Gravada em 1971, essa canção marcou a transição da carreira do Rei de um cantor juvenil e rebelde para um artista maduro e romântico.
O ano de 1971 foi mágico para a música popular brasileira. Acho que já falei sobre isso aqui na coluna Músicas. Naquele ano, foram gravadas quatro obras-primas: “Construção”, de Chico Buarque, “Senhor Cidadão”, de Tom Zé, “Valsinha”, de Vinicius de Morais e Chico Buarque, e “Detalhes”, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Esse quarteto musical figura em qualquer boa listagem das principais canções do Brasil no século XX. E olha que essa não é uma opinião minha, mas um apontamento dos principais críticos musicais do país – pode conferir! E nesse grupo de músicas cinquentenárias há duas das minhas canções favoritas – aí sim entra a minha opinião e meu gosto pessoal. Estou me referindo a “Construção” e a “Detalhes”. Acho essas composições simplesmente fantásticas. Como já tratei, aqui no Bonas Histórias, da primeira (em um post de julho desse ano), hoje quero analisar em detalhes (desculpe-me o trocadilho, foi mais forte do que eu) a segunda.
“Detalhes” não é apenas a minha música favorita do Rei. Segundo o próprio Roberto, essa canção é a sua predileta, ao lado de “Eu Te Amo Tanto” (aquela de: Eu não me acostumo sem seus beijos/E não sei viver sem seus abraços/Aprendi que pouco tempo é muito/Se estou longe dos seus braços/E por isso eu te procuro tanto/E te telefono a toda hora/Para dizer mais uma vez te amo/Como estou dizendo agora). Gosto tanto de “Detalhes” que confesso assistir aos shows de final de ano do cantor na Rede Globo só para ouvi-la mais uma vez. E quando essa canção não é colocada no repertório do programa (sim, há edições em que isso acontece!!!), fico indignado na frente da televisão gritando: “Eita, showzinho ruim o desse ano, meu Deus! O cara tem a coragem de cantar ´Jesus Cristo’ e não canta ´Detalhes´. Onde já se viu um sacrilégio como esse?!!!”.
Lançada em dezembro de 1971, “Detalhes” é a faixa principal do décimo primeiro álbum do cantor capixaba. Esse LP tinha outras músicas marcantes de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, que são conhecidas do grande público até hoje. Ou por um acaso você não se lembra de “Todos Estão Surdos” (mistura de ode religiosa com crítica político-social), “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” (feita em homenagem ao regresso de Caetano Veloso do exílio) e “Amada Amante” (canção traduzida para vários idiomas e regravada por vários artistas nacionais), hein? A dupla Roberto-Erasmo também produziu outras três faixas desse disco: “Traumas”, “I Love You” e “De Tanto Amor”. As demais músicas são de outros compositores: “Como Dois e Dois” (de Caetano Veloso), “A Namorada” (de Maurício Duboc e Carlos Colla), “Você não Sabe o que Vai Perder” (Renato Barros), “Eu Só Tenho Um Caminho” (de Getúlio Côrtes) e “Se Eu Partir” (de Fred Jorge).
“Detalhes”, de uma beleza musical ímpar, ajudou a catapultar as vendas desse disco de Roberto Carlos. Para termos uma ideia do sucesso estrondoso desse LP, ele vendeu mais de 800 mil cópias entre o final do ano de 1971 e o começo de 1972. Até então, a maior vendagem de um álbum de Roberto tinha sido o de 1968, com 500 mil unidades comercializadas. Por muito tempo, o disco de 1971 figurou como o maior sucesso do Rei e um dos mais bem-sucedidos da indústria fonográfica nacional. A partir desse momento, Roberto Carlos se tornava um cantor extremamente popular. Não por acaso, ele é ainda hoje o artista número 1 em vendas – marca impressionante de mais de 140 milhões de cópias vendidas (o pódio é completado por Nelson Gonçalves, com 75 milhões, e Ângela Maria, com 60 milhões de discos comercializados).
