Lançado em setembro de 2020, o novo romance da escritora curitibana discute aspectos delicados da maternidade enquanto tece fortes críticas sociais.
Na semana passada, li “Suíte Tóquio” (Todavia), o mais recente romance de Giovana Madalosso. Provando que é uma das mais originais e talentosas escritoras da literatura brasileira contemporânea, a jornalista curitibana radicada há anos na cidade de São Paulo apresenta uma trama criativa, contundente e inquietante sobre a maternidade e a desigualdade social no Brasil. Confesso que fiquei extremamente encantado com a qualidade absurda desta publicação. Não à toa, decidi analisá-la hoje na coluna Livros – Crítica Literária, a seção do Bonas Histórias dedicada justamente ao debate mais detalhado e técnico das produções ficcionais.
Como é bom ler títulos sagazes feitos por artistas que dominam os pormenores da língua, têm mensagens fortes para passar, navegam com perfeição na arte da contação das histórias e são grandes conhecedores das particularidades dos elementos da narrativa!!! “Suíte Tóquio” e o trabalho literário de Giovana Madalosso como um todo se enquadram perfeitamente em tal descritivo. Se esta não for a melhor obra ficcional que li neste ano (e acho que é!), ela está no top 3 sem sombra de dúvida.
Pelo menos das publicações que comentei no Bonas Histórias em 2023, posso garantir sem hesitação que “Suíte Tóquio” ocupa a posição mais alta do pódio. Quando comparado às leituras de 2022 (afinal, ainda estamos no comecinho da nova temporada da coluna Livros – Crítica Literária e pegar um período maior como referência é mais pertinente), o romance de Madalosso está no patamar de qualidade de “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” (Intrínseca), best-seller internacional de Cho Nam-Joo, “A Verdade e a Vertigem” (Emporium), melhor coletânea de contos de José Vieira, e “Refém da Memória” (publicação independente), thriller psicológico de Helio Martins Jr. Para quem não é leitor assíduo do blog, preciso avisar que esses foram os três melhores títulos ficcionais que li no ano passado.
Publicado em setembro de 2020, em plena pandemia da Covid-19, “Suíte Tóquio” é o terceiro livro ficcional de Giovana Madalosso. A estreia da autora na literatura comercial aconteceu em 2016 com a coletânea de contos “A Teta Racional” (Grua). As narrativas curtas que giravam em torno dos problemas, das neuroses e da complexidade da maternidade foram finalistas do Prêmio Clarice Lispector de 2017. Em 2018, Madalosso publicou seu primeiro romance, “Tudo Pode Ser Roubado” (Todavia). O thriller da garçonete trambiqueira foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2019 e marcou a chegada em grande estilo da escritora paranaense no universo das narrativas longas.
Segundo romance de Giovana Madalosso, mas sua terceira publicação ficcional, “Suíte Tóquio” foi finalista do Prêmio Jabuti de 2021 na categoria Romance Literário. A obra foi traduzida para o espanhol e para o inglês e já foi lançada em alguns mercados internacionais. É interessante notar que “Suíte Tóquio” dialoga intimamente com “A Teta Racional” e “Tudo Pode Ser Roubado”. O novo livro traz a temática de “A Teta Racional” (maternidade tóxica e complexidade em ser mãe) e a estrutura estética de “Tudo Pode Ser Roubado” (aventuras criminosas de anti-heroínas apresentadas de um jeito leve, engraçado e dinâmico, mas sem perder a força, a contundência crítica e a riqueza dramática).
Em outras palavras, “Suíte Tóquio” pode ser encarado como um título excelente se visto pela perspectiva individual (leitura isolada). E quando analisado dentro do portfólio literário de Giovana Madalosso (leitura integrada), ele ganha ainda mais colorido e beleza. Afinal, é possível enxergarmos uma autora jovem e talentosíssima já com um estilo narrativo bem definido e com temáticas bem específicas/particulares (elementos literários que normalmente os escritores levam um tempinho para adquirir, isso é, quando os adquirem).
