Lançado em 1971, o oitavo disco de Chico vendeu mais de 140 mil cópias em uma semana e gerou alguns clássicos da música brasileira.
Mal tinha saído da adolescência, Chico Buarque já aparecia como uma das grandes figuras da música brasileira. São notórias suas participações tanto como cantor (com menor destaque) quanto como compositor (aí sim demonstrando toda a sua genialidade) nos mais importantes festivais musicais nacionais na segunda metade da década de 1960. Com pouco mais de vinte anos, o rapaz tímido de olhos azuis e cabelos encaracolados, filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, já tinha lançado seus primeiros discos e conquistado o reconhecimento do público e da crítica. Algumas de suas canções, como “A Banda”, de 1966 (primeiro lugar no II Festival de Música Popular Brasileira), “Roda Viva”, de 1967 (terceiro lugar no III Festival de Música Popular Brasileira), e “Benvinda”, de 1968 (primeiro lugar na categoria júri popular no IV Festival de Música Popular Brasileira), já circulavam na boca do povo.
Contudo, Chico Buarque era, até o início dos anos 1970, um artista com um repertório muito mais vistoso do que de grande apelo comercial dentro da MPB - Música Popular Brasileira. Apesar do grande destaque obtido nos festivais e das polêmicas geradas pelas canções críticas à ditadura militar, seus primeiros discos (quatro lançados no Brasil e três na Itália) venderam entre 20 mil e 30 mil exemplares. Evidentemente, esse era um patamar até razoável para a época, mas, convenhamos, muito abaixo da excelência do portfólio que o músico carioca apresentou desde o começo da carreira (até hoje não sei quem foi o mais brilhante músico popular nacional, se Chico ou se Tom Jobim).
Essa situação de muito barulho para pouca venda mudou definitivamente em 1971. Com o lançamento de “Construção”, seu oitavo álbum (quinto no Brasil), o jovem artista alcançou, enfim, o primeiro lugar nas paradas de sucesso. O mais legal é que, aos 27 anos, Chico atingia a maturidade artística e se conectava intensamente com o mercado fonográfico nacional de uma maneira pouco vista até então. Não é errado afirmar que os brasileiros correram às lojas, ao longo de 1971 e no comecinho de 1972, para adquirir aquele álbum que entraria para a história como um dos mais vistosos.
Das dez canções de “Construção”, cinco eram composições solos de Chico Buarque (“Deus Lhe Pague”, “Cotidiano”, “Construção”, “Cordão” e “Acalanto”), quatro foram parcerias com Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Toquinho (“Desalento”, “Olha Maria”, “Samba de Orly” e “Valsinha”) e uma era a adaptação ao português de “Gesubambino”, uma famosa canção italiana de Lucio Dalla e Paola Pallotino (“Minha História”). Com produção de Roberto Menescal e direção musical de Antônio José Waghai Filho, fundador do MPB-4, o LP recebeu elevado investimento da Philips, que chegou a contratar uma orquestra com mais ou menos 60 integrantes para executar as faixas dentro do estúdio.
Como já disse, “Construção” gerou um nível de interesse do público impressionante. Em uma semana, o disco teve 140 mil cópias vendidas. Em alguns meses, ele chegou ao patamar próximo de meio milhão de unidades comercializadas no país. Além do êxito comercial espantoso, o álbum de Chico Buarque foi saudado como uma das grandes criações da história da música popular nacional.
Em sua edição de outubro de 2007, a revista Rolling Stone Brasil elegeu “Construção” como o terceiro melhor disco brasileiro de todos os tempos, atrás apenas de “Acabou Chorare”, dos Novos Baianos, e de “Tropicalia ou Panis et Circencis”, o LP de estreia dos tropicalistas (que tinha entre suas músicas principais “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil). Olhando exclusivamente para a discografia de Chico, “Construção” rivaliza com “Meus Caros Amigos”, álbum de 1976 (eleito pela Rolling Stone Brasil como o 41º melhor LP brasileiro da história e com canções memoráveis do naipe de “O que Será” e “Olhos nos Olhos”), como os grandes trabalhos musicais de seu autor.
Curiosamente, “Construção” é o primeiro disco de Chico Buarque desenvolvido após o exílio na Itália. Em 1969, o ano da decretação do famigerado AI-5, o músico pegou sua família (esposa e filha) e foi viver no exterior. Chico buscava um pouco de paz e o mínimo de segurança. Afinal, nessa época, houve um aumento considerável de perseguições políticas no país provocadas pelos milicos no poder (historicamente intransigentes com as classes artística e cultural e chegadinhos em atacar covardemente os civis). Ao retornar ao Brasil, um ano mais tarde, Chico Buarque começou a preparar o álbum que o levaria ao primeiro lugar.
