Músicas: Cambalache - O tango profético de Enrique Santos Discépolo
- Ricardo Bonacorci
- há 8 horas
- 33 min de leitura
Lançada em 1934 no filme El Alma del Bandoneón, a canção do compositor argentino é uma tragicomédia que vislumbrou com tons pessimistas o que seria o século XX em seu país e no mundo. Com letra inusitada e melodia que flerta com as Milongas, Cambalache se tornou famosa na voz de Julio Sosa e é atualmente um dos Tangos mais críticos sobre a ambição e a falsidade da sociedade moderna.

Voltemos a falar de Tango na coluna Músicas, senhoras e senhores. Por quê? Porque continuo ouvindo com frequência esse gênero musical que representa tão bem o país que escolhi para viver (Argentina) e a cidade que moro há um ano e meio (Buenos Aires). Por mais que o ritmo nascido nos bordéis dos subúrbios portenhos não esteja no dia a dia de grande parte dos argentinos, como pensa a multidão de turistas que desembarca nos saguões de Ezeiza e do Aeroparque, ele está embrenhado na alma dos habitantes locais. É mais ou menos como o Samba no Brasil. Se o ziriguidum e o batuque dos tamborins não são ouvidos no cotidiano de boa parte dos meus conterrâneos, ainda assim são as melhores representações sonoras do nosso país. Ou você consegue conceber a nação verde-amarela sem o colorido musical das rodas de sambistas, hein?! Eu não consigo.
Nossos vizinhos ao Sul vivenciam dinâmica parecidíssima. Não escuto Tango em minha rotina diária, como nunca ouvi Samba de segunda a segunda quando vivia em São Paulo. Contudo, confesso orgulhoso que uma vez por semana ou, no mais tardar, uma vez a cada quinze dias, enquanto trabalho produzindo textos para o Bonas Histórias, para a EV Publicações e para a Epifania Comunicação Integrada, coloco os Tangões clássicos para tocar na minha playlist. Além de amolecer meu ouvido para o sempre desafiante castelhano rio-platense (falei disso na crônica “O Espanhol Argentino”, quarto episódio da série narrativa “Tempos Portenhos”), gosto do clima criado em casa com a execução dessas canções de elevada passionalidade. Como Hollywood descobriu há pelo menos quatro décadas, nenhum ambiente (seja cinematográfico, seja real) fica indiferente à combinação melódica de bandoneón, piano, violino, guitarra e contrabaixo e à integração de palavras que parecem vir de um choro coletivo ou de um grande protesto cívico.
Asseguro que minha experiência de viver em Buenos Aires é potencializada quando tenho como cenário da janela do meu escritório doméstico o Parque Saavedra. Conforme tratei em “Vida ao Ar Livre”, um dos relatos da atual temporada da coluna Contos & Crônicas, não há nada mais portenho do que ter um belo parque ou praça à disposição. Aí a cuia de mate amargo em cima da mesa e as porções generosas de medialunas ou empanadas saindo do forno só colaboram para elevar a sensação de argentinidade da minha rotina atual. E, claro, as músicas interpretadas por Carlos Gardel, Astor Piazzola, Libertad Lamarque, Juan Maglio Pacho, Julio de Caro, Rosita Quiroga e Roberto Polaco Goyeneche (figura onipresente no bairro que moro) tocando no Spotify são a cereja do bolo – o el dulce de leche del alfajor, como quieras. Isso é Argentina, meu povo!!! Esse é o verdadeiro clima de se estar em tierras hermanas!
A relação entre Bonas Histórias e o charmoso ritmo musical argentino já dura mais de um ano. Quem começou a flertar descaradamente com essa temática foi Marcelinha, mi hermanita que é professora de dança na cidade de São Paulo e diretora artística na Dança & Expressão. Depois de me visitar em Buenos Aires no final de 2023, ela produziu um post magnífico para a coluna Dança no qual apresentava a história, as características, a evolução e os principais passos do Tango. Obviamente, a sua perspectiva era a dos dançarinos. Admito que seu texto está tão delicioso que até eu, que não tenho molejo nem para caminhar em linha reta, fiquei com vontade de convidar uma bela dama (pode ser Gabrielle Anwar, Jessica Biel ou Jamie Lee Curtis) e ir para o centro do salão para bailarmos com os pés enroscados.
Em março de 2024, ainda sob os primeiros efeitos da minha paixonite cultural pela nação albiceleste (eu escrevi “nação albiceleste” e não “na anca da ambiciosa Celeste”, tá?), aproveitei o espaço da coluna Músicas para contar sobre o meu Tangão favorito: “Por Una Cabeza”. A criação de Carlos Gardel e Alfredo Le Pera que completa, em 2025, 90 anos é realmente fantástica e emociona até hoje os ouvidos dos amantes das boas canções. Vale a pena ler a respeito no blog. Para muita gente, essa faixa é a melhor representação de seu gênero musical. Difícil não concordar com essa percepção. Pensou em Tango, coloque a melodia e os versos de “Por una cabeza/todas las locuras/Su boca que besa/Borra la tristeza/Calma la amargura/Por una cabeza/Si ella me olvida/Qué importa perderme/Mil veces la vida/Para qué vivir” para tocar. Certamente o público ficará extasiado.

Hoje, gostaria de sair do convencional sem deixar o universo dos Tangos Clássicos. E, assim, debato com vocês a minha segunda faixa favorita desse ritmo musical: “Cambalache”. Se “Por Una Cabeza” é reconhecida imediatamente pelo público internacional e presença obrigatória em qualquer playlist tangueira, a mesma afirmação não pode ser feita sobre esse curioso e criativo hit concebido por Enrique Santos Discépolo. A canção de Discepolín, como o compositor era chamado carinhosamente pelos amigos, é mais popular entre os argentinos do que no exterior. É, portanto, sobre “Cambalache” que vamos tratar neste novo post da coluna Músicas, senhoras e senhores. Depois de algumas voltas em sentido anti-horário pelo salão, sejam bem-vindos à ode pessimista do século XX.
Criado em 1934, “Cambalache” é a canção que subverte a lógica das letras tradicionais de seu gênero musical ao tecer fortes críticas sociais, uma novidade para a época. Não por acaso, Enrique Santos Discépolo entraria para a história como o pessimista dos pessimistas e o introdutor de uma nova temática ao ritmo que se dedicou. Para ele, o Tango era um pensamento triste que podia/pode ser cantado/dançado. A partir daí, estava inaugurada uma nova vertente para a música que melhor representa a argentinidade e o tom inconformista de los hermanos.
É válido dizer que o tom crítico que vemos em “Cambalache” já era habitual na poesia, na ficção literária, nas peças teatrais e no cinema da Argentina, além dos materiais jornalísticos e nos bate-papos da população nos cafés e nas parrillas de Buenos Aires. Ou você consegue imaginar um argentino ou uma argentina segurando as reclamações, omitindo as indignações e engolindo a impetuosidade, hein? Eu não consigo. Pela ótica artístico-cultural, a novidade foi a inclusão da música como mais uma peça panfletária de protesto e de crítica social de um dos povos mais inconformados do mundo.
