Lançada em 1972 pelos Mutantes, a canção que dá um tapa na cara do conservadorismo foi imortalizada mais tarde por Ney Matogrosso.
Em 2022, comemora-se o cinquentenário de “Balada do Louco”, uma das criações mais importantes da Música Popular Brasileira (MPB) e do Rock and Roll nacional. Composta por Arnaldo Baptista e Rita Lee, a canção icônica foi gravada pela primeira vez em 1972 pelos Mutantes e integrou o álbum “Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets”. Paradoxalmente, esse disco marcou o auge da banda paulistana e, ao mesmo tempo, o fim de sua formação original, que era integrada por Arnaldo Baptista (não confundir, pelo amor de Deus, com Amado Batista!!!), Rita Lee e Sérgio Dias.
O que faz de “Balada do Louco” uma obra-prima musical é a união da letra profundamente filosófica e polissêmica e a melodia extremamente ousada e com arranjos modernos que flertam com a psicodelia. Prova maior de sua qualidade é que a canção se mantém contemporânea mesmo cinquenta anos depois do lançamento. Não à toa, “Balada do Louco” é uma das minhas canções brasileiras favoritas. Por essas e outras, não podia deixar de comentá-la na coluna Músicas. Encare, portanto, o post de hoje como sendo a homenagem do Bonas Histórias à mais recente efeméride desse clássico da nossa música.
Para entendermos à fundo a composição, as características musicais e a repercussão dos versos e da melodia de “Balada do Louco”, precisamos antes discutir a trajetória coletiva dos Mutantes e os caminhos pessoais de seus integrantes. Criado em 1966, em São Paulo, os Mutantes se tornaram, ao lado dos Secos & Molhados, um dos mais revolucionários e originais grupos de rock do Brasil nas décadas de 1960 e 1970. A banda era constituída inicialmente por Arnaldo Baptista (a mente criativa dos Mutantes e um dos maiores compositores nacionais do século XX), Rita Lee (uma das vozes mais apuradas da música brasileira e dona de um carisma absurdo) e Sérgio Dias (por ter ficado mais conhecido como o irmão mais novo de Arnaldo, acabou ficando em segundo plano na história musical do nosso país, mesmo possuindo inegáveis qualidades como guitarrista – ele é uma espécie de Ringo Starr paulistano).
Nos primeiros álbuns, os Mutantes faziam mais o gênero da banda de rock romântica e ingênua e menos o do grupo irreverente, ousado, usuário de alucinógenos e adepto do amor livre, imagem que temos atualmente deles. Muito influenciado pelos primeiros discos dos Beatles (fase que chamo de “filhinhos de papai engomadinhos cantando canções comportadas para a família inteira”) e pela leveza temática da Jovem Guarda (que muita gente prefere classificar como um estilo com letras totalmente alienadas e fúteis), o trio musical que acabara de sair da adolescência agradou aos ouvidos mais conservadores (e, não por acaso, menos elaborados). Na virada dos anos 1960 para os anos 1970, Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias se aproximaram do Tropicalismo. Era o início da maturidade pessoal e artística do grupo. Como consequência à natural evolução musical do conjunto, houve uma migração estilística dos Mutantes para um novo tipo de rock que começava a ser praticado na Inglaterra e nos Estados Unidos naquela época.
“Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets”, o quinto LP da banda, representou a transição para o rock progressivo, que seria abraçado definitivamente em 1974, com o lançamento do disco “Tudo Foi Feito Pelo Sol”. “Balada do Louco”, o maior sucesso do álbum de 1972, possuía muitas características do rock progressivo (que acabara ficando mais evidente em outras faixas de “Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets”), mas tinha também alguns elementos mais comportados (o que balanceava um pouco as coisas no eixo inovação versus tradição).
Por exemplo, a canção começa com o inconfundível piano de Arnaldo Baptista e o afinado vocal de Sérgio Dias. Em outras palavras, temos aqui um início bem-comportado e quadradão. Não demora, contudo, para a execução dos versos ganhar a participação de Rita Lee e Arnaldo. Aí “Balada do Louco” torna-se quase que um coro, um grito catártico, uma manifestação grupal. Nesse instante, a melodia incorpora efeitos sonoros pouco usuais (como um relinchar!) e distorções acústicas (ao melhor estilo psicodélico). Já na parte final, temos a entrada das cítaras indianas, em um novo flerte às criações dos Beatles (que agora passavam por uma fase mais experimental, mística e com influências orientais). A partir daí, “Balada do Louco” manterá essa variação até o final: ora uma canção mais comportada (cantada por apenas um intérprete e ao som dos acordes clássicos do piano), ora uma música bastante eclética (gritada pelo grupo inteiro e com ruídos sonoros um tanto assustadores).
