Publicada na Turquia em 2014, esta obra foi a última narrativa ficcional de Pamuk a ser traduzida para o português e lançada no Brasil.
No último final de semana, li “Uma Sensação Estranha” (Companhia das Letras), uma das mais recentes narrativas ficcionais de Orhan Pamuk. Publicada na Turquia em 2014, esta obra foi traduzida para o português e lançada no Brasil em 2017. Desde então, não tivemos mais nenhum novo trabalho do escritor turco em nossa língua. Vale a pena dizer que após “Uma Sensação Estranha”, seu nono romance, Pamuk publicou em seu país natal seis títulos: um romance, uma novela, um livro de memórias, uma coletânea de ensaios e crônicas e dois ensaios fotográficos. A maioria deles ainda não ganhou traduções para os principais idiomas. Para 2021, há a previsão do lançamento de mais um livro em turco. Ou seja, o autor mais importante da literatura turca da atualidade não parou de aumentar seu portfólio nos últimos anos. Ainda bem!
Uma vez entendido esse cenário, as questões que ficam são: a produção literária de Orhan Pamuk mudou ou não após a conquista do Nobel de Literatura de 2006?; e suas novas tramas ficcionais estão melhores ou piores do que os enredos construídos antes do recebimento da honraria máxima da literatura mundial? “Uma Sensação Estranha” é um livro emblemático que nos ajuda a responder simultaneamente a essas duas interrogações.
Para quem não gosta de suspense, já adianto as conclusões desse post do Bonas Histórias. Pamuk não mudou (quase) nada em seu estilo e não alterou as temáticas abordadas em seus romances nos últimos quinze anos. Porém, ao invés de cair na mesmice, ele conseguiu potencializar seus textos. Para mim, o escritor turco está melhor agora do que nunca. “Uma Sensação Estranha” é, na minha visão, seu melhor trabalho até aqui, uma obra-prima da literatura contemporânea. Esse livro chega a ser melhor até mesmo do que “A Vida Nova” (Editorial Presença) e “Meu Nome é Vermelho” (Companhia das Letras), os títulos mais celebrados do autor. Sim, isso é possível!
Escrito entre 2008 e 2014, “Uma Sensação Estranha” foi o primeiro trabalho ficcional de Orhan Pamuk produzido inteiramente após a conquista do Nobel. Se “Neve” (Companhia das Letras), o sétimo romance do autor, foi publicado em 2002, quatro anos antes da premiação, “O Museu da Inocência” (Companhia das Letras), a oitava narrativa longa do turco, foi lançado em 2008, mas já estava em desenvolvimento há alguns anos quando a Academia de Letras da Suécia anunciou o vencedor do prêmio de 2006. Por isso, “Uma Sensação Estranha” é uma obra que merece uma análise tão atenta por parte do Desafio Literário desse bimestre. Confesso que sempre fico curioso para saber se um artista consagrado irá mudar algo em sua proposta literária ou ficará preso eternamente ao estilo que o glorificou.
No caso de Pamuk, entendo que ele se sentiu fortalecido com o reconhecimento do público e da crítica. Na posição de um dos principais escritores internacionais de sua geração, ele reforçou seu estilo e conseguiu construir histórias ficcionais ainda mais ricas e impactantes. Não por acaso, “Uma Sensação Estranha” é o título mais volumoso do turco, com quase 600 páginas. E apesar do grande tamanho (trata-se de um tijolão!), esse livro possui uma narrativa ágil, um texto gostoso e personagens carismáticas. Para quem leu “O Romancista Ingênuo e o Sentimental” (Companhia das Letras), é como se Orhan Pamuk desse mais vasão ao lado ingênuo (romancista ingênuo é espontâneo e sensitivo, usa as técnicas intuitivamente e canaliza suas inspirações livremente) do que ao lado sentimental (romancista sentimental é mais reflexivo e artificial, preocupa-se com os métodos empregados e vive atento a como seus leitores irão receber suas obras). Essa é justamente a grande diferença dessa obra – temos aqui um escritor mais livre, leve e solto. O resultado é um romance saborosíssimo!