É legal notar que “Detalhes” marcou uma mudança significativa na carreira artística de Roberto Carlos. Até o final dos anos 1960, suas músicas eram inspiradas no rock and roll norte-americano e inglês (alguém aí pensou nos Beatles?!). As canções dessa época falavam prioritariamente das desventuras sentimentais (principalmente os primeiros amores, as baladinhas, a azaração) e da rebeldia tipicamente juvenil (a paixão masculina pelos carros velozes e a mania de usar cabelos compridos, beber e fumar). Para dar ares mais tropicais a esse gênero musical (que não passava de uma cópia às vezes velada e às vezes explícita do rock), o estilo musical de Roberto e de seus colegas foi chamado de Jovem Guarda (muito em função do nome do programa exibido pela Rede Record a partir de 1965).
De 1963, quando lançou seu segundo álbum, “Splish Splash” (cuja faixa homônima dizia: Splish Splash fez o beijo que eu dei/nela dentro do cinema/todo mundo olhou me condenando/só porque eu estava amando), até 1970, ano do seu décimo LP (que tinha entre suas faixas “120... 150... 200 km por hora”: Eu vou voando pela vida sem querer chegar/Nada vai mudar meu rumo nem me fazer voltar/Vivo, fugindo, sem destino algum/Sigo caminhos que me levam a lugar nenhum), Roberto Carlos era o principal nome da Jovem Guarda. Quer um bom exemplo de uma música da fase inicial da carreira do Rei? Então ouça “Nas Curvas da Estrada de Santos”, uma das últimas composições com pegada mais jovem-guardista.
A partir de 1971, o cantor, então com 30 anos de idade, mudou seu estilo, se distanciando do gênero que o consagrara. Daí para frente, surgia o Roberto romântico, o Roberto mais maduro, o Roberto mais religioso, o Roberto marido, o Roberto pai, o Roberto família. A rebeldia juvenil e a passionalidade adolescente tinham ficado definitivamente para trás. Era o fim da Jovem Guarda, que sem sua principal figura não demoraria para declinar e sumir das rádios.
Como consequência dessa mudança autoral-musical, Roberto Carlos conquistou um novo público, maior e mais diversificado. É verdade que a moçadinha que cresceu ouvindo as canções da Jovem Guarda acompanhou o amadurecimento do ídolo. O interessante é perceber que, a partir dos anos 1970 (e “Detalhes” exemplifica muito bem esse processo), Roberto passou a ser ouvido e admirado também pelo público mais velho (que até então torcia o nariz para o cabeludo que gritava iê-iê-iê ao microfone). Com músicas menos barulhentas (foi se embora definitivamente o rock) e com letras mais maduras, o cantor conquistou o coração da faixa etária que ainda não o escutava com o devido respeito. E, assim, surgiu o músico mais popular da história do país – com números imbatíveis até hoje.
“Detalhes” é uma balada romântica de melodia simples, mas bonita e extremamente marcante. O arranjo da parte inicial da música (um de seus charmes – sempre me emociono ao ouvi-lo) foi feito por Jimmy Wisner, maestro norte-americano que trabalhou com Roberto e Erasmo em outras canções desse álbum (“Amada Amante”, por exemplo, contou com a contribuição de Wisner).
Do ponto de vista melódico, “Detalhes” flerta com as músicas românticas das décadas de 1940 e 1950. Até a metade do século XX, as canções davam normalmente destaque para as interpretações dramáticas (diferentemente do que acontecia com a Jovem Guarda na década de 1960 que dava maior ênfase aos instrumentos musicais e aos refrões muitas vezes onomatopeicos). Não por acaso, Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Dolores Duran, Cauby Peixoto, Silvio Caldas e Orlando Silva, para ficarmos em apenas seis figurões daquele período, tinham vozeirões capazes de quebrar o vidro das janelas das casas. Para entender o que estou dizendo, basta ouvir “Chão de Estrelas” e “Lábios que Beijei” para saber como eram as músicas românticas do período pré-Rock (ou pré-Jovem Guarda, se preferir).