Quem curte os textos de Madalosso, a boa notícia é que desde janeiro de 2023 ela é colunista da Folha de São Paulo. Leitor assíduo que sou do jornal paulistano (sim, eu ainda leio jornal TODOS OS DIAS!!!), passei a acompanhar suas crônicas engajadas, ácidas, críticas e, muitas vezes, cômicas. E digo sem medo de soar exagerado que a coluna de Giovana Madalosso (publicada uma segunda-feira sim e outra não na seção Cotidiano do impresso) está entre as minhas favoritas, ao lado dos textos dos também competentes Antonio Prata, de “Nu, de Botas” (Companhia das Letras), Fernanda Torres, de “Fim” (Companhia das Letras), Tati Bernardi, de “Depois a Louca Sou Eu” (Companhia das Letras), Ricardo Araújo Pereira, de “A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram Num Bar” (Tinta da China), Sérgio Rodrigues, de “O Drible” (Companhia das Letras), Itamar Vieira Junior, de “Torto Arado” (Todavia), Marcelo Duarte, da série “O Guia dos Curiosos” (Panda Books) e “Jogo Sujo” (Ática), e Ruy Castro, de “Estrela Solitária” (Companhia das Letras).
Sei que sou suspeito para falar, pois sou apaixonado pelas crônicas, ainda mais quando inseridas no meio do conteúdo jornalístico e quando produzidas por mãos tão competentes. De qualquer maneira, não dá para perder o que esse time de altíssimo quilate da literatura nacional produz seja nas páginas da Folha de São Paulo, seja nas publicações direcionadas às estantes das livrarias.
“Suíte Tóquio” foi produzido ao longo de dois anos e pouco. A escrita do livro começou mais ou menos na época em que o texto de “Tudo Pode Ser Roubado” foi enviado para a Editora Todavia, a casa editorial da romancista paranaense. Mãe de uma menina que tem atualmente dez anos, Giovana Madalosso utilizou os passeios que fazia rotineiramente com a filha pequena por Higienópolis, bairro onde mora há muitos anos, como mote da nova narrativa. Ao observar a multidão de babás (chamada no livro de exército branco) que frequentava a Praça Buenos Aires com a criançada a tiracolo (ou nos carrinhos de bebê), surgiu a ideia de produzir a trama ficcional. O enfoque da história era realidade por vezes sofrida e quase sempre angustiante e contraditória das profissionais contratadas para cuidar dos filhos de outras mulheres. Obviamente, Madalosso utilizou-se da própria experiência de ter recorrido a alguém de fora da família para cuidar da filha pequena.
O enredo de “Suíte Tóquio” começa em uma manhã de dia de semana em Higienópolis, bairro elitizado da cidade de São Paulo. Maria Júlia, mais conhecida por Maju, é a babá de Cora, menina de quatro anos e filha única de Fernanda e Cacá. Fernanda é produtora executiva de uma emissora de televisão. Cacá é um cara tranquilo que há muito tempo não possui emprego fixo nem remuneração gorda. O casal vive exclusivamente da renda da esposa e aguenta a monotonia da relação de longa data aparentemente sem grandes percalços.
Sem tempo para cuidar da filha após a última promoção, Fernanda refez o contrato de trabalho de Maju. Em troca de um salário maior e de algumas regalias, inclusive com direito a habitar um quarto com banheiro totalmente reformado no fundo do apartamento dos patrões (apelidado carinhosamente de suíte Tóquio), Maju precisou se mudar definitivamente para a casa de Cora. A nova dinâmica trouxe vários dissabores para a babá de 44 anos. Indignado por não ter mais a esposa no lar todas as noites e aos finais de semana, Lauro, o marido taxista de Maju, a abandonou. Sem o companheiro por perto, a mulher encarregada de cuidar de Cora viu desmoronar o sonho de ser mãe.
Por isso, naquela manhã aparentemente normal em Higienópolis, Maju resolve fazer algo diferente (e criminoso). Ao invés de levar a filha de Fernanda e Cacá para a escola e, na sequência, para a natação, ela resolve, em um surto psicótico, roubar a menina para si. Ainda pequena e sem entender direito o que está acontecendo, Cora adora a mudança repentina na rotina e a aventura que sua cuidadora está proporcionando. A dupla deixa o bairro onde mora e se dirige para a Rodoviária do Tietê. E de lá, Maju e Cora pegam um ônibus para Presidente Prudente. A ideia da babá é levar a menina até Pedro Juan Caballero. Uma vez no Paraguai, ela fará documentos novos para as duas e poderá exercer oficialmente o papel de mãe da garotinha. Pelo menos esse é o plano de Maju...