Típico romance de formação, “Uma Sensação Estranha” acompanha os dramas sentimentais, familiares, financeiros e profissionais de Mevlut Karatas, o protagonista da trama, da infância aos 12 anos até a idade de maturidade aos 55 anos. Após migrar de um pequeno povoado da Anatólia Central para Istambul ainda menino, o jovem Mevlut passa a auxiliar o pai, um vendedor ambulante de iogurte e de boza, pelas ruas da metrópole turca. Identificado com essa profissão, a personagem central da obra de Pamuk irá perambular por Istambul assistindo às transformações da cidade e às consequências dos eventos históricos nacionais e internacionais das quatro décadas seguintes.
Contudo, o que marcará realmente a trajetória do protagonista é uma confusão ocorrida em junho de 1982, quando ele tinha 25 anos. Após organizar a fuga da moça pela qual estava apaixonado, Mevlut Karatas nota que cometeu um erro crasso. Ele roubou a mulher errada da casa do sogro: ao invés da irmã mais jovem e bonita, ele raptou a irmã mais velha e feia. O equívoco nada sutil afetará para sempre sua vida dali para frente. Esse tropeço imperdoável do destino só foi possível porque a ação, que contou com o consentimento da jovem, ocorreu à noite, na total escuridão, o que impossibilitou que o herói do livro conseguisse ver o rosto da amada (que não era tão amada assim!). Além disso, a troca nos nomes das irmãs (Mevlut se correspondeu com a moça errada por quatro anos através de cartas apaixonadas) também contribuiu significativamente para a confusão.
“Uma Sensação Estranha” é, assim sendo, tanto um romance de formação quanto um romance histórico. Esse drama, ao melhor estilo dos melodramas turcos, possui um ar de documentário – se fosse um filme, essa obra seria uma mistura de ficção e documentário). Afinal, o livro apresenta, simultaneamente à narrativa de Mevlut, a história do crescimento da cidade de Istambul, a constituição da Turquia como uma República laica e os eternos conflitos entre a população mais moderna, europeia e secular e a população tradicional, asiática e islâmica do país. Quem está acompanhando o Desafio Literário de Orhan Pamuk já deve ter percebido: essas temáticas são muito parecidas às das tramas de “A Casa do Silêncio” (Companhia das Letras), “O Castelo Branco” (Companhia das Letras), “A Vida Nova”, “O Meu Nome é Vermelho” e “Neve”, os romances anteriores do autor.
A edição brasileira de “Uma Sensação Estranha” foi traduzida por Luciano Vieira Machado, sergipano com vários prêmios internacionais no currículo. Luciano foi o responsável também pela adaptação para o português de “Neve”, outro livro de Pamuk. Nos dois casos, ele utilizou a tradução indireta. Se em “Neve” o tradutor brasileiro recorreu à versão inglesa, em “Uma Sensação Estranha” ele usou as versões em inglês e em espanhol. Para quem fica incomodado com essa prática, é importante dizer que todas as obras ficcionais de Orhan Pamuk lançadas no Brasil em nosso idioma são frutos de traduções indiretas. Aí a culpa não é do tradutor (ele foi simplesmente contratado para esse serviço) e sim da editora (responsável por acertar o trabalho com alguém que não é fluente em turco).
O enredo de “Uma Sensação Estranha” se passa entre setembro de 1968 e outubro de 2012. A primeira cena do romance ocorre em junho de 1982. Esse dia é inesquecível para Mevlut Karatas, um rapaz pobre nascido em 1957, em Cennetpinar, um povoado da Anatólia Central, e que trabalha desde 1969 em Istambul com o pai, um vendedor ambulante de iogurte e de boza (um tipo de bebida alcóolica tradicional da Turquia que remonta a época do Império Otomano). Nessa data, Mevlut viaja de Istambul para Gümusdere, outra pequena vila anatoliana, na caminhonete do primo Süleyman Aktas. A dupla volta para a terra natal para raptar Rayiha Yenge. A moça, então com 16 ou 17 anos, é filha de Abdurrahman Yenge, mais conhecido pelo apelido de Pescoço-Torto. Abdurrahman é um viúvo pobre de Gümusdere e possui três filhas: Vediha, a mais velha (e mais inteligente), Rayiha, a do meio (e a mais feia), e Samiha, a caçula (de uma beleza estonteante).