Contudo, Roberto Carlos nunca teve/tem uma voz tão poderosa. Aí está o grande pulo do gato de “Detalhes”. Mesmo com uma entonação e um timbre mais baixos do que os dos cantores da época de Ouro da Rádio, Roberto conseguiu, assim, ressaltar a letra dessa canção, seu verdadeiro ponto forte. O que temos no final das contas é o predomínio dos versos em relação à melodia. A força musical de “Detalhes” está na letra carregada de sentimentalismo e nos versos que expõem a desilusão amorosa. Não à toa, essas características se tornariam dali para frente uma das marcas principais das composições de Roberto Carlos (e de Erasmo Carlos).
O eu-lírico da canção (construída essencialmente em quartetos e com rimas A, A, B, B – com exceção do primeiro quarteto que é A, B, A, B) é um homem que imagina como é o dia a dia da mulher que amou. O problema é que esse amor ficou no passado (juventude) e os dois seguiram a vida por caminhos distintos (agora na maturidade). Acreditando que ela jamais o esqueceu, ele canta o quanto os detalhes de sua personalidade e de seus hábitos (daí o título da composição!) fazem a ex-companheira lembrar dele a cada instante.
Curiosamente, a impressão que temos ao ouvir “Detalhes” é oposto do que seus versos dizem. Por mais que o eu-lírico afirme por A mais B que a sua amada na juventude não o esqueceu, a sensação é que é ele quem não superou o amor do passado. Afinal, a obsessão dele em querer que ela se lembre dos seus detalhes só mostra o quanto o rapaz não superou o término daquela relação. Sinceramente, não sei se Roberto Carlos e Erasmo Carlos fizeram isso de propósito (até acho que sim). De qualquer maneira, essa inversão de valores (quem é loucamente apaixonado até hoje é ele e não ela) é magnífica.
Outra questão interessante dessa canção é como Roberto Carlos olha para o seu passado (na verdade, para o passado do eu-lírico). Impossível não lembrarmos das músicas da Jovem Guarda quando ouvimos versos como “Se um outro cabeludo aparecer na sua rua” e “O ronco barulhento do seu carro, a velha calça desbotada ou coisa assim”. Isso é bem a cara das décadas de 1960, 1970, né? Ou seja, a transição para um novo estilo musical do cantor capixaba é citada (indiretamente) na letra da canção. Essa metalinguagem musical e essa intertextualidade autoral de “Detalhes” tornam sua letra ainda mais rica. Essa é a prova cabal que essa composição tem detalhes incríveis (eu e meus trocadilhos insanos – desculpe-me mais uma vez!).
Veja, a seguir, a letra de “Detalhes” e a interpretação original de Roberto Carlos, conforme gravada no álbum de 1971:
Detalhes (1971) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
Não adianta nem tentar me esquecer
Durante muito tempo em sua vida, eu vou viver
Detalhes tão pequenos de nós dois são coisas muito grandes para esquecer
E a toda hora vão estar presentes, você vai ver
Se um outro cabeludo aparecer na sua rua
E isto lhe trouxer saudades minhas, a culpa é sua
O ronco barulhento do seu carro, a velha calça desbotada ou coisa assim
Imediatamente você vai lembrar de mim
Eu sei que um outro deve estar falando ao seu ouvido
Palavras de amor como eu falei, mas eu duvido
Duvido que ele tenha tanto amor e até os erros do meu português ruim
E nessa hora você vai lembrar de mim
A noite envolvida no silêncio do seu quarto
Antes de dormir você procura o meu retrato
Mas na moldura não sou eu quem lhe sorri, mas você vê o meu sorriso mesmo assim
E tudo isto vai fazer você lembrar de mim
Se alguém tocar seu corpo como eu, não diga nada
Não vá dizer meu nome, sem querer, à pessoa errada