Assim, sai de cena a dor de cotovelo (mulher perdida – “Amargura” e “El Dia Que Me Querias ” são ótimos exemplos dessa temática), o doce amor maternal (a mãe é figura santificada pelos tangueiros – “La Casita de Mi Viejos”), o saudosismo e o lirismo do bairro natal e de lugares da cidade (Buenos Aires é o melhor lugar do mundo para se viver – “Cien Barrios Porteños”, “Mi Buenos Aires Querido” e “Caminito”), a camaradagem da turma de amigos (únicas pessoas em quem os compositores podiam confiar – “Adiós Muchachos”) e o próprio gênero musical (metalinguagem lírica – “El Choclo” e “Alguien Le Dice Al Tango”). Esses são os assuntos de 9 entre 10 Tangos. A partir de Discepolín, entra em campo a reclamação quanto à imoralidade dos novos tempos e a indignação com a vigarice avassaladora da modernidade. Convenhamos que é justamente essas características (reclamões e indignados) que melhor definem os argentinos há um século.
Segundo Enrique Santos Discépolo, “el mundo fue y será una porquería” (o mundo foi e será uma porcaria), “el siglo veinte es un despliegue de maldad insolente” (o século vinte é uma praga de maldade insolente), “vivimos revolcaos en un merengue” (vivemos mergulhados numa confusão) e “qué falta de respeto, qué atropello a la razón” (que falta de respeito, que atropelo à razão). Esses são alguns versos de “Cambalache”.

Em “Qué Vachaché”, canção de 1926, ele escreveu: “Lo que hace falta es empacar mucha moneda, vender el alma, rifar el corazón” (o que você precisa é arrumar muito dinheiro, vender sua alma, sortear seu coração), “plata, mucha plata y plata otra vez, así es posible que morfés todos los días” (dinheiro, muito dinheiro e dinheiro outra vez, assim é possível que você coma todos os dias) e “¿Que la honradez la venden al contado y a la moral la dan por moneditas?” (A honradez/honestidade é vendida por pechincha e a moral lhe dão por algumas moedas). Se esse cara não tinha uma visão de mundo negativa, não sei mais o que é desilusão, pessimismo e amargura!
O mais legal é ver que a bagunça cantada aparece na própria estrutura da letra de “Cambalache”. A canção não tem qualquer rigor métrico nem de rima. Para completar a pintura de originalidade dessa faixa, a música de Discepolín dialoga o tempo inteiro com a Milonga, o ritmo mais acelerado do Tango. Esse tempero torna sua melodia ainda mais marcante e verossímil. Porque, convenhamos, os tempos modernos são sempre mais acelerados e caóticos do que as lembranças do passado. Impossível não nos apaixonarmos por essa combinação inusitada e criativa que representa tão bem a alma argentina e o espírito portenho.
Antes de adentrarmos na análise propriamente de “Cambalache”, vamos fazer a contextualização histórica dessa canção de Enrique Santos Discépolo. Dessa maneira, tenho certeza de que será mais fácil para entendermos o quão impactante e original essa música foi e continua sendo. Como um típico post do Bonas Histórias, não dá para ficarmos só nas análises técnicas das obras culturais, né? Temos que mergulhar também nas boas histórias por trás de cada uma das manifestações artísticas comentadas. Aí vamos nós!
Quando compôs “Cambalache”, em meados da década de 1930, Discepolín já era um dos mais importantes compositores do Tango. Sua principal criação até então, “Yira Yira”, é de 1929. Apesar de eu preferir “Cambalache”, reconheço que “Yira Yira” é até hoje a peça mais popular do portfólio do argentino, além de ser um Tango cativante. Para quem não se recorda, essa é a canção com o refrão: “Verás que todo es mentira/Verás que nada es amor/Que al mundo nada le importa/Yira, yira/Aunque te quiebre la vida/Aunque te muerda un dolor/No esperes nunca una ayuda/Ni una mano, ni un favor”. Adoro como Carlos Gardel, o principal intérprete dessa faixa (e do Tango de modo geral), bradava a palavra “MENTIRA”. Nessa hora, sempre lembro da Tia Gê, irmã mais velha da minha mãe, que gritava no mesmo tom toda vez que eu contava alguma passagem pouco edificante do passado da nossa família: “MENTIRA!”, “MENTIRA!”, “MENTIRA!”.
Outros sucessos de Enrique Santos Discépolo do período Pré-Cambalache foram: “Chorra” (não confundir com “El Choclo”, que é de Ángel Villoldo), “Malevaje”, “Esta Noche Me Emborracho”, trio de canções de 1928, e “Confesión”, de 1930. Não por acaso, o compositor argentino era muito requisitado para criar as trilhas sonoras dos filmes. Para quem possa achar estranho esse fato, lembro algo que comentei no post de “Por Una Cabeza”. Entre os anos 1920 e 1950, por supuesto, não havia televisão. Dessa maneira, o público gostava de ir às sessões de cinema para ver os cantores que tanto admiravam nas rádios. E como atrativo adicional, os estúdios produziam longas-metragens com canções originais. Por isso, muitas faixas estreavam nas telonas e, só depois, ganhavam as estações radiofônicas. Quase todos os grandes Tangos dessa época foram apresentados ao público primeiramente nas obras audiovisuais.

Muito requisitado pelos cineastas para criar as faixas dos musicais, Discepolín produziu “Cambalache” especialmente para “El Alma del Bandoneón” (1934), filme dirigido por Mario Soffici e protagonizado por Libertad Lamarque, Santiago Arrieta, Domingo Sapelli e Dora Davis. Quem interpretou a canção no longa-metragem foi Ernesto Famá. O acompanhamento foi feito pela Orquestra de Francisco Lomuto. É bom dizer que tanto Famá quanto Enrique Santos Discépolo fizeram pontas em “El Alma del Bandoneón” – não eram protagonistas.
No período de Ouro dos Musicais, muitos dos atores e atrizes eram cantores – na verdade, o correto seria dizer que muitos cantores e cantoras assumiram as funções de atores e atrizes. Afinal, quem não soubesse cantar estava fadado aos papéis menores. Essa era a realidade tanto no cinema argentino e brasileiro quanto no cinema norte-americano e europeu. Lembremos das atuações inesquecíveis de Bing Crosby, Doris Day, Freddie Aster, Judy Garland, Elvis Presley e Carmen Miranda em Hollywood. Eles eram estrelas de primeira grandeza da Sétima Arte.
Curiosamente, Enrique Santos Discépolo também teve atuação como ator em muitos filmes. Porém, diferentemente de vários colegas, ele era um profissional do universo cênico. Antes de ser músico, o argentino já atuava como intérprete nos palcos de teatro de Buenos Aires. Mesmo assim, por não saber cantar (ele não cantava nem tocava instrumentos musicais, apenas compunha), Discepolín nunca se tornou protagonista no cinema (apenas nos teatros). Além de papéis menores nas telonas, o compositor dirigiu e roteirizou várias produções cinematográficas principalmente entre 1939 e 1951.