Ao retornar para o apartamento no final do dia, Fernanda, que também tem 44 anos, estranha que Cora e a babá ainda não chegaram. Aonde as duas estariam?! Cacá não sabe de nada e o casal começa a sondar familiares, amigos, vizinhos e funcionários do edifício em busca de notícias. Como já trabalha há três anos naquela residência, Maju é de total confiança e ninguém imagina que ela poderia atentar contra a integridade da família. Curiosamente, Fernanda e Cacá demoram quase que 24 horas para notar a ausência de Cora.
Em meio à gravíssima crise familiar, a mãe da menina parece muito mais preocupada com o andamento de seu relacionamento extraconjugal. Ela tem um caso amoroso com Yara, uma jovem diretora de TV especializada em produzir documentários sobre animais. Perdidamente apaixonada pela amante, Fernanda só pensa em se reencontrar com Yara e pular em seus braços (e entre suas pernas). Se até então a esposa de Cacá dizia que não tinha tempo para cuidar da filha, agora ela fará de tudo para não sair do lado da moça que lhe roubara o coração e que lhe proporcionara experiência sexuais inimagináveis. Entre as maluquices que a versão mais apaixonada de Fernanda irá forçá-la a fazer está pegar um avião até Rondônia e passar alguns dias em uma tribo isolada da Amazônia com Yara. A certeza de que Maju iria cuidar muito bem de Cora e que Cacá ficaria em casa sem reclamar dão tranquilidade à produtora executiva para se lançar em novas aventuras amorosas.
Assim, está criado o impasse. A babá, que é a mãe na prática de Cora e demonstra ser muitíssimo zelosa e carinhosa com a menina, rouba para si o direito à maternidade que lhe fora usurpada pela patroa. A executiva bem-sucedida, que é a mãe teórica de Cora, mas que jamais demonstrou qualquer interesse, vocação e afeto pela filha, se vê de repente amputada daquilo que deveria ser o elemento mais importante de sua vida. Para quem torcer nessa disputa pouco usual, hein?! A resposta não é nada fácil e levará o leitor a se questionar quem é a heroína e quem é a vilã nessa história sobre maternidade e, por que não, sobre anti-maternidade.
“Suíte Tóquio” possui 208 páginas. O livro de Giovana Madalosso está dividido em 35 capítulos. Trata-se, portanto, de um romance enxuto. Dá para lê-lo em um único dia ou mesmo em duas noites consecutivas. Foi o que fiz na semana passada. Precisei das noites de quarta e quinta, vésperas do feriado da Sexta-feira Santa. Basicamente, concluí a obra em aproximadamente quatro horas e meia. Li metade da publicação em uma noite e a outra metade na noite seguinte. No meu caso, foram basicamente duas sessões de leitura de duas horas e pouco cada uma.
O primeiro elemento da narrativa que nos chama a atenção em “Suíte Tóquio” é a escolha dos narradores. Para ser mais preciso nas minhas palavras, o mais correto teria sido falar “das narradoras”. São duas: Maju e Fernanda. Elas se revezam na contação da história durante o livro inteiro. Os capítulos ímpares são narrados pela babá criminosa que anseia pela maternidade perdida. Nos capítulos pares, o texto em primeira pessoa é da mãe ausente que vê a filha ser levada de casa pela funcionária que deveria zelar pela harmonia e pelo bem-estar do lar.
Essa alternância do narrador confere grande dinamismo à trama e maior emoção ao enredo. Curiosamente, quando uma parte do romance esfria, a outra esquenta. Ou seja, não faltam reviravoltas, tensão dramática e cenas marcantes nas páginas da nova publicação de Giovana Madalosso. Apesar de ser um expediente narrativo até comum na literatura contemporânea, a dupla narração caiu muito bem em “Suíte Tóquio” e potencializou o suspense.
