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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorRicardo Bonacorci

Músicas: É Hoje - 40 anos do samba-enredo memorável de Didi e Mestrinho

Lançado pela União da Ilha em 1982, É Hoje saiu do Carnaval e entrou para o hall dos clássicos da música popular brasileira.

A música É Hoje é o samba-enredo criado por Didi e Mestrinho e foi apresentada pela União da Ilha no Carnaval de 1982

Na maioria das vezes, os sambas-enredo ficam restritos ao período do Carnaval. Entoadas pelas escolas de samba nos sambódromos ou ecoadas pelos blocos nas ruas desde que Cabral por aqui aportou, as canções carnavalescas acabam esquecidas tão logo a Quarta-feira de Cinzas pinta na folhinha do calendário. Entretanto, algumas dessas criações conseguiram ao longo do tempo superar o esquecimento popular e adentrar na primeira prateleira do cenário musical brasileiro. Não à toa, são conhecidas até hoje e integram nosso DNA cultural.


De cabeça, posso citar como clássicos do samba-enredo “Liberdade, Liberdade, Abre As Asas Sobre Nós” (Imperatriz em 1989), “Atrás da Verde e Rosa Só Não Vai Quem Já Morreu” (Mangueira em 1994), “Aquarela Brasileira” (Império Serrano em 1964), “Coisa Boa é Pra Sempre” (Gaviões da Fiel em 1995), “Peguei um Ita no Norte” (Salgueiro em 1993), “A Rainha, À Noite Tudo Transforma” (Vai-Vai em 1996) e “Sonhar Não Custa Nada! Ou Quase Nada” (Mocidade em 1992). Na certa, você deve se lembrar de outras mais.


Repare que citei apenas os sambas-enredo. Se fosse regressar mais no tempo, poderia listar uma série emblemática de marchinhas que permanece intacta no imaginário popular. Aí vamos de “Ô Abre Alas!”, criação de 1899, “Para Você Gostar de Mim”, sucesso em 1930, “Linda Morena”, composição que estourou em 1932, “Linda Lourinha”, canção memorável de 1933 (e minha favorita!!!), “Cidade Maravilhosa”, sucesso no Carnaval de 1935 que virou uma espécie de hino do Rio de Janeiro, “Pierrô Apaixonado”, marcha de 1936, “Mamãe Eu Quero”, hit em 1941, “Aurora”, febre nos festejos de 1942, “Cachaça”, marchinha divertidíssima de 1953, e “Me Dá Um Dinheiro Aí”, sucesso desde 1959.


E olha que não coloquei na roda as músicas carnavalescas que atualmente são vistas como politicamente incorretas como “Maria Sapatão”, criação dos anos 1950, “Cabeleira do Zezé”, “Coração de Jacaré”, ambas composições da década de 1960, e “A Pipa do Vovó”, canção dos anos 1980. Cada uma delas dá tanto pano para manga que seria difícil tratar de todas superficialmente aqui. Por isso, é melhor nem comentá-las de maneira mais profunda no Bonas Histórias (corro o risco de ser apedrejado na praça pública da Internet).

 União da Ilha do Governador em 1982 – Música É Hoje

Nesse novo post da coluna Músicas, gostaria de falar do samba-enredo dos sambas-enredo. Ele é um legítimo clássico da música popular brasileira que ao invés de trazer polêmica se tornou unanimidade nacional desde que foi lançado na Marquês de Sapucaí em 1982. Estou me referindo à “É Hoje”, composição mais famosa de Didi e Mestrinho – não confundir, por favor, com “Hoje”, hit recente da Ludmilla! O samba antológico foi apresentado pela União da Ilha do Governador no Carnaval de 40 anos atrás e imediatamente se incorporou à cultura musical nacional. Acho difícil alguém que tenha nascido ou vivido por essas bandas não conhecer os versos “É hoje o dia/ da alegria/ E a tristeza/ nem pode pensar em chegar” e “Diga espelho meu/ Se há na avenida/ alguém mais feliz que eu”. É ou não é uma obra-prima, hein?


Para contar a história por trás da criação de “É Hoje” (afinal o nome desse blog é Bonas Histórias!), precisamos voltar para o Carnaval de 1982. A União da Ilha, pequena agremiação da Ilha do Governador, vivia seu período mais próspero. A escola vinha fazendo excelentes desfiles desde 1977, o que culminou com um inédito vice-campeonato em 1980 (sua melhor posição na história). O sonho do título no Carnaval carioca nunca pareceu tão próximo como naquela época, apesar do orçamento bem inferior às maiores rivais. Considerada uma das agremiações mais simpáticas do Rio de Janeiro, a União da Ilha sempre se caracterizou por ótimos sambas-enredo e por fantasias leves e práticas. Não por acaso, essa receita de sucesso foi replicada para os festejos de 1982.