Enrique Santos Discépolo nasceu em 1901 em Buenos Aires em uma família de origem italiana e morreu em 1951 na capital da Argentina. Foi um dos mais importantes compositores de Tango, ao lado de Homero Manzi, Alfredo Le Pera, Carlos Gardel, Ástor Piazzolla, Horacio Ferrer e Juan D´Arienzo. Por ter sido essencialmente letrista, Discepolín sempre foi considerado pela crítica mais como poeta do que como músico. Uma vez criada as letras das canções, precisava da colaboração dos parceiros musicais para o desenvolvimento das melodias. Com “Cambalache” não foi diferente. Por mais que tenha os créditos exclusivos por essa composição, sabemos que o poeta não criou a parte musical deste Tangão. Se a falta de habilidade ao microfone e com os instrumentos fechou algumas portas (principalmente como ator cinematográfico), o talento na articulação das palavras abriu outras tantas. Além de destacado compositor e roteirista, ele foi um elogiado dramaturgo.
A biografia de Enrique Santos Discépolo é marcada por uma sucessão de tragédias. Não por acaso, os historiadores do Tango apontam vários motivos para o pessimismo do músico. O pai biológico de Discepolín abandonou a família tão logo o menino nasceu. E ele ficou órfão do pai adotivo aos 5 anos e da mãe aos 9 anos de idade. Até virar ator profissional no teatro, Enrique viveu constantemente sob restrito orçamento doméstico. As coisas em casa só mudaram quando o irmão 14 anos mais velho, Armando Discépolo, se tornou um dramaturgo famoso e aplaudido nacionalmente. Armando é considerado precursor do estilo gótico/grotesco no campo cênico argentino. Ainda assim, esse êxito familiar está até hoje envolto em suspeitas e dúvidas. Muita gente acredita que quem escrevia as peças premiadas era o irmão caçula. Essa tese é corroborada pelas evidências de que tão logo Enrique começou a escrever suas músicas e a assinar suas próprias obras teatrais, Armando nunca mais produziu nada com a qualidade dos tempos áureos. Coincidência? Muitos argentinos juram que não.

Nem no amor Enrique Santos Discépolo teve êxito. À la Noel Rosa, o tangueiro colecionou várias desilusões afetivas. O relacionamento mais longo que teve foi com Ana Luciano Divis, atriz e cantora espanhola conhecida pelo nome artístico de Tania. A união de mais de duas décadas com Tania lhe trouxe mais dores de cabeça do que alegrias. O casal vivia brigando. Segundo diziam as más línguas, os motivos dos rotineiros entreveros eram o ciúme doentio dela e o jeito ditatorial com que a companheira controlava tudo referente a vida do marido, inclusive as finanças e a carreira artística. Para os amigos de Enrique, ele estava totalmente nas mãos de Tania, que fazia o que queria com ele.
Em uma viagem ao México em 1945, Discepolín (que pelo visto dava motivos para os ciúmes e a ira da esposa, né?) conheceu Raquel Díaz de León, então com 17 anos. A diferença de 27 anos entre eles não os impediu de viver uma paixão fulminante. Conforme Enrique revelou mais tarde, esse foi o único período em que foi feliz. Quando Tania descobriu que o maridinho tinha engravidado uma moça no exterior e não queria voltar para a Argentina, foi buscá-lo embaixo de tapas e chantagens emocionais. Com o rabinho entre as pernas, Enrique retornou forçado a Buenos Aires. Porém, manteve por anos correspondência clandestina com Raquel, que tempos depois se tornou importante atriz, jornalista e escritora no México. O problema é que o argentino jamais teve a oportunidade de conhecer o filho, que ganhou seu nome. Saber da existência da criança e não conviver com ela só aumentou sua melancolia.
Com essa biografia, não nos parece surpreendente que Enrique Santos Discépolo seja um poço de pessimismo e tenha feito obras musicais e teatrais com forte teor negativo. Por mais que “Cambalache” tenha se tornado a canção símbolo dessa característica, vale a pena dizer que ela não foi a primeira nem foi a última faixa com viés crítico de seu compositor. O Tango de Discepolín que inaugurou a pegada de amargura e crítica social foi “Qué Vachaché”, de 1926. O título é uma brincadeira com a expressão portenha: “¿Qué va cha ché?” (algo mais ou menos como “O que está acontecendo, hein?”). Essa música denunciava um grupo de pessoas que se preocupava mais com o dinheiro do que com a moral. Em outras palavras, foi a precursora da temática de “Cambalache”.
Em 1943, o marido de Tania lançou “Uno”, outro Tango famosíssimo e provavelmente o mais triste da história. Os versos dele que mais gosto são: “Uno va arrastrándose entre espinas/Y en su afán de dar su amor/Sufre y se destroza hasta entender/Que uno se quedó sin corazón” (Alguém rasteja por espinhos/E na vontade de dar seu amor/Sofre e se destrói até entender/Que alguém ficou sem coração) e “Precio de castigo que uno entrega/Por un beso que no llega/O un amor que lo engañó/Vacío ya de amar y de llorar/Tanta traición” (O preço do castigo que se paga/Por um beijo que não vem/ Ou o amor que o enganou/Vazio por amar e chorar/De tanta traição). Se você curte uma boa dor de cotovelo, vai pirar com “Uno”. Ouça a interpretação de Roberto Goyeneche. É espetacular!
Para quem possa reclamar do que estou narrando, destaco que o pessimismo e a melancolia sempre fizeram parte do Tango. Para muita gente, essa não é uma característica apenas desse estilo musical como seria também um traço da natureza do povo argentino. Depois de conviver com uma ou duas argentinas nos últimos anos, posso garantir que há um fundo de verdade nessa ideia. O choque cultural é enorme entre os países vizinhos. Enquanto nós brasileiros, por exemplo, vivemos naturalmente alegres e risonhos, os argentinos cultivam certo mal humor e negatividade crônica. Eu costumo brincar que, por falta de motivos, meus conterrâneos são felizes. Los hermanos (y las hermanas), por falta de motivos, são naturalmente infelizes. Portanto, tal questão transcenderia o universo sonoro e avançaria para o campo cultural. Apesar de concordar com essa definição, sei do quão polêmico é o assunto. Por isso, não me atreverei por ora a entrar em mais detalhes neste debate que lembra as calorosas discussões de quem foi melhor: Pelé ou Maradona?

O que posso dizer sem riscos de ser cancelado de parte a parte é que, no Tango, a tristeza e a amargura sempre estiveram envoltas na desilusão amorosa. Depois de tomar um belíssimo pé na bunda da pessoa amada, é complicado se levantar, sacodir a poeira e dar a volta por cima. O que Enrique Santos Discépolo fez foi falar mais ou menos assim: “Gente, gente, o problema não é das desgraças afetivas que cada um de nós enfrenta diariamente. O problema central é do mundo que habitamos, da sociedade de um modo geral. Nossas vidas não prestam porque a realidade moderna e a essência da humanidade são poços de tragédias, falcatruas e desilusões”. Esses seriam os motivos, segundo o compositor argentino, para a sua infelicidade (e de todos nós).