Outra consequência direta do fato de assistirmos à história sendo relatada simultaneamente por duas personagens é a possibilidade de compreendermos a gritante desigualdade (social, psicológica, cultural, financeira, religiosa, familiar e ideológica) existente entre as duas protagonistas. Maju e Fernanda vivem em mundos completamente distintos, apesar da proximidade diária e de habitarem a mesma casa. Só conseguimos entender o abismo entre elas quando mergulhamos em seus relatos. Ainda vamos falar mais sobre as características antagônicas dessas mulheres neste post da coluna Livros – Crítica Literária. Por ora, gostaria de salientar o efeito colateral que a dupla de narradoras gera para o enredo e, principalmente, para as sucessivas comparações que fazemos entre as personagens principais do romance.
A segunda característica marcante de “Suíte Tóquio” é a mistura no corpo do texto da narração e do discurso, uma característica que não me lembro de ter visto nos outros livros de Giovanna Madalosso. Essa união siamesa das duas partes do texto ficcional (narrativa e diálogos) me fez lembrar muito as publicações de José Saramago, cânone da língua portuguesa que usava e abusava desse recurso em suas produções literárias. Quando o discurso vem integrado à estrutura textual da narração (não há qualquer sinalização para apontar quando começam ou quando terminam as falas das personagens), os leitores precisam de mais atenção para compreender o que está acontecendo em cena. Confesso que gosto quando o autor exige o máximo de nossa inteligência e de nossa concentração. E Madalosso é definitivamente uma escritora que não subestima a capacidade de seus leitores.
Outro aspecto positivo de “Suíte Tóquio” é o seu início eletrizante. Já nas primeiras linhas do romance somos levados ao olho do furacão do thriller dramático. Esqueça o preâmbulo, a introdução, a contextualização da história e a apresentação das personagens. Aqui o que vale é o mergulho no momento-chave que dispara as ações que fazem a roda da ficção girar. O livro é aberto exatamente com Maju revelando o crime que está cometendo. Está duvidando do que estou falando? Então veja o trecho inicial do romance:
“Estou raptando uma criança. Tento afastar esse pensamento, mas ele persiste enquanto descemos pelo elevador, cumprimentamos o Chico, saímos pelo portão. São coisas que fazemos todos os dias, descer, cumprimentar o Chico, sair pelo portão, andar pisando só nas pedras pretas ou nas brancas da calçada, mas hoje é diferente mesmo que eu não esteja fazendo nada diferente, porque tenho a sensação que o exército branco olha pra mim. Foi coisa da dona Fernanda, inventar esse nome, exército branco. E até que ela está certa mesmo, somos mesmo um exército, ainda mais a essa hora da manhã, quando todas vêm pra praça com seus uniformes brancos carregando bebês ou crianças, e então batem papo empurrando carrinhos e balanços com bebês ou crianças. Um mundo que até ontem era o meu mundo mas que agora parece me olhar com desconfiança. Será tudo loucura da minha cabeça? (...)”.
Forte esse começo, né? Estou raptando uma criança. Se essa frase não chama sua atenção e não atiça a sua curiosidade, não sei mais o que poderá mexer com suas emoções, leitor(a) insensível e desalmado(a) do Bonas Histórias.
O mais legal é perceber que a força do enredo não fica restrita ao começo impactante. À medida que os capítulos vão avançando, percebemos que o nível de intensidade dramática de “Suíte Tóquio” não cai, legitimando-o como um drama psicológico da melhor estirpe. A trama permanece em níveis elevadíssimos de tensão até o desfecho. Assistimos, ao mesmo tempo, à futilidade da classe alta e ao desespero existencialista da classe operária da cidade de São Paulo.
Os ricaços descontam suas frustrações sentimentais e profissionais fazendo compras desnecessárias e realizando ações pretensamente altruístas. Para aplacar o marasmo do casamento infeliz e desgastado pelo tempo, engatam relações extraconjugais. E, como ninguém é de ferro, terceirizam a criação dos filhos porque não querem perder tempo com o cuidado das crianças que botaram no mundo.
