Neste final de semana, li “Risíveis Amores” (Companhia de Bolso), a coletânea de contos de Milan Kundera. Nesta obra, o autor retrata de maneira magistral os relacionamentos amorosos tragicômicos na Tchecoslováquia comunista das décadas de 1950 e 1960. Este é o segundo livro do Desafio Literário de setembro. Na semana passada, analisamos “A Brincadeira” (Companhia de Bolso), o romance de estreia de Kundera. E ainda nesta semana, discutiremos, no Bonas Histórias, “A Insustentável Leveza do Ser” (Companhia das Letras), a publicação mais famosa do escritor tcheco.
“Risíveis Amores” é a única coleção de narrativas curtas do portfólio literário de Milan Kundera. Ele sempre foi mais conhecido do grande público pelas suas narrativas longas. Juntamente com os dez romances publicados, Kundera desenvolveu antologias poéticas (três coletâneas de poemas no comecinho da carreira), peça teatral (uma na década de 1980) e ensaios (quatro entre 1986 e 2009), além, obviamente, dos contos de “Risíveis Amores”.
Publicado em 1969, “Risíveis Amores” chegou às livrarias europeias em um momento delicado da vida de Milan Kundera. No ano anterior, o escritor tinha participado ativamente da “Primavera de Praga”, movimento político que exigia mais liberdades na Tchecoslováquia. Vale lembrar que o país do leste europeu era dominado desde o fim da Segunda Guerra Mundial pela União Soviética. Como represália ao levante, Moscou invadiu militarmente a Tchecoslováquia no segundo semestre de 1968 e passou a governá-la diretamente, sem qualquer representação local. Era o início do período mais sombrio desta nação eslava.
Assim, Milan Kundera foi definitivamente expulso do Partido Comunista tcheco (ele já havia sido banido uma vez na década de 1950, mas foi reincorporado depois) e teve suas obras censuradas (inclusive um filme recém-produzido que fora baseado no romance “A Brincadeira”, obra que também foi proibida de ser veiculada). Para os olhos dos estadistas soviéticos, o artista era um subversivo que se opunha aos ideais stalinistas. Exatamente por isso, “Risíveis Amores” foi publicado primeiramente na Europa Ocidental, uma prática que seria a partir de então comum na carreira do escritor tcheco.
“Risíveis Amores” possui sete contos: “O Pomo de Ouro do Eterno Desejo”, “Ninguém Vai Rir”, “O Jogo da Carona”, “O Simpósio”, “Que Os Velhos Mortos Cedam Lugar para os Novos Mortos”, “O Dr. Havel Dez Anos Depois” e “Eduardo e Deus”. O livro possui 264 páginas. É possível ler esta obra em um único dia. Foi o que fiz no último sábado. Os dois primeiros contos da obra são narrados em primeira pessoa, enquanto os demais estão na terceira pessoa. Cada história tem entre 25 e 40 páginas. Portanto, não são tramas curtas demais nem tão longas. Diria até que sua extensão é perfeita para nos encantarmos com suas tramas e nos conectarmos com suas personagens.
Em “O Pomo de Ouro do Eterno Desejo”, Martin é um homem de meia-idade totalmente apaixonado pela esposa, Georgina. Para ele, não há mulher mais bonita e interessante do que a sua. Contudo, Martin não largou um vício dos tempos de solteirice: dar em cima de todas as mulheres bonitas que cruzam com ele. “Ninguém Vai Rir” narra o drama de um professor de História da Arte. Ele recebe insistentes pedidos de um acadêmico limitado para dar um parecer crítico favorável a seu trabalho científico. Ciente do quão absurdo seria elogiar um texto tão sofrível, o protagonista do conto não quer fazer isso. Ao invés de dizer que não dará o parecer, o professor prefere fugir do insistente colega. Sem saída, ele acaba acusando o acadêmico de assediar sua esposa.
“O Jogo da Carona”, o terceiro conto da coletânea, é uma história sobre um casal de jovens namorados que ainda não praticou sexo. Apesar das insistências do parceiro, a namorada é muito tímida e recatada. Eles saem de férias juntos e viajam de carro pelo país. Essa é a chance de eles se conhecerem melhor. Logo no início da jornada, o casal para em um posto de gasolina para abastecer o veículo. Nesse momento, brincam que não se conhecem. Ele passa a desempenhar o papel do motorista solitário que flerta com uma desconhecida. E ela age como a moça bonita que pede carona sem medo das consequências dos seus atos. O jogo cênico no início os excita, mas também gera grande ciúmes na dupla. “O Simpósio” se passa em um hospital durante uma pausa no meio do expediente noturno. Cinco profissionais do estabelecimento, um chefe, um médico, uma médica, uma enfermeira e um estagiário, realizam uma divertida reunião regada com bebidas alcóolicas. Na sala da parte interna do centro hospitalar, os médicos passam a brincar com os sentimentos da enfermeira carente e do estagiário ingênuo. É o princípio de uma tragédia surpreendente.
Em “Que Os Velhos Mortos Cedam Lugar para os Novos Mortos”, dois amantes da época da juventude se reencontram depois de quinze anos. Agora, ela está viúva e ele separado. Ambos já entraram na meia-idade, mas ainda nutrem algo um pelo outro. Apesar da evidente atração física, os dois acham que a chegada da velhice irá decepcionar o parceiro. Por isso, eles refletem bastante sobre a possibilidade de praticarem sexo novamente. A sexta história de “Risíveis Amores” é “O Dr. Havel Dez Anos Depois”. Dr. Havel viaja sem a esposa para uma estação de águas no interior do país. Ele precisa fazer um tratamento na vesícula biliar. A saída de casa é um alívio para ele. Apesar de sua mulher ser linda e muito mais jovem, ela é extremamente ciumenta. O comportamento dela não é por acaso. O médico, agora envelhecido e doente, sempre se orgulhou da fama de colecionador de mulheres. As semanas em que ele passará sozinho no interior será a grande chance de dar em cima de novas presas. A idade avançada e seu corpo precário serão seus grandes inimigos nessa empreitada.