Mevlut acredita ter conhecido Rayiha na festa de casamento de Korkut, seu primo de primeiro grau (e irmão mais velho de Süleyman), com Vediha (justamente a filha mais velha de Abdurrahman Pescoço-Torto). O matrimônio foi realizado há quatro anos em Istambul e reuniu obviamente os parentes dos noivos. Na festança de união dos pombinhos, Mevlut Karatas, então com 21 anos, trocou olhares apaixonados com a jovem irmã da noiva, na época com 12 ou 13 anos. Aquele flerte foi suficiente para conquistar o coração de Mevlut Karatas. Ao perguntar para o primo quem era aquela adolescente linda, ele ouviu de Süleyman Aktas que se tratava de Rayiha, uma das filhas de Abdurrahman Pescoço-Torto. A partir daquele momento, Mevlut Karatas passou a enviar rotineiramente cartas de amor para Rayiha. Para isso, ele contou com a ajuda do primo, Süleyman, e da irmã da menina, Vediha.
Depois de quatro anos de um namoro 100% epistolar, Süleyman deu uma notícia bombástica para Mevlut. Segundo os boatos que ouvira, o pai de Rayiha queria casá-la com um rapaz rico de Istambul. Desesperado e sem dinheiro para fazer uma contraproposta pela mão da amada, o vendedor de iogurte e de boza decidiu fugir escondido com Rayiha. Após obter o consentimento da jovem para a tão ousada ação, Mevlut Karatas viaja ao lado de Süleyman para a Anatólia Central. E naquela emblemática noite de junho de 1982, ele consegue tirar Rayiha da casa do pai e fugir para a estação de trem de Aksehir, onde partem para Istambul como um novo casal. Entretanto, como a operação de captura da moça aconteceu no meio da escuridão da noite, ele só viu o rosto dela quando chegou à estação de trem. E ali conferiu o grande equívoco. A moça que estava ao seu lado era Rayiha, a irmã feia de Vediha, e não a menina linda que ele tinha trocado olhares na festa (esta era Samiha, que provavelmente ainda estava dormindo na casa de Abdurrahman Pescoço-Torto).
Terminada essa cena, o livro dá um salto temporal. A história vai para março de 1994. Nesse momento da trama, Mevlut Karatas já está casado há mais de uma década com Rayiha. O matrimônio deles pode ser considerado feliz. O casal vive em uma casinha alugada em Tarlabasi, bairro proletário de Istambul, e tem duas filhas pequenas, Fatma e Fevziye. Apesar de ainda serem pobres, Mevlut e Rayiha Karatas conseguem levar uma rotina satisfatória de união e alegria familiar. Enquanto o marido vende boza preparada artesanalmente pelas ruas de Istambul à noite, a esposa faz serviços de costura para fora. Assim, eles vão levando a vida de um jeito honesto e digno.
Para Mevlut Karatas, o emprego de vendedor ambulante de boza é uma tradição otomana que ele não quer abandonar por menor que seja a demanda pela antiga bebida nos dias de hoje. Contra todos os prognósticos, ele insiste em percorrer as ruas da metrópole turca à procura de clientes. Porém, depois de 25 anos nessa profissão, Mevlut chega em casa e anuncia para a esposa que irá parar de vender boza para sempre. O que o fez mudar de opinião foi um assalto em que foi vítima. Pela primeira vez, uma dupla de criminosos o abordou e levou o dinheiro ganho naquela noite. Na visão do ambulante, o que mais o entristeceu foi constatar que os bandidos não respeitaram a icônica figura do vendedor de boza, uma instituição turca até então imune a esse tipo de agressão.