Na verdade, a maioria das canções desse LP foi trazida por Chico mais ou menos pronta da Europa (principalmente as faixas desenvolvidas em parceria com Tom, Vinicius e Toquinho). Em território nacional, ele apenas lapidou essas criações e compôs algumas novas. Por exemplo, a canção “Construção”, uma obra-prima da música brasileira que emprestou seu título ao nome do disco (foi eleita pela revista Bravo, em 2008, a nona principal canção brasileira de todos os tempos), faz parte da segunda categoria. Ela foi criada a partir de uma cena vista no centro do Rio. Ao observar o canteiro de obras de um edifício que estava sendo erguido ao lado da gravadora Philips em meados de 1970, Chico musicou a tragédia urbana com uma felicidade absurda. Essa faixa apresenta versos em proparoxítonas, possui uma letra gigantesca que brinca com a ordem (ou desordem!) das palavras, tem forte tom de denúncia social (enfoca o descaso da população e dos governantes às necessidades dos trabalhadores mais humildes) e é executada com uma melodia de apenas dois acordes (gerando um forte contraste musical – letra elaboradíssima e melodia simplória).
Essa música foi a cereja do bolo (e que cereja!) de um LP desenvolvido com muito esmero do começo ao fim. Por falar na canção “Construção”, a dificuldade foi conseguir emplacá-la nas rádios do Brasil à fora. Os quase sete minutos de duração provocaram uma revolução do ponto de vista formal pois eram vistos como inviáveis comercialmente. Vale a pena dizer que as emissoras de rádio estavam acostumadas com canções de até três minutos. E Chico quebrou esse padrão quatro anos antes do Queen aparecer com “Bohemian Rhapsody” e uma década e meia antes do Legião Urbana criar suas sagas musicais intermináveis como “Eduardo e Mônica” e “Faroeste Caboclo”. Uma vez superada a resistência inicial das rádios, a música “Construção” foi parar no primeiro lugar (e no coração de todos os brasileiros de bom gosto).
Ouça, a seguir, a execução da canção “Construção”, em uma interpretação mais recente do próprio Chico Buarque:
O mais interessante é que o álbum “Construção” não é um disco de uma música só. O que o faz ser brilhante é a quantidade absurda de ótimas criações. Logo de cara, temos “Deus Lhe Pague”, a canção mais crítica do disco (além da letra, a própria melodia é angustiante). Em seguida surge “Cotidiano”, até hoje uma das faixas mais conhecidas de Chico. Aqui assistimos aos dramas de um casal engolido pelas banalidades do dia a dia. Repare que os pontos de vista dessas duas canções são parecidos ao da música “Construção”. Afinal, todas retratam as rotinas de trabalhadores pobres de um grande centro urbano brasileiro. As letras de protesto prosseguem em “Samba de Orly”, que é quase um hino dos repatriados.
Ouça “Deus Lhe Pague” (em interpretação dos Paralamas do Sucesso), “Cotidiano” (em show do Chico de alguns anos atrás) e, logo em seguida, “Samba de Orly” (em dueto marcante de Toquinho e Vinicius de Moraes ocorrido na década de 1980):
Como um bom álbum de Chico Buarque, há também músicas de amor no LP “Construção”. Algumas são literais, ou seja, mais voltadas para as alegrias e angústias das relações a dois. São exemplos disso “Desalento” e “Valsinha”. Outras canções amorosas possuem um subtexto com forte ar de protesto político e social, uma das especialidades de Chico. Podemos citar “Cordão”, “Olha Maria” e “Acalanto” como exemplares desse tipo de música que chamo de crítica velada. Já “Minha História/Gesubambino” é uma das raras canções interpretadas por Chico Buarque (lembremos que ela foi adaptada para o português) com uma pegada sacra. Ela chega a lembrar muito as canções cristãs de Roberto Carlos (que nunca teve pudor de apresentar criações desse gênero).
Ouça, a seguir, “Valsinha” (interpretação de Mônica Salmaso) e “Olha Maria” (em dueto de Milton Nascimento e Tom Jobim):
Não à toa, esse LP influenciou uma geração inteira e deu início à segunda fase da carreira musical de Chico Buarque, agora um artista mais maduro, crítico e com elevado apuro melódico. A intensificação das letras de protesto coincide com o apogeu da violência dos anos de chumbo da ditadura militar. Assim, Chico tornou-se a voz da parcela esclarecida, culta e engajada da sociedade brasileira. Como consequência, os órgãos de censura passaram, após “Construção”, a olhar com mais cuidado para as criações do músico.
Resolvi comentar hoje, na coluna Músicas, a história e as particularidades do álbum “Construção” porque ele completa, em 2021, 50 anos de vida. A única nota triste desse post do Bonas Histórias é perceber que o Brasil atual é cada vez mais parecido àquele do início da década de 1970. Com isso, as letras de protesto de Chico Buarque adquirem, infelizmente, maior apelo dramático. Quem manda vivermos em um país que ao invés de olhar para frente e construir seu futuro de forma saudável acaba caminhando a passos largos para trás, né?