Por fim, temos “Eduardo e Deus”. Nessa trama, Eduardo, um professor de uma escola de ensino básico, é levado pela namorada, Alice, à Igreja. Ele não acredita em Deus, mas precisa passar uma imagem diferente para sua amada. Se Alice descobrir que Eduardo é ateu, na certa não irá querer fazer sexo com ele. Por isso, o rapaz passa a frequentar todos os domingos a Igreja ao lado dela. O problema é que na Tchecoslováquia comunista, ter uma religião é um crime grave. O Estado socialista prega o ateísmo. Quando Eduardo é visto visitando um templo religioso pela diretora da escola, seus problemas no emprego começam. Como ele irá explicar suas idas à Igreja ao comitê escolar que investiga o caso? O que é mais importante para ele: a possibilidade de fazer sexo com Alice e correr o risco de expulsão no emprego ou perder Alice para sempre e se manter na escola? O rapaz está em uma sinuca de bico.
A primeira coisa que chama a atenção em “Risíveis Amores” é a originalidade de suas tramas. Uma é melhor do que a outra! Não sei apontar qual das histórias é a minha favorita. Adorei todas! Incrível como Milan Kundera constrói seus contos e suas personagens. Esse é, sem dúvida nenhuma, um dos melhores trabalhos do escritor tcheco e uma das melhores coletâneas de contos que li em minha vida. Sinceramente, não entendi o porquê de Kundera não ter escrito mais narrativas curtas. Ele se mostrou, neste livro, ser um talentosíssimo contista. É uma pena ele não ter produzido mais exemplares desse gênero narrativo!
O segundo aspecto marcante de “Risíveis Amores” é o tom tragicômico dos seus enredos. Apesar dos dramas dos casais serem dignos de pena (eles quase sempre mantêm relacionamentos pobres de sentimentos, com pouca comunicação e tendo o sexo como simples muleta), acabamos também achando graça nos surpreendentes “acasos do destino”. A marca principal dessas histórias está nos desencontros afetivos de homens e mulheres extremamente melancólicos e solitários. Esses tropeções amorosos são provocados ora por brincadeiras que adquirem uma dimensão muito maior - nesse sentido, alguns contos lembram muito a “A Brincadeira” – ora são resultados dos desgastes naturais de relações pouco sólidas.
A união entre homens e mulheres é explicada muito mais pelos prazeres carnais provenientes das práticas sexuais do que pelas afinidades sentimentais, de crenças e de valores. O sexo para as personagens de Kundera está ligado à diversão, à clandestinidade, à banalidade, à agressão moral, à violência física, à fantasia, à traição, ao complexo de Don Juan, ao escapismo, ao pecado, ao poder e ao interesse comercial-ideológico. E o amor, onde entra nesse receituário narrativo, hein? O amor é um artigo inalcançável para as personagens cínicas, egoístas, hedonistas, melancólicas, solitárias, mulherengas e infiéis que inundam os enredos do autor tcheco.
As histórias de amor contadas em “Risíveis Amores” são na verdade um soco no fígado do leitor. Essas tramas passam longe, muitíssimo longe de afagar o coração do público romântico. É preciso coragem para adentrar no mundo de aridez sentimental de Kundera. Quem aprecia narrativas amargas, secas e desprovidas de sentimentalismo barato irá curtir esses contos. Já quem se identifica mais com as histórias água com açúcar de amor romântico sairá, na certa, decepcionado dessa experiência literária.
Uma curiosidade sobre esta obra é que seus contos são divididos em partes, algo inusual na literatura. Normalmente, os contistas apresentam as narrativas curtas de maneira integral, sem separação textual. Por isso, chama a atenção que cada história de “Risíveis Amores” possua capítulos (ou seriam minicapítulos?). Há tramas, como “O Simpósio”, que chegam até a ser divididas em partes/atos e cada parte/ato possui sua coleção de capítulos. A impressão que temos é de estarmos lendo pequenos romances ou novelas e não contos. Gostei disso.
Como não poderia ser diferente em se tratando de um livro de Milan Kundera, temos um forte debate filosófico no meio das tramas de “Risíveis Amores”. A pegada existencialista do debate proposto pelo autor aborda, além da questão da busca pelo amor pleno e dos absurdos do sexo (o tema principal das sete narrativas), o valor da mentira/verdade, a crueldade do envelhecimento, o sonho da beleza eterna, a força da juventude, o valor da amizade, a gratidão, a sinceridade, a loucura, as diferenças entre público e privado etc. Esses temas são discutidos muitas vezes nos próprios diálogos das personagens, o que confere grande força ao discurso.
Admito que fiquei encantado com “Risíveis Amores”. Este é um dos melhores livros que li neste ano. Se Milan Kundera só tivesse produzido esta obra, eu já o definiria como um grande autor. Ele é capaz de entrar na aridez humana e produzir um texto bonito, impactante e reflexivo. Incrível ver isso na prática.
O Desafio Literário prossegue nesta semana com a análise do livro mais famoso de Milan Kundera, “A Insustentável Leveza do Ser” (Companhia das Letras). Esse romance best-seller foi publicado em 1983 quando o autor tcheco já morava na França. Nessa obra, Kundera trata mais uma vez dos desencontros amorosos de indivíduos melancólicos, solitários e vazios. O post sobre “A Insustentável Leveza do Ser” estará disponível no Bonas Histórias no próximo sábado, dia 14. Não perca a continuação do Desafio Literário de setembro!
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