O que Mevlut Karatas irá fazer a partir dali?! E como ele e Rayiha conseguiram transformar o inusitado episódio do rapto da irmã errada em um matrimônio feliz, longevo e frutífero?! Para responder a essas duas questões que intrigam os leitores logo nas primeiras páginas de “Uma Sensação Estranha”, Orhan Pamuk construiu uma narrativa que caminha em duas direções: para o passado de Mevlut e Rayiha e para o futuro do casal. Assim, ficamos sabendo o que aconteceu antes de 1982 (os primeiros anos de Mevlut em Istambul após sua chegada de Cennetpinar), os episódios entre 1982 e 1994 (a primeira década de seu casamento com Rayiha) e a narrativa depois de 1994 (após a decisão de não mais vender boza pelas ruas de Istambul).
“Uma Sensação Estranha” tem 592 páginas. O livro está dividido em 7 partes, que por sua vez possuem ao todo 56 capítulos. As duas primeiras cenas relatadas aqui estão nas duas primeiras seções da obra: a parte 1 ocorre em junho de 1982 e narra o rapto de Rayiha; e a parte 2 acontece em março de 1994 e descreve o assalto ao vendedor de boza. Ambas as seções possuem um único capítulo cada uma. A parte 3 se passa entre setembro de 1968 e junho de 1982 e tem 19 capítulos. A parte 4 se desenrola entre junho de 1982 e março de 1994 e possui 18 capítulos. A parte 5, por sua vez, tem 16 capítulos e sua trama acontece entre março de 1994 e setembro de 2002. E, por fim, temos as duas últimas seções do romance: a parte 6 se dá em um único capítulo datado de abril de 2009 e a parte 7 tem também um capítulo só que se passa em outubro de 2012.
Devo ter levado mais ou menos 16 horas para percorrer todas as páginas de “Uma Sensação Estranha” no último final de semana. Comecei a leitura na sexta-feira após o almoço e só a encerrei no domingo à noitezinha. Não seria errado dizer que passei quase todos esses dias (principalmente o sábado e o domingo) com os olhos grudados nesse livro de Pamuk. Ainda bem que sua narrativa é ótima, capaz de prender a atenção do início ao fim da leitura. Se já tinha gostado muito de “A Vida Nova” e “Meu Nome é Vermelho”, preciso admitir que a partir de agora tenho uma nova obra favorita de Orhan Pamuk. E “Uma Sensação Estranha” foi quem passou a ocupar esse posto de maneira exclusiva desde o último domingo. Sem medo de exagerar, acho que esse foi o melhor título ficcional que li nesse ano.
O primeiro aspecto que chama nossa atenção nessa narrativa é o caráter duplo da trama. Temos aqui dois enredos que caminham simultaneamente: um particular e um coletivo. No campo particular, assistimos aos dramas pessoais de Mevlut Karatas, um pobre coitado que só se dá mal. E, curiosamente, ainda assim ele consegue ser mais feliz do que muita gente a sua volta. No campo coletivo, acompanhamos a trajetória dos principais familiares de Mevlut, o crescimento da cidade de Istambul e os mais marcantes acontecimentos históricos da Turquia ao longo do século XX e no início do século XXI. Por causa dessa dupla linha narrativa, “Uma Sensação Estranha” me fez lembrar “Gabriela, Cravo e Canela” (Companhia das Letras), um dos romances mais famosos de Jorge Amado que usava esse recurso literário (no caso do brasileiro, seu livro narra as reviravoltas da cidade de Ilhéus).
As passagens históricas e as intrigas políticas da República da Turquia descritas nesse título não são parecidas às de “Neve”, o romance de Pamuk que analisamos no começo do mês no Bonas Histórias. Enquanto lá tínhamos uma alegoria histórico-política, aqui temos uma trama fortemente ambientada em acontecimentos reais. Por isso, disse no início desse post que essa obra ficcional tem uma pegada de documentário. Enquanto acompanhamos os dramas do protagonista de “Uma Sensação Estranha”, assistimos também as transformações urbanas de Istambul e a construção da Turquia como nação.