Por sua vez, os pobres são proibidos de terem uma vida normal, com família e filhos. As empregadas domésticas e as babás, por exemplo, não podem retornar para suas casas ao final do expediente nem conseguem exercer plenamente a maternidade. A vida dessas mulheres deve girar única e exclusivamente em torno da rotina, do lar e das vontades dos patrões. Onde já se viu querer ter marido, filhos e um cotidiano independente, hein? Isso não é algo que a classe operária, uma espécie de escravos do capitalismo contemporâneo, tem direito. Pelo menos, não do ponto de vista da elite egoísta da capital paulista.
Minhas frases anteriores não devem ser vistas como um discurso puramente ideológico. Só fiz a contextualização do cenário do romance de Giovana Madalosso com tintas fortes e com tal viés para poder entrar no âmago do conflito de “Suíte Tóquio”. E qual é o conflito do livro? O exercício da maternidade! Repare que ser mãe é algo totalmente distinto para Maju e Fernanda, as protagonistas. Enquanto a babá exerce na prática o papel maternal de Cora (afinal, cuida da menina desde que a pequena cliente tinha um ano de idade), ela não tem esse direito na teoria (aos olhos da Lei). Já Fernanda é a mãe efetiva da menina (é a mãe biológica), mas jamais exerceu esse papel na prática (ao ponto de demorar quase 24 horas para perceber o sumiço da filha, pois estava mais preocupada com o fora que levou da amante).
Maju sempre sonhou em ser mãe. Aos 44 anos, ela se vê frustrada desse direito natural pelo egoísmo das patroas e pela dinâmica social em que está sujeita. Como empregada doméstica e babá, ela nunca pôde ter uma vida normal, com marido e uma casa própria para frequentar diariamente. Presa no quartinho dos fundos do lar dos endinheirados e precisando estar disponível 24 horas por dia e sete dias da semana, Maju sequer podia transar ou mesmo engravidar. Essa questão não era exclusiva dela e sim de todas as mulheres que exerciam os mesmos empregos.
Vejamos o caso de Neide, a melhor amiga da babá de Cora e uma das mais simbólicas personagens do romance. Quando se tornou mãe (quebrando a lógica social em voga), Neide ficou apavorada. Seu medo estava na reação dos patrões. Uma vez que vendera sua alma à família que lhe pagava um salário-mínimo em troca de dedicação integral e incondicional, onde uma criança (da empregada) entraria na rotina de todos? Quem iria cuidar do(a) filho(a) de Neide? Onde viveria o bebê dela? Sem encontrar respostas para tais questionamentos, a moça acabou tomando decisões radicais e assustadoras aos olhos da sociedade pretensamente civilizada.
Já Fernanda nunca pareceu desejar ser mãe. O emprego de diretora de conteúdo na emissora de televisão não permitia que ela se dedicasse a mais nada fora do escritório (algo que mudaria só quando ela se apaixonou por Yara). Se pensarmos bem, a mulher de 44 anos também era uma espécie de escrava do emprego. Quando Cora nasceu, a alternativa escolhida foi a contratação de uma babá. Pronto, os problemas de Fernanda estavam resolvidos. O marido e a funcionária se revezariam nos cuidados da menina.
Entretanto, quando foi promovida para produtora executiva, o sentimento de culpa se potencializou. Por isso, ela aumentou o salário de Maju, ofertou alguns mimos e decorou o quartinho do fundo do apartamento em Higienópolis para a empregada se sentir bem (a tal suíte Tóquio, conforme foi apelidada pelo tamanho reduzido e pelo conforto proporcionado). A partir daí, adeus maternidade efetiva. Tchauzinho, papel de mãe legítima de Cora. Bye, bye, contato profundo e mais próximo com a menina.
Entendidas as dualidades de características e as contradições dos papéis exercidos por Maju e Fernanda, quem teria o direito de ficar com Cora e ser reconhecida como a mãe da garotinha, hein?! Saiba que a resposta não é nada fácil. Não temos claramente em “Suíte Tóquio” a figura clássica da heroína e a figura clássica da vilã. As duas protagonistas possuem elementos dos dois tipos de personagem (elas são figuras redondas). Como consequência, o leitor fica dividido. Em determinadas partes do romance, tendemos a torcer pela babá. Em outros momentos, a torcida é pela produtora executiva de TV.