São inegáveis a força e a qualidade sonora de “Balada do Louco”. Mesmo assim, na minha opinião, a excelência da música está mais na letra inteligente e marcante do que nas inovações trazidas na melodia. Seus versos tratam de alguém que segue na contracorrente. Mesmo tendo um estilo de vida pouco usual, ao ponto de ser taxado pela sociedade como um maluco (“Dizem que sou louco/por pensar assim”), o eu-lírico afirma estar satisfeito e tranquilo com suas escolhas (“Se eu sou muito louco/por eu ser feliz”). Ao invés de cair no marasmo, na futilidade e na infelicidade da rotina pseudocorreta da maioria das pessoas (“Mas louco é quem me diz/E não é feliz/não é feliz”), ele busca o que o torna verdadeiramente pleno, por mais que tais atitudes e crenças possam parecer inusitadas ou esquisitas para os outros (“Eu juro que é melhor/Não ser o normal”).
E o que seria exatamente essa maluquice extasiante que é tão valorizada nos versos de “Balada do Louco”, hein? A graça filosófica da música está justamente na inexistência de uma resposta clara e objetiva. Há vários indicativos (”Se eles são bonitos/sou Alain Delon”; “Se eles são famosos/sou Napoleão”; “Se eles têm três carros/eu posso voar”; “Se eles rezam muito/eu já estou no céu”), mas nenhuma certeza definitiva. Assim, o ouvinte pode interpretar a letra da sua maneira.
Há quem entenda essas palavras como uma crítica à sociedade capitalista, ao consumismo ou mesmo à religião. Outros veem os versos de “Balada do Louco” como a escolha por um estilo de vida alternativo ou por uma profissão pouco mercadológica, convencional e rentável. Tem aqueles que acham o conteúdo dessa canção como sendo a apologia ao homossexualismo, ao bissexualismo e às relações abertas. Por esse ponto de vista específico, a música seria uma crítica contundente ao casamento tradicional. Mais recentemente, aumentou o número de pessoas que interpreta tais versos como sendo a fuga ao radicalismo político, à fama pela fama, à (oni)presença nas redes sociais, ao imperialismo da beleza e da juventude eternas e à artificialidade do dia a dia contemporâneo. Como falei, cada um vê a letra pelo prisma que lhe convém.
Curiosamente, muitos fãs dos Mutantes sempre colocaram a loucura citada em “Balada dos Loucos” como a opção pelo relacionamento aberto dos compositores. Afinal, Arnaldo Baptista e Rita Lee eram casados desde 1968. E no início dos anos 1970, influenciados pela cultura hippie, optaram pelo relacionamento aberto. A felicidade seria, então, estar com o cônjuge e ainda sim poder sair com outras pessoas numa boa? Essa linha de dedução é até plausível, mas não bate com os fatos reais da história do casal de cantores. O matrimônio de Arnaldo e Rita degringolou rapidamente depois do lançamento de “Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets”. Além da separação matrimonial, Rita Lee ainda foi expulsa dos Mutantes por Arnaldo Baptista, que não podia mais ver a ex-esposa por perto.
Ainda na tentativa de descobrir a verdadeira interpretação da música, há quem veja componentes político-ideológicos em “Balada do Louco”. Segundo essa concepção, os versos da canção conteriam críticas diretas à Ditadura Militar brasileira, que chegava naquele momento à fase de maior repressão (período conhecido como Anos de Chumbo). Novamente, essa versão não casa com a realidade nua e crua. Arnaldo Baptista nunca me pareceu um compositor com forte pegada política como Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, João Bosco e Aldir Blanc, por exemplo. E mesmo Rita Lee, então com 25 aninhos, não tinha a consciência social e a postura que mais tarde mostraria no período da Redemocratização do país.
Então, Santo Deus, o que tem efetivamente por trás dessa música?! Talvez a revelação dos detalhes reais possa decepcionar algumas pessoas (feministas de plantão, por gentileza, segurem-se nas cadeiras!). Conforme relatado pelo próprio Arnaldo Baptista em entrevistas, ele concebeu a canção uma semana depois de uma fatídica aula de karatê. Na atividade, o cantor lutou com uma mulher e perdeu. Ser golpeado por uma dama no tatame abalou o moral de Arnaldo, que voltou para a casa refletindo sobre o que tinha de errado com ele. Errado?! Não havia nada de errado em ser derrotado por uma lutadora. Cada indivíduo, concluiu, tem qualidades e competências distintas. E as dele, definitivamente, não estavam no karatê. E mesmo sendo um lutador limitado, ele era feliz e ponto final.