A grande diferença (que poderíamos chamar até de surpresa) daquele ano foi a escolha de Max Lopes como carnavalesco. Depois de vários anos com Adalberto Sampaio e Maria Augusta se revezando à frente da direção do Carnaval, a escola optou por um novato advindo da Imperatriz Leopoldinense. Para não gerar ainda mais rupturas na dinâmica de trabalho da escola, optou-se por um samba-enredo criado por duas figuras tradicionais da Ilha do Governador: Didi e Mestrinho. A dupla de sambistas apresentou “É Hoje”. A letra é de Didi e a melodia é de Mestrinho. Obviamente, o intérprete escalado foi o bom (ou seria excelente?!) e velho Aroldo Melodia (pai de Ito Melodia). Comandando o microfone da União da Ilha desde 1970, Aroldo só largaria definitivamente tal posto em 1996.


O enredo da União da Ilha do Governador em 1982 retratava o dia a dia de um sambista durante o Carnaval. A inspiração temática da escola partiu do livro “É Hoje!” (Irmãos Vitale) de Haroldo Costa (autor) e de Lan (ilustrador). A obra foi publicada em 1978. Se o desfile foi meio decepcionante (a União da Ilha terminou em quinto lugar, muito aquém para quem almejava o título do Grupo A-1) e teve vários problemas técnicos (o carro abre-alas, por exemplo, entrou na pista com quase uma hora de atraso), o samba-enredo da escola entraria para a história do Carnaval e da música brasileira.

Aroldo Melodia, cantor da primeira versão de É Hoje no Carnaval da União da Ilha em 1982.

O que torna “É Hoje” uma canção incrível é sua letra simples, os versos poéticos e o enredo atemporal. Utilizando-se da metalinguagem, a canção fala do esplendor que é o Carnaval para os passistas. Se no dia a dia eles são pessoas comuns, com vidas aparentemente banais e com rotinas muitas vezes sofridas, nos dias de folia todos se transformam em protagonistas, figuras admiradas e invejadas no país inteiro. A beleza dessa faixa está justamente ao mostrar essa inversão de valores e de escala social. O Carnaval é o momento mágico em que os súditos mais humildes se tornam reis e rainhas nas ruas do Brasil inteiro. É nesse instante em que vemos “o riso chorar”.


Veja, a seguir, a letra de “É Hoje” e, logo depois, sua execução original, conforme cantada por Aroldo Melodia em 1982.


“É Hoje” – Didi e Mestrinho (1982)


A minha alegria atravessou o mar

e ancorou na passarela.

Fez um desembarque fascinante

no maior show da Terra.


Será que eu serei

o dono desta festa?

Um rei

no meio de uma gente tão modesta.


Eu vim descendo a serra,

cheio de euforia para desfilar.

O mundo inteiro espera.

Hoje é dia do riso chorar.


Levei o meu samba

pra mãe-de-santo rezar.

Contra o mau olhado

carrego o meu patuá


Acredito

ser o mais valente

nesta luta do rochedo com o mar

E com o mar.


É hoje o dia

da alegria.

E a tristeza

nem pode pensar em chegar.


Diga,

espelho meu:

se há na avenida

alguém mais feliz que eu?

Alguns aspectos interessantes precisam ser ditos sobre os versos de “É Hoje”. Em primeiro lugar, as inversões dos papéis que a música enaltece fazem parte da essência do Carnaval. Nos dias da maior festa do planeta, homens se vestem de mulheres e mulheres se caracterizam de homens. As pessoas mais simples se transmutam em faraós e imperadores e os endinheirados posam alegremente de mendigos. Os velhos colocam roupas de criança e a meninada sai vestida de adulto. Essa alteração na dinâmica social surge nos versos: “Será que eu serei/ o dono desta festa?/ Um rei/ no meio de uma gente tão modesta”. Obviamente, o questionamento é de um passista, alguém que anseia pelo Carnaval para, enfim, viver um lampejo de felicidade, glória e importância.


O mais legal é saber que o próprio letrista de “É Hoje” é o exemplo concreto dessa transmutação social. Sim, Didi, cujo nome verdadeiro era Gustavo Adolfo de Carvalho Baeta Neves, tinha uma vida dupla (se assim podemos dizer, né?). E isso ocorria não apenas no Carnaval. Nos dias de semana e no horário comercial, ele era um respeitável e sério promotor federal. O Sr. Neves batia ponto em uma repartição no centro do Rio de Janeiro. Contudo, à noite e aos finais de semana, ele virava Didi, o músico boêmio que não perdia uma roda de samba. Compositor de mão cheia (a maioria das canções ele preferiu não assinar temendo represálias – lembremos que no outro turno o sambista era Gustavo Adolfo, funcionário público seríssimo!), Didi é coautor também de “O Amanhã” (samba-enredo da União da Ilha em 1978) e “O Que Será?” (samba-enredo da União da Ilha em 1979).