Não é preciso dizer que temos em “Suíte Tóquio” uma forte crítica social. Quem acompanha mais atentamente a literatura de Giovana Madalosso irá perceber que essa é uma das marcas de sua produção ficcional. Os dois livros anteriores da escritora curitibana também tinham esse viés de cutucão, de dedo na ferida das mazelas do nosso país. Não por acaso, as tramas são sempre protagonizadas por pessoas simples e de profissões mais humildes que transitam por áreas mais nobres da cidade de São Paulo.
Lembro, por exemplo, da funcionária de uma agência de publicidade que não tinha tempo para amamentar a filha recém-nascida e precisava se esconder no banheiro do trabalho para extrair o leite do dia seguinte do bebê (do conto “A Teta Racional”, da coletânea homônima); e da garçonete de um restaurante da Avenida Paulista que visitava cladestinamente as mansões dos bairros nobres para furtá-los de madrugada (romance “Tudo Pode Ser Roubado”). Dessa vez (em “Suíte Tóquio), temos a denúncia do que babás e empregadas domésticas de Higienópolis passam nas mãos de patroas de mentes pouco esclarecidas e de corações gélidos.
É legal destacar que a construção das personagens do mais recente livro de Giovana Madalosso é excelente. E não são apenas as protagonistas que possuem grande riqueza literária: Maju é religiosa, hipocondríaca, paranoica com higiene, conservadora e saudosista com a vida levada em Mandaguaçu, sua cidade natal no Norte do Paraná; e Fernanda é workaholic, descobre-se bissexual, é viciada em Rivotril e não atua plenamente no papel de mãe. Note que a beleza e a profundidade das personagens de “Suíte Tóquio” se estendem para as figuras coadjuvantes: Neide é a libidinosa empregada doméstica que tem sérios problemas com a maternidade; Yara é a riponga itinerante e adepta do amor livre e das relações homossexuais; Lauro é o taxista apaixonado, sensível e tímido; Ednardo é o caminhoneiro viciado em drogas (para se manter acordado) que canta diariamente “Pavão Mysteriozo” como promessa para a falecida mãezinha; Cacá é o marido caseiro e pouquíssimo preocupado com o trabalho; e Cora é a menina birrenta que adora sua ovelhinha de pelúcia. Este romance tem cada figuraça!!!
Preciso também elogiar a pegada cômica da história. Tratar de sequestro infantil e de maternidade corrosiva poderia transformar “Suíte Tóquio” em uma trama noir e/ou em um romance profundamente sinistro. Contudo, a autora sabiamente temperou o texto com elementos engraçados e cenas tragicômicas. Dessa maneira, temos uma narrativa forte/impactante/contundente, mas ao mesmo tempo leve/espirituosa/gostosa. Gosto desse mix contraditório (e do tom de tragicomédia que o livro adquire ao longo dos capítulos).
É até difícil relatar todos os momentos hilários do livro: a mãe que só percebe o desaparecimento da filha no final do dia; a menina que é “sequestrada”, mas não aceita abandonar a pelúcia de estimação; a babá que vai ao motel com a criança que cuida (não é o que você está pensando!!!); a mãe que compra um carro só para ganhar a vacina de febre amarela que a concessionária está oferecendo de promoção aos clientes; a mulher que não tem tempo para nada, mas aceita viajar por dias com a amante para o rincão da Amazônia; a menina que quer assistir a desenho animado na TV do motel; a moça naturalista que gosta de cozinhar carne de cordeiro; o caminhoneiro que canta diariamente “Pavão Mysteriozo” (sim, com essa grafia mesmo) como promessa para a mãe falecida (aquela canção do refrão: “Pavão misterioso/Pássaro formoso/Tudo é misterioso/Nesse teu voar”); e a criança que é roubada pela babá e não percebe o crime. Não preciso falar que temos em “Suíte Tóquio” um humor bem peculiar, né?! Peculiar, mas extremamente eficiente.
Por fim, gostei bastante do projeto gráfico. A capa está espetacular. Ela dialoga perfeitamente com a proposta editorial do livro: uma narrativa pop, caótica, tragicômica, multifacetada, colorida e contraditória. Juro que não consigo imaginar uma a capa melhor do que essa que foi aprovada.