Essa atmosfera negativa tem respaldo histórico. Quando Discepolín criou “Cambalache”, a Argentina vivia a chamada Década Infame. Para quem estuda o passado desse país (põe o dedo aqui que já vai fechar!), a sensação é que todas as décadas foram infames. Entretanto, só os anos 1930 e o início dos anos 1940 ganharam efetivamente esse apelido pouco nobre. Afinal, foi nessa fase (para ser mais preciso em meu comentário, de setembro de 1930 a junho de 1943) que a Democracia argentina foi agredida pela primeira vez. Primeira vez no século XX, né? Porque se há algo que tira o sono da sociedade albiceleste desde a independência é a eclosão de golpes de Estado, principalmente os promovidos pelas Forças Armadas.
Em 1930, um golpe militar (sempre eles!) destituíram o governo civil eleito de Hipólito Yrigoyen e implementou um regime violento, corrupto e conservador. Por mais que tenha dado início ao processo de industrialização da Argentina, o novo regime representou o sensível empobrecimento da população e o fim da fase dourada da economia local. Para quem desconhece o passado abastado de los hermanos, nosso vizinho era um dos países mais ricos do mundo até o século XIX. Isso até a chegada dele – o temido e amaldiçoado século XX!!! Como consequência à Década Infame, os argentinos viram brotar o movimento peronista, que dizia promover a justiça social. Sabe de nada, inocente! Convenhamos que uma nação que fica dividida entre os ideais chulos dos militares e a concepção tacanha dos peronistas não poderia se sair muito bem nas décadas seguintes.
O fato é que o século XX, na visão de Enrique Santos Discépolo, aparece como o maior vilão da felicidade do povo (argentino). Essa cruel e sanguinária personagem foi impiedosa ao destruir o bem-estar de boa parte das pessoas (na Argentina). Curiosamente, Discepolín condena o século ainda em 1934, sem saber o que viria pela frente. Até ali, a Gripe Espanhola, a Primeira Guerra Mundial, a imigração descontrolada do campo para as cidades, o colonialismo econômico inglês e a ambição desmedida do capitalismo eram as origens dos males modernos. Sabemos que logo a seguir as coisas só piorariam: a tirania Nazifascista, a Segunda Guerra Mundial, as bombas atômicas no Japão, a Guerra Fria, o conflito dos misseis em Cuba, a perseguição promovida pelo Stalinismo, a Guerra do Vietnã, a fome na África, a epidemia de AIDS, o genocídio cambojano e ruandês, as Guerras no Oriente Médio, as Crises do Petróleo, a globalização econômica, as Ditaduras Militares na América do Sul e o empobrecimento acentuado da já pobre América Latina. Por essas e outras, “Cambalache” ganha um ar de profecia. A sensação que temos é: como Enrique Santos Discépolo conseguiu prever o que viria mais à frente, hein?!
Paradoxalmente, esse Tango não se transformou em um sucesso musical instantaneamente. Para ser preciso na minha informação, foram necessários bons anos até o público argentino começar a gostar de “Cambalache”. Após Ernesto Famá cantá-lo no filme de Mario Soffici em 1934, a repercussão do público foi fria, quase gelada. A primeira interpretação ao vivo de “Cambalache” ocorreu em dezembro daquele mesmo ano no Teatro Maipo, em Buenos Aires. A pedido de Discepolín, Sofía La Negra Bozán executou a canção. Novamente, a reação da plateia foi tímida.

Juro que não sei explicar o motivo das estreias pouco efervescentes da hoje faixa clássica da música argentina. Talvez as inovações trazidas soassem esquisitas num primeiro momento aos ouvidos do público conservador da época? Pode ser. Ou o regime ditatorial dos militares trabalhou para boicotar esta criação de Enrique Santos Discépolo? Não duvido. Nenhum governante gosta de obras culturais críticas, ainda mais os brucutus sanguinolentos das Forças Armadas. Contudo, não há provas de censura, repúdio ou boicote a “Cambalache” nos primeiros anos por quem ocupava o comando da Casa Rosada.
O que sabemos é que mais tarde, no final dos anos 1940, os peronistas que tomaram o poder dos militares (e implementaram uma nova ditadura, dessa vez de esquerda) proibiram essa música de tocar nas rádios, shows, teatros e salas de cinema. As justificativas utilizadas foram hilárias. Os censores alegaram que a canção trazia excesso de lunfardos, as gírias portenhas (que ainda estou em processo de aprendizado). E que essa característica configuraria uma prática imoral. Para completar a overdose de absurdos, reclamaram que a letra falava de embriaguez (onde?) e recorria a expressões imorais (o quê?!). Por mais incongruentes que fossem essas alegações, “Cambalache” não pôde ser tocado nos anos iniciais do primeiro governo de Juan Domingo Perón.
Esse Tango só se tornou efetivamente popular, acredite se quiser, em 1955, quatro anos após o falecimento de Discepolín e 21 anos depois de seu lançamento no filme “El Alma del Bandoneón”. Portanto, não é errado falarmos que essa era uma canção a frente de seu tempo e que precisou de uma geração até ser compreendida. O responsável pela proeza de transformar uma música dos anos 1930 em fenômeno radiofônico nos anos 1950 foi Julio Sosa, cantor uruguaio radicado em Buenos Aires e um dos maiores intérpretes do Tango.
Sosa não apenas regravou “Cambalache” como mudou muitas coisas na música de Enrique Santos Discépolo. Além de dar uma interpretação mais debochada e dramática (totalmente diferente da versão original de Ernesto Famá, que era mais sóbria), o uruguaio alterou muitos versos da canção. Pode isso, Arnaldo?! Não sei se pode mexer na letra sem o consentimento do compositor, mas fizeram isso várias vezes em “Cambalache”. Eu disse várias vezes!!! Como o criador já era falecido (e sua brava esposa também), não ouve reclamação.
Para ser bem franco com você – a história vai ficando cada vez mais interessante! –, essa música possui várias versões. Confesso que já perdi as contas de quantas letras diferentes de “Cambalache” ouvi. A impressão que tenho é que cada cantor que a interpretou se viu no direito de mudar uma palavrinha aqui e um termo acolá. Aí depois de quase um século e incontáveis cantantes, a coisa saiu do controle. Julio Sosa só foi o primeiro a alterar a letra da canção. Depois dele, os músicos formaram fila para colocar seu tempero pessoal neste Tango.

Para mim, a versão que mais gosto é justamente a de Sosa. Mas como eu sei qual é a versão de Discepolín e qual é a versão do uruguaio, Ricardo? É simples, questionador(a) e participativo(a) leitor(a) da coluna Músicas. Enquanto o compositor escreveu “En el quinientos seis/Y en el dos mil también”, “el que vive de los otros" e "Mezclaos con Stavisky/van Don Bosco y la Mignon/Don Chicho y Napoleón/Carnera y San Martín", o cantor bradava aos microfones, respectivamente, “En el quinientos diez/Y en el dos mil también”, “el que vive de las minas” e “Mezclaos con Toscanini van Scarface y la Mignon, don Bosco y Napoleón, Carnera y San Martín”.