Outra questão que precisa ser comentada sobre “É Hoje” é a polissemia de sua letra. Em muitos momentos, os versos do samba possuem mais de uma interpretação, o que torna seu conteúdo atemporal e riquíssimo. Vejamos o começo da canção: “A minha alegria atravessou o mar/ e ancorou na passarela/ Fez um desembarque fascinante/ no maior show da Terra”. Note que esse trecho pode significar tanto a chegada dos passistas da escola (que saíram da Ilha do Governador) à Marquês de Sapucaí (que em 1982 ainda não abrigava o sambódromo – ele seria construído pouco tempo depois por Leonel Brizola) quanto a viagem dos africanos (origem da maioria dos passistas) para o Brasil (o maior show da Terra seria, nesse caso, o nosso país). Muito bonito esse jogo semântico, não é?


As referências africanas são mais fortes nos versos: “Levei o meu samba/ pra mãe-de-santo rezar/ Contra o mau olhado/ carrego o meu patuá”. E a pegada de crítica social surge de maneira mais acentuada em: “Acredito/ ser o mais valente/ nesta luta do rochedo com o mar/ E com o mar”. O que seria, afinal de contas, a luta do rochedo com o mar? Na minha visão, esse embate é justamente os perrengues diários e intermináveis que os passistas da escola vivenciam no cotidiano. Longe dos holofotes da passarela, eles precisam matar um leão por dia para sobreviver. Por outro lado, a luta do rochedo com o mar pode ser vista como simplesmente um detalhe da geografia da ilha em que a escola está localizada. Não falei que as possibilidades de leitura são variadas, hein?


Porém, a maior beleza poética de “É Hoje” está reservada para a dupla de quartetos finais: “É hoje o dia/ da alegria/ E a tristeza/ nem pode pensar em chegar” e Diga/ espelho meu/ Se há na avenida/ alguém mais feliz que eu”. No contexto da música, fica evidente que esse lampejo de alegria é o desfile carnavalesco. Mesmo assim, esse momento efêmero de felicidade do povão pode ser associado às outras ocasiões especiais e passageiras do dia a dia: beijo no(a) amado(a), recebimento do salário, vitória do time do coração, chegada de uma ótima notícia, risada ao ouvir uma piada etc. Por essa perspectiva mais geral, o termo “avenida” do penúltimo verso é sinônimo de rua, cidade. Essa música é ou não é incrível, né?


Prova cabal da relevância de “É Hoje” está no fato que já em 1983, um ano depois do desfile da União da Ilha, Caetano Veloso gravou a canção de Didi e Mestrinho no álbum “Uns”. Não à toa, essa é a versão mais conhecida atualmente da música (e a melhor, para mim, depois da original de Aroldo Melodia). Mais tarde, outros importantes cantores brasileiros regravaram “É Hoje”. Fernanda Abreu, em 1997, e Dudu Nobre, em 2007, deixaram suas marcas nesse que é um dos sambas-enredo mais famosos de todos os tempos.


Para homenagear Didi, a União da Ilha alçou o compositor ao posto de enredo do desfile de 1991. Intitulado como “De Bar em Bar, Didi um Poeta”, o Carnaval da escola naquele ano apresentou a trajetória do sambista (e promotor de justiça). Ainda no clima de revival e de homenagens à canção mais lembrada da agremiação da Ilha do Governador, em 2008, a escola reeditou “É Hoje” como seu samba-enredo no desfile da Série A (o nome da segunda divisão do Carnaval carioca naquela época). Por falar nisso, a simpática agremiação está, infelizmente, longe do Grupo Especial (a primeira divisão) desde o rebaixamento de 2020. Em 2022, a União da Ilha do Governador ficou em terceiro lugar na Sério Ouro (novo nome da segundona) e mais uma vez se ausentará do desfile do Grupo Especial em 2023. É uma pena!


Como celebramos, em 2022, 40 anos da criação de “É Hoje”, resolvi detalhar a trajetória dessa faixa e também, como é praxe da coluna Músicas, analisar detalhadamente o sambinha mais adorável de Didi e Mestrinho. Espero que você tenha gostado desse post do Bonas Histórias e da nossa viagem histórica pelo universo do samba e do Carnaval carioca. E até o próximo mergulho no passado e no presente de nossa cultura. Até lá!


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