floresta
A lua iluminou a dança, a roda, a festa
Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem
Vira, vira
Vira, vira, lobisomem
Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem
Vira, vira
Um dos principais méritos de “O Vira” está na mistura de ritmos. A canção começa com acordes de rock in roll mais pesado. Porém, a pegada que parecia caminhar para o lado mais psicodélico e underground se torna rapidamente um pop rock mais leve e com jeitão de folk e forró. Quando o ouvinte acha que entendeu o estilo dúbio da música, no meio para o final da execução, quando os versos são repetidos, surgem os tradicionais acordes do vira. A overdose sonora caminha até o fim com cada vez mais influência da melodia portuguesa e menos tom de rock. Incrível perceber essa transformação sonora durante a canção!
Outra questão que não pode ser esquecida é a performance absurdamente hipnotizante de Ney Matogrosso. Sua interpretação é impecável e sua atuação no palco é de encher os olhos. Você pode gostar ou não gostar da personalidade dele e de seu jeito espalhafatoso de se apresentar. Mas não dá para negarmos que o cantor criou um estilo forte e marcante que permanece vivo até hoje. Na minha humilde opinião, ele é um dos melhores intérpretes nacionais da nossa história. Na prateleira dos gênios da voz e da interpretação musical do Brasil, Matogrosso está lado a lado com Elza Soares, Nelson Rodrigues, Elis Regina, Tim Maia, Orlando Silva, Gal Costa e Vicente Celestino. Acredito que “O Vira” não teria se tornado o sucesso que foi/é se tivesse sido executada por um vocalista mais comportado e menos passional.
Em relação à letra, confesso que não a acho lá grande coisa. Os versos de “O Vira” são pueris, quase infantis. A brincadeira maior é entrelaçar os diferentes elementos do folclore nacional em uma música gostosa e carismática. Daí a minha preferência pela melodia. Se pensarmos bem, o conteúdo cantado por Ney Matogrosso é completamente oposto à postura do cantor no palco. Esse contraste entre a letra ingênua e infantil e a postura exótica, sexualizada e gay do vocalista foi um murro na cara do conservadorismo da primeira metade da década de 1970. Por isso, há quem ouça nos versos “Vira, vira, vira/ Vira, vira, vira homem/ Vira, vira/ Vira, vira, lobisomem/ Vira, vira, vira/ Vira, vira, vira homem/ Vira, vira” uma referência explícita ao homossexualismo.
Ainda olhando exclusivamente para os versos, me incomodou o fato de termos uma sequência sem rima: “Bailam corujas e pirilampos/ Entre os sacis e as fadas”. A música é curtinha, tem poucos versos e ainda assim os compositores não tiveram o cuidado de deixá-la inteiramente rimada! Ai, ai, ai. Para mim não colou. Do que adianta mesclar rimas sequenciais e rimas alternadas durante a canção (um ótimo expediente poético), mas deixar um verso sem rima (erro amador), hein?!!
Antes que alguém brigue comigo, o que acontece de vez em quando na coluna Músicas (vide os comentários dos posts de “Se Eu Quiser Falar com Deus” e “O Teu Cabelo Não Nega”), preciso esclarecer o que quis dizer com “não acho lá grande coisa essa letra da canção dos Secos & Molhados”. Perto de outras composições do grupo, “O Vira” possui versos mais fracos e menos impactantes. “Sangue Latino”, “Assim Assado”, “Primavera dos Dentes” e “El Rey”, por exemplo, têm letras muito mais interessantes. E olha que minha comparação ficou apenas no primeiro álbum da banda (em 1974, o trio lançou o segundo disco). Talvez esse seja um dos belos paradoxos das carreiras de Ney Matogrosso e do Secos & Molhados: apesar de terem ficado famosos pelos versos contundentes e críticos, o maior sucesso de ambos está em uma letra extremamente rasa.
Infelizmente, o Secos & Molhados terminou no final de 1974 após o desentendimento de João Ricardo e Ney Matogrosso. O motivo da briga foi, obviamente, dinheiro. A troca de empresário da banda foi a gota d´água que culminou com a saída de Matogrosso e, como consequência, a dissolução do trio. A partir dali, Gérson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso seguiram em carreira solo, com apenas o último mantendo a relevância artística e o sucesso musical. Por mais que João Ricardo tenha conseguido mais tarde os direitos de uso da marca Secos & Molhados e montado novas configurações para sua banda, jamais conseguiu chegar perto do apelo de público e de crítica da versão original. No imaginário popular, o Secos & Molhados encerrou definitivamente as apresentações na virada de 1974 para 1975.
O que permanece é o legado cultural de um dos grupos mais originais, emblemáticos e impactantes da música popular brasileira. E para celebrar a efeméride de cinquenta anos do lançamento de “O Vira”, fiz esse singelo post para o Bonas Histórias. Espero que vocês gostem. Quem não gostar, desejo que o gato preto cruze sua estrada e que você passe embaixo da escada. Quem gostar, sugiro nos encontrarmos lá no fundo azul, na noite da floresta, onde a lua ilumina a dança, a roda, a festa.
Até a próxima!