As alterações efetuadas por Julio Sosa funcionaram tão bem que a música estourou. A partir daí, “Cambalache” se tornaria não apenas um Tango emblemático para os argentinos como virou uma representação genuína da alma nacional. O poeta Leónidas Lamborghini chegou a dizer que essa criação de Enrique Santos Discépolo seria o verdadeiro hino da Argentina. Ele não deixa de estar certo. Em quase um século de vida, trechos de “Cambalache” são incorporados rotineiramente aos discursos políticos, aos memes da Internet, às citações de filmes e romances contemporâneos, às charges nos jornais, aos grafites nas ruas de Buenos Aires e aos diálogos cotidianos dos portenhos.
Esse alcance só foi possível pelo tom contemporâneo da letra da canção. Ouça-a agora e você terá a impressão de que se trata de uma composição recente. O termo “cambalache” do título da música significa na Argentina e no Uruguai “escambo”. Escambo é aquele tipo de transação comercial feita sem dinheiro físico e com a intermediação direta entre produtos. O sujeito vende uma vaca por três porcos e seis galinhas. Um carro é negociado por duas televisões, um aparelho de DVD, um fogão e uma geladeira, por exemplo. A palavra “cambalache” também tem outras designações em espanhol como “loja de produtos usados” (um brechó que não fica restrito às roupas) ou “casa de penhor”. Como tanto no escambo quanto nos estabelecimentos comerciais listados reina o caos e aleatoriedade, “cambalache” se tornou com o tempo sinônimo de desordem e bagunça. Os portenhos usam atualmente outra expressão para designar essa ideia de confusão: “quilombo” – palavra que não tem nada a ver com o sentido do português brasileiro. Para Discepolín, o século XX era “cambalache, problemático y febril” (bagunçado, problemático e febril).
Antes e depois de Julio Sosa, vários tangueiros argentinos cantaram o caos e os trambiques do mundo moderno. De cabeça, me recordo de Carlos Gardel e Francisco Lomuto & Fernando Diaz como intérpretes da fase pré-Sosa. No período pós-Sosa, dá para listar Adriana Varela, Litto Vitale & Juan Carlos Baglietto, Libertad Lamarque, Roberto Goyeneche, Alberto Echagüe, Susana Rinaldi, Roberto Arrieta & Miguel Calo e Tita Merello. Deve ter mais cantores, muito mais, mas são só esses que conheço. Nos anos 1980, vários grupos de Rock passaram a cantar “Cambalache” numa versão mais eletrônica. Os pioneiros foram os integrantes da banda argentina Sumo. Em seguida, vieram os uruguaios de Los Estómagos e de Buitres. Na década de 1990, foi a vez da galerinha do heavy metal dar o seu tempero para a canção de Enrique Santos Discépolo. A proeza coube aos argentinos do Hermética.
A avalanche de músicos interessados em interpretar “Cambalache” não foi uma onda que ficou restrita aos países banhados pelo Rio da Prata. Na Espanha, Joan Manuel Serrat, Pasión Vega, Julio Iglesias, Luis Eduardo Aute e Ismael Serrano deram o seu toque pessoal para essa música. Até no Brasil, tivemos fãs famosos do Tangão pessimista. Caetano Veloso em 1969, Angela Roro em 1982 e Gilberto Gil em 2004 o cantaram. Porém, a versão nacional mais famosa de “Cambalache” é de Raul Seixas em 1987. Inclusive, o bom baiano, como rezava a tradição argentina, mudou alguns versos da canção. A parte mais engraçada é: “Qualquer um é senhor/Qualquer um é ladrão/Misturam-se Beethoven/Ringo Starr e Napoleão/Pio IX e Dom João/John Lennon e San Martin”. Ou seja, o Maluco Beleza deu uma belíssima modernizada às personagens citadas. Hilário!

Por falar em Raul Seixas, eu preciso confidenciar algo nem um pouco digno que se passou comigo quando vivi pela primeira vez na Argentina. Entre 2004 e 2005, eu tinha 20 e poucos aninhos e não conhecia ABSOLUTAMENTE NADA da cultura e da música do cone sul do continente (era uma criança!). E fui morar em Buenos Aires durante o programa de trainee da Coca-Cola. Eu e uma galerinha de dez conterrâneos recém-formados nas melhores universidades de São Paulo partimos para o treinamento na unidade portenha da multinacional de refrigerantes.
Ao mesmo tempo em que assistíamos às aulas na sede da empresa e batíamos pé pelas ruas com os vendedores e os executivos de vendas, também recebíamos vários convites para conhecer locais turísticos da cidade. Minha impressão era que o pessoal dos Recursos Humanos da Coca da Argentina não se cansava de mimar os jovens gringos que chegaram para aprender com eles. Depois que deixei a casa de Dona Júlia, minha avozinha portuguesa, na cada vez mais distante infância, acho que nunca fui tão paparicado na vida quanto naqueles tempos como trainee. Simplesmente, ganhava ingressos para ir a qualquer jogo de futebol (fui várias vezes ao Monumental de Núñez e à La Bombonera), espetáculo musical (teve uma apresentação do Paralamas do Sucesso que foi espetacular!), show de dança e festival de cinema. Isso sem contar os muitos e muitos restaurantes de primeira linha. Juro que entendo quando a pessoa não consegue largar a carreira executiva mesmo odiando o trabalho.
Em um desses incontáveis passeios de lazer, fui com meia dúzia de trainees brasileiros e três executivos argentinos do RH da Coca Cola à Esquina Homero Manzi, uma das casas mais tradicionais de Tango de Buenos Aires. A noite foi super agradável no bairro de Boedo. Os espetáculos dançantes eram intercalados com boa música e ótima comida. Entretanto, o que mais me marcou foi um fora homérico que dei. Ai, ai, ai. Tenho vergonha até de contar...
No intervalo das apresentações dos dançarinos, uma dupla de músicos subiu ao palco e começou a tocar e cantar “Cambalache”. Como cresci ouvindo Raul Seixas, meu músico brasileiro favorito como mostrei no post de “Ouro de Tolo”, me senti preparado para fazer um comentário pretensiosamente sagaz. Virei para os portenhos da minha mesa e falei em tom sabichão: “Essa música aí é Cambalache. Ela é de um roqueiro brasileiro chamado Raul Seixas”. O trio me olhou incrédulo e pediu para que eu repetisse o que havia dito. Eu repeti alegremente. Aí eles caíram na risada. “Não, Ricardo! Esse é um Tango argentino”. A galerinha se divertiu à rodo com minha ignorância.
Foi nessa noite portenha há 20 anos que ouvi pela primeira vez o nome de Enrique Santos Discépolo. Conforme descobri da pior forma possível, não foi o Maluco Beleza que criou “Cambalache”. Ele nem sequer foi o roqueiro pioneiro a adaptar esse Tango para seu gênero musical, feito dos integrantes da banda Sumo. Para você não cometer gafes como essa, estou contando essa história que tanto me envergonha. Bagagem cultural é tudo nessa vida, senhoras e senhores. Sem repertório, ficamos à deriva como náufragos no mar da vida. É como dizia Discepolín: “Ignorante, sabio o chorro/Pretencioso o estafador/Todo es igual/Nada es mejor/Lo mismo un burro/Que un gran profesor”.