Caso você tenha estranhado o fato de eu não ter tecido nenhuma crítica negativa nesse post do Bonas Histórias, preciso justificar minha conduta atípica. Simplesmente, não encontrei nada que faria de diferente neste romance. Além disso, não achei uma peça sequer que não estivesse excelente no que se refere aos elementos da narrativa ficcional. Até o desfecho é surpreendente e sublime. Como não me deparei com nenhum ponto negativo em “Suíte Tóquio”, não pude citar as possibilidades de melhoria. Se você encontrou algo que deveria ter sido feito de diferente pela autora ou que tenha sido concebido de forma equivocado por ela, por favor, me avise. Juro que não achei nadinha que abonasse este livro.
Se esse romance não for perfeito, ele beira a perfeição. O que mais me encantou nessa leitura foi a originalidade de sua trama. É até comum encontrarmos obras que tratam das idiossincrasias da maternidade e da angústia gerada pelo sumiço/rapto de crianças (um dos crimes mais bárbaros que alguém pode sofrer é ver o filho desaparecer sem explicação).
No primeiro grupo de títulos ficcionais enfocando a maternidade tóxica e os dramas maternos, posso citar como referência quase todos os romances de Elena Ferrante, como “A Filha Perdida” (Intrínseca), “Dias de Abandono” (Biblioteca Azul) e “História da Menina Perdida” (Biblioteca Azul). E vários livros de Xinran, como “Mensagem de Uma Mãe Chinesa Desconhecida” (Companhia das Letras), “As Boas Mulheres da China” (Companhia de Bolso) e “Compre-me o Céu” (Companhia das Letras). Mais pontualmente, essa é a mesma temática de “Kim Jiyoug, Nascida em 1982”, sucesso da sul-coreana Cho Nam-Joo que analisamos recentemente na coluna Livros – Crítica Literária.
No segundo grupo de obras literárias cujo enredo gira em torno do sumiço de crianças, temos um leque até mais amplo: “Resta Um” (Companhia das Letras), thriller espetacular de Isabela Noronha; “Bom Dia, Camaradas” (Companhia das Letras), novela premiada de Ondjak; “A Turma da Rua Quinze” (Ática), clássico infantojuvenil de Marçal Aquino; “Cidades de Papel” (Intrínseca), romance de John Green; “Terra Sonâmbula” (Companhia das Letras), obra-prima de Mia Couto; e “Um Rosto no Computador” (Ática), sucesso de Marcos Rey da coleção Vaga-Lume. Isso foi o que minha memória me respondeu de prontidão. Deve haver muito mais tramas nessa linha, principalmente para aqueles com um repertório literário mais amplo do que o meu.
Repare que mesmo abordando temáticas exploradas de maneira recorrente por vários outros títulos ficcionais e por muitos autores (me segurei para não chamar esses assuntos de batidos), encontramos em “Suíte Tóquio” uma narrativa totalmente nova e com elementos não utilizados pelos congêneres. Por isso, destaquei sua originalidade/criatividade. A inovação aqui está mais na maneira como o drama foi apresentado aos leitores (com humor e leveza - tragicomédia) e menos no enredo escolhido (dobradinha entre maternidade tóxica e rapto de criança). Às vezes é mais difícil trabalhar com astúcia um tema amplamente discutido (como Giovana Madalosso fez em “Suíte Tóquio) do que explorar com profundidade um conteúdo pouco habitual.
Não por acaso, “Suíte Tóquio” é o melhor livro que li neste ano (saí de cima do muro à medida que desenvolvia este post e posso decretar agora sua liderança sem medo de cometer injustiças). Acho até que a nova publicação de Giovana Madalosso é superior a “A Tela Racional” e “Tudo Pode Ser Roubado”, títulos também muito bons. De qualquer maneira, “Suíte Tóquio” consolida a autora curitibana como uma das figuras mais promissoras da literatura brasileira contemporânea. Madalosso é uma romancista espetacular. Fiquemos de olhos abertos na sequência da construção de seu portfólio literário. Algo me diz que sua obra-prima ainda está para chegar e que irá abalar os alicerces da ficção nacional. Aguardemos. Aguardemos...
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