Ao conhecer os esboços da nova canção do então marido, Rita Lee se pôs a melhorar a letra. Foi ela quem deu aos versos uma pegada mais filosófica e poética (justamente o ponto alto da composição). Estava criada a obra-prima da dupla e o maior sucesso dos Mutantes. Enquanto “Balada do Louco” era saudado pelo público como uma música de altíssimo nível, o álbum “Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets” não apresentou grande êxito comercial. A maioria das músicas do disco não agradou aos ouvidos do público e das rádios, incomodados com a overdose de psicodelia e as doses excessivas de rock progressivo.
Em parte, é preciso salientar, o fracasso das vendas do LP também pode ser atribuído às brigas internas dos integrantes dos Mutantes. Um ano depois da dupla separação (artística e matrimonial) com Rita Lee, Arnaldo Baptista deixou definitivamente a banda que fundara. Dessa forma, Sérgio Dias passou a comandar o grupo com uma nova formação. Foi ele quem intensificou a mudança estilística do conjunto em direção ao rock progressivo.
Se os tempos áureos dos Mutantes ficaram definitivamente para trás com a saída de seus dois mais simbólicos componentes, as carreiras solo de Arnaldo Baptista e Rita Lee decolaram a partir dali. Em 1974, Arnaldo lançou “Loki?”, o primeiro de seus sete álbuns individuais. Esse disco é considerado um dos mais importantes e revolucionários da música nacional e do rock brasileiro. Quem sabe eu não comente na coluna Músicas os detalhes desse LP, né? Já Rita Lee se tornou a segunda cantora mais vendida da história do país com mais de 55 milhões de discos comercializados. No ranking geral dos músicos mais bem-sucedidos, ela aparece em quarto lugar (perde apenas para Roberto Carlos, Nelson Gonçalves e Angela Maria).
Se por um acaso você não se lembrar da versão original de “Balada do Louco”, não se martirize, por favor. A interpretação mais conhecida dessa canção não é a dos Mutantes. Em 1984, Ney Matogrosso, que saíra dez anos antes dos Secos & Molhados e desde então vem construindo uma próspera e longeva carreira solo, regravou o clássico de Arnaldo Baptista e Rita Lee. Diferentemente da versão inicial, Ney retirou as maluquices sonoras da melodia e deixou a canção “mais limpa”, apenas com os acordes do piano. Obviamente, a letra ficou intacta (e foi valorizada pelo vozeirão do cantor e por sua interpretação mais passional). O sucesso foi imediato. Em um piscar de olhos, grande parte do público se esqueceu da interpretação do trio paulistano e passou a priorizar a versão do músico sul-mato-grossense. Não à toa, esse é um dos maiores sucessos de Ney Matogrosso até hoje. Há, inclusive, quem ache que foi ele quem compôs “Balada do Louco”.
Confira, a seguir, a letra completa da música.
Balada do Louco (1972) – Arnaldo Baptista e Rita Lee
Dizem que sou louco
por pensar assim.
Se eu sou muito louco
por eu ser feliz.
Mas louco é quem me diz.
E não é feliz,
não é feliz.
Se eles são bonitos,
sou Alain Delon.
Se eles são famosos,
sou Napoleão.
Mas louco é quem me diz.
E não é feliz,
não é feliz.
Eu juro que é melhor
Não ser o normal.
Se eu posso pensar
que Deus sou eu.
Se eles têm três carros,
eu posso voar.
Se eles rezam muito,
eu já estou no céu.
Mas louco é quem me diz.
E não é feliz,
não é feliz.
Eu juro que é melhor
Não ser o normal.
Se eu posso pensar
que Deus sou eu.
Sim, sou muito louco,
não vou me curar.
Já não sou o único
que encontrou a paz.
Mas louco é quem me diz.
E não é feliz.
Eu sou feliz.
A seguir, trago as interpretações mais marcantes dessa canção. No primeiro vídeo, obviamente, está a versão original dos Mutantes, aquela produzida em 1972 para o álbum “Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets”. Repare nas maluquices sonoras que ela traz. Em seguida, temos cenas de Ney Matogrosso, em 1986, cantando no Programa Marília Gabi Gabriela da TV Bandeirantes. Vale a pena conferir as duas execuções.
“Balada do Louco” foi regravada por vários artistas brasileiros dos mais diferentes estilos ao longo dos anos. Tianastácia (em uma versão mais rock and roll), KLB (com um jeito pop adolescente) e Manuche (aqui é heavy metal!), por exemplo, deram novas tintas para esse clássico cinquentão. Qual a sua interpretação favorita, hein? Confesso que a minha preferida é ainda a do Ney Matogrosso. Ela é simplesmente perfeita.
E não se esqueça: “Mas louco é quem me diz/E não é feliz/Eu sou feliz”.