Abaixo, podemos apreciar os versos desse Tangão memorável. Obviamente, peguei a versão em espanhol e não a brasileira, né? E qual das muitas variantes da música em castelhano selecionei? A que para mim é a definitiva – a de Julio Sosa. E logo a seguir, podemos ouvir sua interpretação mais famosa, aquela que foi imortalizada na voz do cantor uruguaio. Deleite-se:

“Cambalache” (1934) – Enrique Santos Discépolo
Que el mundo fue y será una porquería
Ya lo sé
En el quinientos diez
Y en el dos mil también
Que siempre ha habido chorros,
Maquiavelos y estafaos,
Contentos y amargaos,
Valores y dublé
Pero que el siglo veinte
Es un despliegue
De maldad insolente,
Ya no hay quien lo niegue
Vivimos revolcaos
En un merengue
Y en el mismo lodo
Todos manoseaos
Hoy resulta que es lo mismo
Ser derecho que traidor
Ignorante, sabio o chorro
Pretencioso o estafador
Todo es igual
Nada es mejor
Lo mismo un burro
Que un gran profesor
No hay aplazaos
Qué va a haber
Ni escalafón
Los inmorales nos han igualao
Si uno vive en la impostura
Y otro afana en su ambición
Da lo mismo que sea cura
Colchonero, rey de bastos
Caradura o polizón
Qué falta de respeto
Qué atropello a la razón
Cualquiera es un señor
Cualquiera es un ladrón
Mezclao con Toscanini,
Van Scarface y Napoleón
Don Bosco Y La Mignón
Carnera y San Martín
Igual que en la vidriera irrespetuosa
De los cambalaches
Se ha mezclao la vida
Y herida por un sable sin remaches
Ves llorar la Biblia
Junto a un calefón
Siglo veinte, cambalache
Problemático y febril
El que no llora, no mama
Y el que no afana, es un gil
Dale nomá,
Dale que va
Que allá en el horno
Se vamos a encontrar
No pienses más
Séntate al lado
Que a nadie importa
Si naciste honrado
Si es lo mismo el que labura
Noche y día como un buey
Que el que vive de las minas
Que el que mata
Que el que cura
O está fuera de la ley
Vamos começar a análise propriamente dita dessa canção por sua melodia. “Cambalache” é um Tango extremamente rápido e com sonoridade marcante que lembra bastante as músicas tradicionais espanholas. Se você se recordar ligeiramente dos flamencos, saiba que não é por acaso. Os instrumentos utilizados na execução dessa faixa argentina clássica são geralmente o piano, o contrabaixo e o bandoneón (a boa e velha sanfona para os brasileiros). Esse trio não pode faltar. Dá para acrescentar também o violino e a guitarra, o que cai muitíssimo bem. O quinteto completo foi utilizado justamente nas principais versões desta música, aquelas interpretadas por Julio Sosa, Carlos Gardel e Roberto Goyeneche.
Pelo cantar falado (espécie de Rap à moda antiga) e pelas notas rápidas e fortes de “Cambalache”, confesso que sempre acho que estou diante de uma Milonga. A Milonga é o subgênero do Tango (alguns a consideram um ritmo independente que tem um parentesco próximo do Tango) caracterizado pela ironia/humor (seja pelo erotismo acentuado, seja pela forte crítica social), pela maior velocidade de execução e pela interpretação que se aproxima bastante da conversa cotidiana. Pelo que você escreveu agora, Ricardo, “Cambalache” seria mais uma Milonga do que um Tango, não é?! Exatamente, astuto(a) e cada vez mais atuante leitor(a) da coluna Músicas. Siiiiiiiiiiiiim. É essa a minha impressão! Na minha visão (ou seria audição?!), essa criação de Discepolín está mais para uma Milonga do que para um Tango.
Contudo, sempre que falo isso para os argentinos, eles me olham indignados e bradam enojados: “Não! Cambalache não é uma Milonga! Pelo amor de Deus, não fale besteira. Ele é um típico Tango de Ouro”. Lembrando das risadas do pessoal da Coca-Cola na Esquina Homero Manzi em 2004 e dos versos de Enrique Santos Discépolo de 1934 que diziam “Dale nomá/Dale que va/Que allá en el horno/Se vamos a encontrar/No pienses más/Séntate al lado”, simplesmente interrompo a discussão e guardo para mim tais pensamentos. Talvez eu esteja outra vez equivocado. Ainda assim que “Cambalache” se parece muitíssimo com as Milongas, isso sim parece, queiram ou não os argentinos.
Outra questão que precisa ser dita sobre essa música é que sua melodia é extremamente marcante. Basta ouvirmos seus primeiros acordes para sabermos que estamos diante de “Cambalache”. Tal efeito também é característico de “Por Una Cabeza”. Não à toa, essa dupla está no conjunto de canções tão conceituadas, né? Em poucos segundos de execução, identificamos esses hits clássicos sem titubear e nos emocionamos com suas construções musicais.
Prova disso ocorreu na primeira semana de janeiro deste ano, quando fui com Mara, uma das amigas mais maluquinhas (e trambiqueiras) que tenho em São Paulo (beijinho, Marita!), ao El Boliche de Roberto. O bar de Tango quase centenário de Almagro é point da boa música (e ótimas histórias desde a Sub-30). Enquanto o casal de dançarinos Celinha e Luís, outros hóspedes paulistanos do cada vez mais apertado apartamento de Saavedra (abraços, galerinha!), rumou empolgado para a aula de Tango na La Catedral Club, ali do lado, eu e Marita, também conhecida como Moça Cambalache (eu não tinha pensado sobre isso até então, mas essa canção parece que foi escrita para ela!), fomos ouvir canções argentinas tendo a companhia de empanadas quentinhas e garrafas de vinho Malbec.

Sentados à mesa do El Boliche de Roberto, assistimos à chegada do primeiro grupo de músicos da noite. Brincando, sentenciei com a Moça Cambalache: “Eles vão começar com “Por Una Cabeza”. Mal a banda começou a tocar, Mara me olhou incrédula: “Você acertou!”. Quando eles estavam terminando a faixa inicial e se preparando para a segunda faixa, alertei minha amiga: “Agora vão de Cambalache”. Aí fui eu o surpreendido. Mal iniciaram os novos trabalhos, deu para perceber o novo acerto. Ao pé do ouvido de Mara, já um tanto alcoolizada, disse orgulhoso: “Não falei!”.