Dos episódios nacionais descritos no romance, posso citar: a Proclamação da República por Atatürk em 1923, o enforcamento do primeiro-ministro Adnan Menderes, os vários golpes militares (1960, 1971, 1980 e 1997), a guerra contra a Grécia pela Ilha de Chipre, o assassinato de Hüseyin Alkan, a disputa política entre os Lobos Cinzentos e os marxistas, o ataque às igrejas ortodoxas e às lojas de judeus, gregos e armênios em setembro de 1955, a perseguição aos curdos e o grande terremoto de 1999. Ainda é possível conferir vários acontecimentos de âmbito mundial: Primeira e Segunda Guerras Mundiais, a Guerra Fria, a Revolução Islâmica no Irã, a Guerra da Malvinas, o acidente nuclear em Chernobyl, os protestos na Praça da Paz Celestial, os ataques de 11 de setembro de 2001 etc. Ler “Uma Sensação Estranha” é caminhar pela história do século XX.
Como um bom romance pamukiano, esse livro tem como tema central a oposição entre a tradição e a modernidade. Enquanto Mevlut Karatas representa os valores históricos de seu país (islamismo, hábitos otomanos, valorização do passado e identidade asiática), seus adversários escancaram os valores contemporâneos (secularismo, hábitos europeus, valorização da tecnologia e do capitalismo e busca por uma aproximação à identidade ocidental). O leitor só consegue extrair mais dos textos de Orhan Pamuk quando compreende que ele escreve sempre sobre essa eterna dicotomia: passado e presente.
A narrativa de “Uma Sensação Estranha” possui alguns elementos com forte carga simbólica. Identifiquei pelo menos quatro: a boza, o gecekondu, a Escola Secundária Masculina de Atatürk e os cães. A boza remete ao símbolo de uma era (o Império Turco-otomano e as tradições islâmicas). A gecekondu é o retrato da pobreza da Turquia e de Istambul. Já a Escola Secundária Masculina de Atatürk é um pequeno microcosmo do país (a instituição de ensino pode ser vista como uma alegoria da República turca). E os cães simbolizam os medos, os inimigos e até mesmo a consciência de Mevlut.
Um dos aspectos mais legais de “Uma Sensação Estranha” é o seu começo. As primeiras páginas desse romance são fulminantes! Os dois capítulos/partes iniciais do livro são uma aula de como produzir logo de cara um romance inteligente, gostoso e instigante. Impossível não ficarmos curiosos para desvendar os segredos que o restante do conteúdo da obra nos reserva.
Temos aqui vários narradores simultâneos. Essa é uma prática, vale a pena destacar, que já tínhamos visto em outras narrativas ficcionais de Orhan Pamuk como “A Casa do Silêncio” (cinco narradores), “O Castelo Branco” (dois narradores) e “Meu Nome é Vermelho” (doze narradores). Em “Uma Sensação Estranha”, temos a potencialização desse recurso. Além de aumentar o número de vozes (são 16 narradores diferentes: narrador principal, Süleyman, Abdurrahman, Mustafa, Korkut, Esqueleto, Noivo, Mohini, Vediha, Rayiha, Samiha, Ferhat, Hadji Hamit Vural, Tia Safiye, Melahat e Tio Hasan), as várias falas aparecem juntas no texto (nos livros anteriores, havia a divisão de narrador por capítulo, algo inexistente aqui).
Curiosamente, o protagonista do romance, Mevlut Karatas, não tem sua narrativa em primeira pessoa. Quem relata o que acontece com ele é um narrador em terceira pessoa que fica muito próximo à personagem principal, com acesso ilimitado aos seus sentimentos, pensamentos e atos. O estilo desse narrador em terceira pessoa (os demais são todos narradores em primeira pessoa) é muito parecido aos narradores de J. M. Coetzee – chegamos até a pensar que se trata de uma narração em primeira pessoa de Mevlut, mas não é não. Não há a explicação no texto para quem seria esse narrador onisciente que vive colado a Mevlut.
