Quem acompanha o Bonas Histórias regularmente deve ter percebido que de tempos em tempos analisamos alguns livros sobre o processo da Escrita Criativa. Esse tema me fascina há alguns anos. Desde que trabalhei com Teoria Literária em pesquisas acadêmicas e fiz a Pós-Graduação em Formação de Escritores, não deixo de procurar novas publicações a respeito do fazer literário. De cabeça, lembro de ter comentado no blog “Como Melhorar Um Texto Literário” (Gutenberg), da dupla de espanhóis Lola Sabarich e Felipe Dintel, “Manual do Futuro Redator” (Novatec), de Sérgio Calderaro, "A Oficina do Escritor Sobre Ler, Escrever e Publicar" (Ateliê Editorial), de Nelson de Oliveira, e “Como Se Encontrar na Escrita” (Bicicleta Azul), de Ana Holanda. Pelos feedbacks que recebo dos nossos leitores, felizmente há cada vez mais pessoas interessadas nesse assunto.
Um dos títulos desta área que estava mais curioso para conhecer era “Sobre a Escrita – A Arte em Memórias” (Suma das Letras), a obra de não ficção de Stephen King sobre o processo da escrita literária. Nesse livro, o escritor norte-americano, um dos maiores best-sellers da atualidade, debate abertamente com os leitores os principais aspectos de sua profissão e analisa os elementos da narrativa de seus romances mais famosos. Ou seja, trata-se de um prato-cheio para quem é fã da criação literária e para quem deseja enveredar por essa atividade. Depois de muito tempo ouvindo elogios sobre essa obra, enfim, consegui lê-la.
Publicado originalmente no segundo semestre de 2000 nos Estados Unidos, “Sobre a Escrita” ganhou uma nova edição em inglês em 2010. Nela, Stephen King acrescenta alguns capítulos com sugestões de leituras e com relatos de algumas passagens recentes de sua vida. A versão brasileira é a tradução da segunda edição norte-americana. Acredito que este livro de King é leitura obrigatória para quem deseja começar ou avançar na carreira de escritor (amador ou profissional). O best-seller norte-americano que já vendeu mais de 350 milhões de exemplares em 46 anos de carreira fala de maneira didática e extremamente franca sobre os principais temas que um autor precisa saber para se lançar na produção literária.
Curiosamente, este livro quase não foi finalizado. “Sobre a Escrita” começou a ser elaborado entre novembro e dezembro de 1997. E em junho de 1999, dezoito meses depois de iniciado, ele ainda estava inacabado. Tal fato é uma exceção na carreira de Stephen King. Escritor prolífico, ele é conhecido pela rapidez com que começa e finaliza suas obras. Contudo, “Sobre a Escrita” ficou inexplicavelmente parado na gaveta de sua escrivaninha. O problema é que em junho de 1999, King sofreu um sério acidente. Ele foi atropelado por um furgão nas redondezas de sua casa no Maine, quando fazia uma caminhada na beira da estrada. Levado ao hospital às pressas, o escritor ficou entre a vida e a morte. Depois de uma série de cirurgias e de intermináveis sessões de fisioterapia que duraram meses, Stephen retomou, enfim, seu ofício. E a primeira coisa que ele fez quando se sentou novamente em sua mesa de trabalho foi finalizar seu livro sobre a produção literária. Aí o projeto avançou rapidamente. Em questão de semanas, o título estava pronto e publicado.
“Sobre a Escrita” possui 256 páginas. Li este livro no último domingo. Comecei a leitura de manhã e no começo da noite já a tinha concluído. Devo ter levado entre seis e sete horas para percorrer todos os seus capítulos. A obra está basicamente dividida em quatro partes, apesar de não ter formalmente essa estrutura.
Na primeira parte, temos um conjunto de prefácios (são três ao todo). Nesse começo, o autor explica o que o motivou a escrever uma publicação sobre o processo de produção literária. Stephen King também fala um pouco de sua vida atual de romancista de sucesso e de integrante de uma banda de Rock formada apenas por escritores.
“Currículo” é a segunda parte do livro. Nela, Stephen King faz uma retrospectiva de sua vida. Ele fala como se apaixonou pela literatura e como começou a escrever na infância. Também aborda como fez a migração de contista obscuro para romancista best-seller. Para quem é fã do autor e já conhece boa parte de sua trajetória pessoal e profissional (como é o meu caso), não temos aqui nenhuma novidade. Essa parte serve mais para contextualizar o leitor sobre quem é Stephen King e como ele chegou ao status de um dos maiores escritores contemporâneos da literatura norte-americana.
A terceira parte da obra é a principal. Aqui temos o debate efetivamente sobre o processo da produção literária. Na primeira seção desta parte (sim, ela está fragmentada em duas), chamada de “Caixa de Ferramentas”, Stephen King fala dos aspectos gerais da literatura. Para ele, um escritor, assim como um bom mecânico, deve andar sempre com sua caixa de ferramentas à mão. Nas primeiras bandejas dessa maleta, temos os vocábulos, a gramática, o estilo literário e a estrutura do texto. Na segunda seção, que tem o nome de “Sobre a Escrita”, King fala de aspectos práticos do ofício de escritor. Nesse ponto, ele aborda de tudo um pouco: quando escrever, onde escrever, sobre o que escrever, por que escrever, como melhorar a escrita etc. Os temas debatidos vão desde a validade de se procurar um agente literário até o uso de substâncias tóxicas na busca pela criatividade. Ou seja, temos uma análise completa e profunda do ofício de um escritor.