Qual a moral dessa desnecessária história, Ricardo? São vários as reflexões geradas. Em primeiro lugar, “Cambalache”, assim como “Por Una Cabeza”, possui uma melodia marcante desde os primeiros acordes, como acabei de dizer e provar. Em segundo lugar, se você quer agradar a plateia de argentinos e turistas gringos ávidos por ouvir bons Tangos, inicie sua apresentação por esses dois clássicos – e na ordem executada pelos músicos da casa de Almagro. Certamente, o público já ficará extasiado com seu portfólio musical. Para completar os aprendizados culturais, não visite em hipótese nenhuma o banheiro feminino do El Boliche de Roberto. Segundo relatos de minhas companheiras de jornada tangueira, não existe local mais sujo no planeta. Dizem que a última limpeza ali ocorreu quando Perón (e a barata que jaz ao lado do vaso) ainda eram vivos.
Por mais interessante que seja a melodia, minha opinião é que o maior brilho de “Cambalache” está em sua letra. Ela é sensacional. Juro que não sei por onde começar a análise dos versos de Discepolín. Talvez um bom ponto de partida seja apontar o caráter atemporal e universal do conteúdo desta música. Note bem o quão paradoxal é isso. O compositor criou uma canção crítica sobre os anos 1930 na Argentina que se tornou uma marca registrada de seu país. Porém, utilizou conceitos e personagens que não conferem uma pegada datada nem local para o Tangão. Assim, um(a) italiano(a) em 1930, um(a) egípcio(a) em 1940, um(a) australiano(a) em 1950, um(a) mexicano(a) em 1960, um(a) alemão(ã) em 1970, uma) japonês(a) em 1980, um(a) sul-africano(a) em 1990, um(a) brasileiro(a) em 2000, um(a) palestino(a) em 2010 e um(a) paraguaio(a) em 2020 podiam ouvir “Cambalache” e achar que a canção estava tratando de suas realidades. É ou não é incrível tal efeito, hein?!
A mistureba de citações de figuras nacionais com nomes internacionais e a miscelânia de referências às personalidades daquele tempo com gente do passado longínquo ajudam a criar o tom de perenidade da letra. Os versos originais da canção diziam: “Mezcla'o con Stavisky/Va Don Bosco y La Mignon/Carnera y Napoleón/Don Chicho y San Martín”. Por um lado, temos referências à realidade argentina como José de San Martin, um dos heróis da Independência da Argentina, e Don Chicho, apelido de Juan Galiffe, mafioso famoso de Rosário. Por outro lado, há Don Bosco, sacerdote italiano que criou a ordem dos Salesianos, e Alexandre Stavisky, histórico golpista nascido na Ucrania que abalou as finanças da França. Paralelamente, assistimos a Primo Carnera, boxeador italiano famoso nos anos 1930, e Napoleão Bonaparte, um dos políticos mais famosos de todos os tempos. Nessa brincadeira plural, surge até o tempero de uma figura ficcional: La Mignon é uma personagem literária de Goethe na saga “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister” (Editora 34).
Provando que “Cambalache” é literalmente uma bagunça, Julio Sosa acrescentou na roda (ou na canção) Arturo Toscanini e van Scarface. O primeiro foi um famoso músico italiano de ópera e o segundo foi... foi... foi... não sei. Não faço ideia quem seria esse tal de van Scarface. Há quem ainda escute o uruguaio cantando Carrera (jogador argentino de sinuca famoso nos anos 1950) ao invés de Carnera (o já citado boxeador dos anos 1930). Contudo, as mais hilárias mudanças na letra de “Cambalache” vieram de Raul Seixas. O Maluco beleza temperou a sua versão Rock in Roll do Tango argentino com os músicos Beethoven, Ringo Starr e John Lennon, o papa Pio IX e o rei lusitano Dom João. Hilário, não?! Escute. Vale a pena.

É legal notar que a composição original de Enrique Santos Discépolo se integra às incontáveis adaptações com naturalidade e de um jeito pra lá de escrachado. Se fosse um romance ou uma novela que estivesse comentando na coluna Livros – Crítica Literária, certamente classificaria “Cambalache” como uma tragicomédia. Essa é uma visão particular minha. O compositor quis dar esse efeito bem-humorado? Conhecendo seu histórico de vida e seu portfólio musical, talvez responderia a minha própria pergunta com uma negativa. Entretanto, é assim que sua música soa à maioria dos ouvintes hoje. É difícil não achar graça nos versos: “Que el mundo fue y será una porquería/Ya lo sé”, “Vivimos revolcaos/En un merengue/Y en el mismo lodo/Todos manoseaos”, “Todo es igual/Nada es mejor/Lo mismo un burro/Que un gran profesor”, “Qué falta de respeto/Qué atropello a la razón/Qualquiera es un señor/Cualquiera es un ladrón” e “Siglo veinte, cambalache/Problemático y febril/El que no llora, no mama/Y el que no afana, es un gil”.
Algo que passa desapercebido do público estrangeiro e que os argentinos valorizam bastante é o uso de lunfardos em “Cambalache”. Como mencionei rapidamente no começo deste post da coluna Músicas, lunfardos são as gírias e os ditados populares dos portenhos. Se atualmente a variante do castelhano falada à beira do Rio da Prata é enaltecida e até incentivada, há um século a realidade era bem diferente. Prova disso é que a canção foi proibida pelo governo de Perón justamente por empregar termos menos formais e vistos como chulos. Dá para acreditar?!
Alguns lunfardos que posso apontar nesse Tango são “chorro” (ladrão), “plata” (dinheiro), “dublés” (moedas falsas ou joias falsificadas), “afanar” (roubar), “labura” (trabalho), “merengue” (dança que adquire sentido de confusão/bagunça), “mina” (menina, mulher) e, claro, “cambalachos” (negócios escusos). Já as expressões “dale nomá, dale que va” (juro que não sei como traduzi-las – talvez algo como “vá em frente, vai que vai”) são muuuuuuuuito portenhas e ouvidas até hoje no dia a dia da capital argentina. Para ficar completa a lista de lunfardos, só faltou mesmo empregar as duas palavras mais escutadas nas ruas de Buenos Aires: “boludo(a)” (besta/bobão) e “quilombo” (confusão/bagunça).
A linguagem coloquial fica mais evidente no uso de termos populares como “colchonero”, apelido dos torcedores do Atlético de Madrid, e “rey de bastos” (rei de paus), carta de Tarot que representa a pessoa virtuosa que é fiel aos seus valores independentemente da opinião alheia. E em ditados politicamente incorretos que são quase universais: “el que no llora no mama” (aquele que não chora não mama) e “y el que no afana es un gil” (quem não rouba é um bobo). Há até quem aponte “La Mignon”, citada há pouco, não como a personagem de Goethe e sim como expressão da época para as mulheres de vida fácil, muitas delas francesas, que davam (vendiam) alegrias para os homens nos meretrícios de Buenos Aires.