Pensando ter amor nesse momento, desesperada você tenta até o fim
Mas até nesse momento, você vai lembrar de mim
Eu sei que esses detalhes vão sumir na longa estrada
Do tempo que transforma todo amor em quase nada
Mas quase também é mais um detalhe, um grande amor não vai morrer assim
Por isso é que de vez em quando você vai, vai lembrar de mim
Não adianta nem tentar me esquecer
Durante muito muito tempo em sua vida, eu vou viver
Não adianta nem tentar me esquecer
Seria essa canção uma passagem autobiográfica de Roberto Carlos?! Muito provavelmente. O músico capixaba criava suas músicas a partir do que vivia/vivenciava de fato. Assim, possivelmente os versos de “Detalhes” tenham uma forte relação com a história do artista. Então, quem seria essa mulher que teria mexido demais com o coraçãozinho do Rei? Há várias lendas sobre a identidade da moça. Há quem diga que ela seria Magda Fonseca, o primeiro grande amor de Roberto. A jovem teria desmanchado o namoro quando se mudou com a família para os Estados Unidos. E há quem aponte Sílvia Amélia, uma socialite carioca, como a personalidade real por trás da personagem de “Detalhes”. Nesse caso, Roberto teria disputado (e perdido) o coração dela com o jornalista Tarso de Castro. Evidentemente, Roberto Carlos nega essas duas versões – se pensarmos bem, ele negou/nega sua biografia inteira, como pode atestar Paulo César de Araújo.
O que é notório e inegável é a beleza musical (tanto da melodia quanto da letra) de “Detalhes”. Essa canção foi relançada várias vezes por Roberto e é presença obrigatória em qualquer coleção com suas principais composições (ouviram o final dessa frase, produtores do show do final de ano da Globo?!!!). Outros músicos famosos também gravaram essa faixa aqui no Brasil. De cabeça, posso citar Maria Bethânia, Ivete Sangalo, Bruno & Marrone e Gal Costa. Porém, não dá para ouvir essa música em outras vozes e não comparar com a interpretação de Roberto Carlos (talvez, por isso, muita gente por aqui não tenha se arriscado em regravá-la).
Esse problema, evidentemente, não ocorre no exterior, onde “Detalhes” foi traduzido para o inglês e para o espanhol com enorme êxito. Lembro que quando morei na Argentina, coisa de quinze anos atrás, certa vez ouvi uma versão em espanhol dessa música tocando na rádio. “Detalhes” era cantada por um artista local que eu não soube identificar. Vale a pena dizer que essa não foi a única vez que ouvi uma canção do Rei sendo cantada em espanhol nas rádios de Buenos Aires. Isso aconteceu em um punhado de ocasiões (às vezes pelo próprio músico capixaba, às vezes por intérpretes argentinos). Em Portugal, que eu saiba, essa canção foi gravada por Raquel Tavares, uma das principais fadistas da nova geração. Para ser preciso no meu comentário, Raquel gravou, em 2007, não apenas “Detalhes”, mas um álbum inteiro com músicas de Roberto.
No mês que vem, “Detalhes” completa oficialmente 50 anos de vida. Essa efeméride é motivo de muita celebração e alegria para quem gosta da boa música brasileira. Parabéns, Roberto. Parabéns, Erasmo. Parabéns, Jimmy.
“Detalhes” é realmente uma obra-prima. E, por causa dessa canção, já marquei na minha agenda a data do show de final de ano do Rei na Rede Globo. Em 2021, o programa será exibido no dia 23. Em 2020, não tivemos o tradicional show de Roberto Carlos. O motivo é óbvio: a pandemia do novo coronavírus. Foi a segunda vez que o evento, criado em 1974, foi adiado. A primeira vez tinha sido em 1999, quando Maria Rita, a esposa do cantor naquela época, faleceu. Aguardemos o novo show! E esperemos que não tirem “Detalhes” do cardápio, por favor!