A quarta e última parte desta publicação refere-se às conclusões e aos anexos. Intitulada de “Sobre A Vida: Um Postscriptum”, Stephen King mostra sua lista de leituras recentes, apresenta um exemplo prático de revisão de um livro seu e relata o drama vivido após o grave acidente de 1999, que quase o vitimou fatalmente.
De maneira geral, “Sobre a Escrita” é uma excelente obra informativa. Para os jovens escritores que já iniciaram ou que ainda pretendem se aventurar nessa profissão, o livro fornece um belo guia do que fazer e do que não fazer. O ponto que mais gostei deste título é o tom de conversa de Stephen King com o leitor. O texto de “Sobre a Escrita” parece um bate-papo entre amigos em uma sala de casa (ou seria na cozinha?). De um lado do diálogo (autor), temos um profissional experiente e gabaritado com a vontade de transmitir tudo o que sabe. Do outro (leitor), temos um novato ávido por descobrir os segredos e os atalhos do ofício almejado. Uma obra com essa pegada não tinha como ficar ruim.
O mais interessante na conversa de King com o leitor é a forma como o escritor apresenta seu texto. Temos um autor muito franco e direto em sua abordagem. Ele não faz rodeios e não tem quaisquer melindres para falar o que realmente pensa e acredita. Em muitos momentos (principalmente na parte em que assistimos ao relato de King sobre seus abusos com álcool e cocaína), presenciamos uma overdose de realidade do tipo nua e crua. Nesse sentido, a apresentação da história pessoal e profissional do escritor também ajudou muito na criação da intimidade com o leitor. Sem essa retrospectiva histórico-artística, acredito que não chegaríamos ao nível de tanta proximidade com o autor.
Quanto aos conselhos de Stephen King para a produção literária (o ponto principal desta obra do ponto de vista do jovem escritor), temos muitas coisas interessantes. Há tanto as dicas mais práticas (tenha um agente literário, trabalhe com porta fechada, faça a primeira revisão do material sozinho e com um intervalo de descanso/maturação e evite frases na voz passiva) quanto as dicas mais teóricas (tenha um Leitor Ideal, não contamine seu texto com a pesquisa realizada, construa conscientemente o pano de fundo e equilibre descrição e narração). Algumas são mais simples (leia bastante, tenha um local fixo para trabalhar, evite os advérbios, crie um grupo preliminar de avaliadores de sua obra e construa diálogos verossímeis) e outras são mais elaboradas (não se preocupe tanto com a construção prévia do enredo, deixe as personagens conduzirem sua história e nenhum escritor tem um depósito de ideias).
No âmbito geral, esses conceitos são muito bons para quem deseja ser um escritor comercial. É inegável o talento de King para produzir obras best-sellers. Ele sabe disso e tem ciência dos mecanismos de seu sucesso. Por outro lado, algumas das dicas do autor podem não servir para todos os tipos de escritores. Afinal, nem todo mundo faz sucesso com textos pouco elaborados como Stephen King propõe com entusiasmo. Por exemplo, será mesmo necessário avisar o leitor que as personagens vão dizer algo quando se tem uma pontuação específica que indique isso no texto?! É viável todos os livros usarem apenas as palavras mais simples do dicionário? Deve-se mesmo evitar o uso de frases na voz passiva, independentemente da sintaxe? As oficinas literárias devem mesmo ser evitadas para quem deseja evoluir na produção ficcional? Acho radical apontar um ou outro lado para cada uma dessas questões. Por isso, não concordo com tudo o que King sugere. Por outro lado, há conselhos e sugestões que são inegavelmente bons. O leitor precisa ter discernimento para saber o que deve e o que não deve extrair dos capítulos desta obra.
Além das generalizações sobre a literatura simplória e sobre a narrativa pouco elaborada do ponto de vista estilístico, outra questão em que fiquei muito incomodado foi com a parte final do livro. Achei desnecessários os detalhes sobre o acidente sofrido pelo autor e, principalmente, a justificativa de sua surpreendente recuperação (ele atribuiu o seu salvamento à vontade de retornar à escrita). Será mesmo?! Para mim, a descrição da fatalidade e da recuperação do autor deu a impressão de ser sensacionalismo barato (típico de livro de autoajuda). E “Sobre a Escrita” não precisava disso. Outro elemento supérfluo é a lista final de obras literárias que King sugere para o leitor. Para quê isso? Para mim, trata-se de uma encheção de linguiça.
Apesar dos pequenos tropeços de “Sobre a Escrita”, é inegável que este livro tenha uma enxurrada de elementos positivos. Além dos já citados, posso apontar outros: o bom humor de King (há passagens bem engraçadas e o texto é na maior parte do tempo leve e descontraído), a preocupação do autor em ser didático em assuntos que poderiam enveredar por caminhos tortuosos (isso fica bem evidente quando ele entra nos aspectos gramaticais), a exemplificações de erros e acertos (interessantes revisões de textos reais do autor e boas exposições de trechos de trabalhos de outros autores) e a proposta de exercícios de escrita criativa (juro que fiquei com vontade de realizar alguns).
A leitura de “Sobre a Escrita” é uma aula de como produzir literatura comercial. E nada melhor do que aprender esses ensinamentos diretamente com um mestre da literatura ficcional contemporânea. Stephen King é tão bom como professor quanto é como romancista dos gêneros de terror e de suspense. Esta obra é realmente espetacular! Se soubesse que ela era tão boa assim, já teria lido muito antes.
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