No começo da leitura de “Uma Sensação Estranha”, confesso que achei esse recurso de múltiplos narradores um tanto exagerado. Porém, na metade do livro para frente eu já tinha comprado sua proposta e entendido a estratégia de Pamuk. Para dar vazão às várias histórias da trama e ao ponto de vista das incontáveis personagens, o autor turco só poderia utilizar diferentes vozes em seu texto. Do contrário, ele cometeria um erro grave de foco narrativo (afinal, o narrador em terceira pessoa era onisciente ao que acontecia com o protagonista, mas não ao que se passava com as demais figuras retratadas no romance).
O ambiente narrativo de “Uma Sensação Estranha” lembra muito os romances noir. Afinal, o clima preponderante desse livro de Pamuk reúne elementos como pobreza, violência, injustiça, golpe, avareza, briga, opressão, instabilidade política, intolerância religiosa, extermínio étnico e preconceito. Por falar em preconceito, temos aqui preconceitos de todas as ordens: sexistas, sexuais, étnicos, econômicos, raciais, religiosos, geográficos, ideológicos etc. A violência é também bem variada: violência doméstica, violência policial, violência psicológica etc. Não por acaso, a impressão de escuridão e de noite permeia toda a narrativa.
O que mais gostei em “Uma Sensação Estranha” foi do seu ritmo narrativo. Se os trabalhos ficcionais de Orhan Pamuk até então eram caracterizados pela velocidade lenta da trama (com muitas descrições de cenários, várias pequenas histórias dentro da trama principal e divagações filosóficas sem fim dos narradores), aqui temos um texto mais ágil e direto e uma grande quantidade de acontecimentos simultâneos (temos praticamente uma grande novidade por capítulo). Como consequência, a leitura fica mais fácil e saborosa. Esse é o tipo de livro em que ao piscarmos os olhos, alguma coisa interessante aconteceu no enredo e algumas dezenas de páginas foram consumidas.
Para encerrar essa análise, precisamos falar do final do romance. O desfecho desta obra é simplesmente espetacular, um dos mais contundentes que já li. A última frase do livro é matadora e leva o leitor a refletir sobre os paradoxos do coração. Com uma só sentença, Orhan Pamuk conseguiu explicar a sensação de estranhamento que seu protagonista vinha sentindo há anos. Nessa hora, lembrei-me do encerramento de “E o Vento Levou” (Nova Fronteira), clássico norte-americano de Margaret Mitchell. Se Mevlut Karatas é uma personagem bem diferente de Scarlett O’Hara (apesar de ambos serem belos, terem tido vidas sofridas, serem extremamente fortes e terem se casado com quem não amavam, ele nunca foi mimado, impulsivo, egoísta, orgulhoso nem prepotente como a protagonista de Mitchell), ele chegou ao final da vida na mesma conclusão que ela.
Se alguém me perguntar se “Uma Sensação Estranha” tem algum ponto falho, respondo com um contundente sim! Não existe obra perfeita, afinal de contas. A questão é que eu não consegui encontrar as falhas desse trabalho de Pamuk em apenas uma leitura. Aos meus olhos, essa narrativa parece perfeita. Talvez algum equívoco histórico possa ser encontrado por um conhecedor mais profundo do passado da Turquia. Talvez algum tropeço de ordem narrativa também possa ser identificado por um leitor mais atento (eu, por exemplo, só achei um: em um momento da trama, Mevlut instala telefone em sua residência; tempos depois, não há telefone ali). E talvez um leitor mais impaciente possa ficar incomodado com o ritmo mais lento de alguma parte da história (a parte 3 tem sim uma velocidade menor do que as demais). Porém, peço desculpas aos leitores do Bonas Histórias: fiquei tão apaixonado por esse romance que me sinto impossibilitado de criticá-lo negativamente. Foi mal aí!
Na semana que vem, encerrarei o Desafio Literário desse bimestre com a análise completa da literatura de Orhan Pamuk. Depois de comentarmos oito livros do principal escritor turco da atualidade, já estamos aptos para discorrer sobre seu estilo narrativo, suas obras, sua trajetória pessoal e sua carreira. O post com o panorama integral do portfólio artístico de Pamuk estará disponível no Bonas Histórias na próxima quinta-feira, dia 27. Não perca essa última etapa do Desafio Literário de Orhan Pamuk. Até lá.
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