A crítica social presente do primeiro ao último verso de “Cambalache” se deve à ambição desmedida das pessoas pelo dinheiro. Por causa de uns trocados e pelos bens materiais, homens e mulheres ficam cegos pela ambição e passam por cima da moral e da ética. Qualquer coisa é aceitável em nome da grana e dos cifrões. Como consequência, o mundo se torna um lugar bagunçado, tóxico e injusto. Segundo Discepolín, sempre existiram ladrões, falsários e golpistas. Porém, o século XX é pródigo em promover os vigaristas, os salafrários e os trambiqueiros – “Pero que el siglo veinte/Es un despliegue/De maldad insolente/Ya no hay quien lo niegue”. Nesse contexto, tanto faz o indivíduo ser honesto ou ladrão, cavalheiro ou abusado, trabalhador ou vagabundo, religioso ou pagão, professor ou ignorante, honrado ou desonrado e tolo ou esperto. Se você tiver muita plata do bolso, tudo se acerta e a lei estará ao seu favor. Simples assim.

Engraçado que o compositor de “Cambalache” falava da realidade dos anos 1930, mas parece que estava descrevendo o cotidiano da década de 2020. No mundo contemporâneo, somos governados por pilantras e estamos rodeados de aproveitadores. O atual presidente argentino (aquele mesmo que garante falar com o cachorro morto!) acabou de se envolver em um escândalo financeiro. Ele divulgou em suas redes sociais um bando de golpistas norte-americanos de criptomoedas. Dezenas de milhares de pessoas perderam em poucas horas centenas de milhões de dólares com o esquema. Em compensação, a irmã do presidente, que chefia o gabinete do Executivo Federal, levou uma gorda comissão dos fraudadores pelo post enviado à nação.
Antes que alguém me acuse de ser partidário dessa ou daquela corrente política – para mim, todas reúnem sem-vergonhas –, é bom dizer que o ex-presidente da Argentina (aquele que não concorreu à reeleição porque sua impopularidade cresceu tanto que chegou à Lua) também está em volto em graves problemas com a Justiça. E não estou falando apenas dos casos de corrupção que surgem semanalmente nas páginas dos jornais e nos boletins da televisão. Parece que, durante seu mandato, ele curtia passar o dia fazendo políticas populistas que agravaram o déficit público e tornaram a inflação galopante. E à noite, adorava xingar e espancar a esposa no leito matrimonial, sem preocupação com questões como violência doméstica, direitos humanos, machismo, sexismo e feminicídio.
No meu Brasil, as coisas não são muito diferentes. As cadeiras de comando do Executivos e do Legislativos federal, estadual e municipal são trocadas por indivíduos que entram e saem dos presídios com a maior naturalidade. Em tempos de golpes digitais, bets, Jogo do Tigrinho, fake news, filtros nas imagens das redes sociais e mudança de entendimento da Justiça dependendo dos ventos políticos, é difícil saber o que é verdade e o que é mentira. “Vivimos revolcaos/En un merengue/Y en el mismo lodo/Todos manoseaos/Hoy resulta que es lo mismo/Ser derecho que traidor/Ignorante, sabio o chorro/Pretencioso o estafador”.
Ao ser atemporal, “Cambalache” tem um quê de música profética. Porque a sensação é de que ela está sempre falando do tempo presente e da nossa região. Olhamos a realidade a nossa volta e o mundo contemporâneo e pensamos assustados: “esses versos foram escritos para o que estamos vivenciando aqui e agora”. É ou não é esse o sentimento, hein?! A parte triste não é saber que a sociedade não mudou nada nos últimos 100 anos. E sim imaginar que daqui a um século, ela estará com as mesmas dificuldades. Mudam-se as rotinas, as tecnologias, as pessoas e os cenários, mas não mudam os problemas.
O mundo confuso e caótico não está explícito apenas na temática de “Cambalache”. Ele aparece também na estrutura anárquica da música. Repare no caráter bagunçado da divisão dos versos (ora são quartetos, ora são quintetos e sextetos), na variação das métricas (não há padrão) e na lógica das rimas (na verdade, não há lógica nenhuma; sendo que em algumas partes, nem mesmo existe rima). Por mais que esses sejam elementos técnicos, o ouvinte recreativo nota intuitivamente o quão desordenado é o arranjo estrutural do Tango. E não falo isso como uma crítica negativa. Não! É divertidíssimo notar que a canção abraça o assunto abordado na letra e o leva para a estética e a forma.

Como encerramento deste post do Bonas Histórias, gostaria de apontar algo profundamente original de “Cambalache” e que pouca gente cita. Por mais brilhante que tenham sido todos os pontos que enumerei até aqui, acho que aquilo que faz essa música tão sublime é a escolha inusitada de seu protagonista. Porque a personagem principal dessa história é o século XX. É ou não é brilhante isso, senhoras e senhores?! Tente se lembrar de outra canção bem-sucedida que tenha como foco um determinado espaço temporal. Pense! Juro que não me recordei. Convenhamos que as figuras centrais das composições musicais são tradicionalmente pessoas, animais, objetos, veículos, fases da vida, lugares, sentimentos, fatos ou situações. Só mesmo um cara genial como Enrique Santos Discépolo poderia colocar o século em que viveu (e que ainda estava no comecinho) no papel de protagonista. ES-PE-TA-CU-LAR!!!
Por tudo isso, “Cambalache” é o meu segundo Tango preferido. O primeiro, por supuesto, é “Por Una Cabeza”. Para quem ficou curioso(a) em saber o restante do meu ranking tangueiro, completo a lista do top 10 do Ricardinho sem problema nenhum: 3º “Mi Buenos Aires Querido” (beijo, Gaby); 4º “El Día que Me Queiras”; 5º “Adiós Muchachos”; 6º “Infiltrado”; 7º “Yira, Yira”; 8º “Volver”; 9º “Caminito”; 10º “La Milonga de Buenos Aires”. Se você achou que me esqueci de “El Choclo”, “Mano a Mano”, “Lejana Tierra Mía” e “Milonga Sentimental”, informo que também gosto dessas faixas. Só não as coloco nas primeiras posições. Dos Tangos classudos que os argentinos adoram, confesso envergonhado que não acho muita graça em “La Cumparsita” nem em “Balada para un Loco”. Não ria de mim: juro que prefiro a versão genérica e brasileira dessa última, “Balada do Louco”, criação de Arnaldo Baptista e Rita Lee. Ela é excelente. Ainda assim, entendo a importância de “La Cumparsita” e “Balada para un Loco” para a música argentina, mas não os aprecio. Mas isso é um papo que fica para outro dia...
Tenho que me despedir agora porque minha caixa de e-mail e meu WhatsApp estão bombando. Em uma batida de olho rápida, vi que há mensagens sobre transferências indevidas em contas bancárias de instituições que não sou cliente, pacotes retidos nos Correios com compras que não efetuei, solicitações de doações em dinheiro para grupos religiosos desconhecidos, sugestões de investimentos em novas moedas digitais e propostas de encontros com mulheres lindíssimas e com a metade da minha idade que não sei de onde brotaram.
Enquanto respondo com a devida atenção a todos (para alguns precisarei enviar minhas senhas bancárias e digitais, enquanto para outros terei que comunicar as informações pessoais), diga-me algo bem mais importante: qual é o seu ranking pessoal dos melhores Tangos, hein? Consegue arriscar uma lista? Só não vale roubar, ludibriar, enganar ou mentir, poooooooor favoooooooor!