Lançada em 1960, essa obra faz uma alegoria político-social da Argentina na época da Ditadura Militar.
Nesse final de semana, li “Os Prêmios” (Civilização Brasileira), o romance de estreia de Julio Cortázar. Esse é o quarto livro do argentino que analisamos nesse mês no Desafio Literário. Depois de comentarmos, no Bonas Histórias, uma peça teatral – “Os Reis” (Civilização Brasileira) – e duas coletâneas de contos – “Bestiário” (Civilização Brasileira) e “Final do Jogo” (Civilização Brasileira) – do escritor que é um dos principais representantes do RealismoFantástico Latino-americano, nada melhor do que investigarmos também suas narrativas longas. Vale a pena dizer que o Desafio Literário de Julio Cortázar irá prosseguir no próximo mês com a análise de mais quatro obras (sendo duas coletâneas de contos e dois romances).
Apesar de ter se consagrado como um dos maiores contistas de todos os tempos, Cortázar produziu seis romances (dois foram lançados postumamente). Inclusive sua obra mais famosa, “O Jogo da Amarelinha” (Companhia das Letras), é justamente um título desse gênero. Por isso, é fundamental estudarmos a literatura de Julio Cortázar de forma mais ampla, não apenas pela perspectiva das narrativas curtas (contos) e médias (novelas).
Publicado em 1960, “Os Prêmios” faz uma sátira político-social da Argentina durante o período da Ditadura Militar. De maneira engenhosa e muito divertida, Cortázar construiu uma alegoria surrealista de seu país. Misturando conceitos existencialistas com um thriller dramático, esse livro expõe as agruras de um grupo de viajantes aprisionado em um navio de cruzeiro. Em meio aos debates sobre a privação das liberdades individuais, a disseminação de notícias falsas, a insensibilidade dos poderosos e a necessidade da reação armada, assistimos a um enredo eletrizante e de certa forma original.
Das obras que li do Realismo Mágico, “Os Prêmios” é sem dúvida nenhuma o título com maior quantidade de críticas sociais e políticas. Por vários aspectos, é possível compará-lo a, por exemplo, “1984” (Companhia das Letras) e “A Revolução dos Bichos” (Companhia das Letras), clássicos distópicos de George Orwell. Nunca o universo maravilhoso caminhou tão grudado aos dilemas verídicos e contemporâneos dos leitores como em “Os Prêmios”. Assim, essa obra faz jus ao nome de Realismo Fantástico – metade realidade, metade fantasia. Dos trabalhos autorais de Julio Cortázar, esse romance está ao lado de “O Livro de Manuel” (Nova Fronteira) como os textos mais críticos e engajados do argentino. A diferença é que em “Os Prêmios temos uma narrativa mais sutil e alegórica e em “O Livro de Manuel” temos uma abordagem mais explícita e direta dos problemas da falta de democracia na Argentina na segunda metade do século XX (e na América do Sul como um todo).
Por viver na França desde 1951, Julio Cortázar podia esculhambar o governo argentino e a postura passiva de grande parte de seus conterrâneos sem maiores preocupações, algo que seria complicadíssimo se ele ainda morasse em Buenos Aires. Mesmo assim, o escritor precisou contemporizar a acidez de suas palavras. Afinal, se fosse muito enfático no componente crítico de seu texto, corria o risco de não ser publicado em seu país (algo comum em se tratando de ditaduras e de regimes na qual a censura artística era a regra). Sabendo disso, ele optou por não escancarar completamente as críticas sociais e políticas desse romance. Na nota do autor que acompanha “Os Prêmios”, Cortázar disse:
“Também gostaria de dizer-lhe, talvez me sangrando em saúde, que não me moveram intenções alegóricas e muito menos éticas (na hora de produzir esse livro). Se, no final, alguma personagem chega a se entrever a si mesma, enquanto outra torna a cair molemente no que a ordem bem-estabelecida a obriga a ser, tais são os jogos dialéticos cotidianos, que qualquer pessoa pode contemplar em seu redor ou no espelho do banheiro, sem por isso pensar em conceder-lhes importância”.
Repare que Julio Cortázar foi ao mesmo tempo diplomático e inteligente ao não colocar o dedo diretamente na ferida (crítica aos militares argentinos), pelo menos não na hora de explicar seu trabalho. A chave para compreendermos sua intenção está no termo “talvez sangrando em saúde”. O que isso quer dizer?! Na minha visão, essa expressão pode ser substituída por: “sabendo do risco de sofrer retaliações (violência, censura, perseguição...) dos governantes do meu país”. Dessa maneira, ele afirma algo por mera formalidade, mas deixa claro ao leitor que não está sendo literal (fala uma coisa para dizer exatamente o contrário). Ou seja, Cortázar contradiz exatamente o que acabou de expressar (sim, esse é um romance político!!!). Prova disso é o complemento genial de sua justificativa: se alguma personagem tomar atitudes reacionárias, a culpa é exclusivamente dela (da figura ficcional) e não dele (do escritor). Incrível isso! Se valendo da mistura de realidade e literatura (uma das marcas de seu estilo narrativo), Julio Cortázar brinca com o público e com as autoridades do país.
Os brasileiros que não foram recentemente picados pelo vírus da insensatez também podem enxergar nessa leitura uma crítica contundente à elite e aos conservadores de sua nação, geralmente os primeiros a apoiar o extermínio da democracia e a imposição de sistemas governamentais violentos e opressores conduzidos pelos militares. Não é preciso dizer que, infelizmente, “Os Prêmios” é ainda um romance atual, principalmente em regiões do planeta em que os militares e a ignorância da elite econômica continuam preponderando.
Curiosamente, esse livro não está entre os mais famosos de Julio Cortázar. Até quando olhamos para seus romances, “O Jogo da Amarelinha” e “62 Modelo para Armar” (Civilização Brasileira) são mais populares do que “Os Prêmios”. Confesso que entendo o destaque dado pelo público e pela crítica literária às outras obras do autor (elas são realmente incríveis). Contudo, não concordo com o certo esquecimento de “Os Prêmios”. Achei essa narrativa de Cortázar espetacular! Ela alia um texto extremamente erudito (alta literatura) com uma trama com personagens e conflitos carismáticos (pegada de literatura de entretenimento). Isso sem contar o teor contemporâneo de seu enredo.
“Os Prêmios” começou a ser escrito justamente em uma viagem marítima que Julio Cortázar realizou pela América do Sul entre 1958 e 1959. Mesmo tendo fixado residência na Europa, ele não deixava de visitar regularmente nosso continente. Enquanto os demais passageiros se entretinham no cruzeiro pela Argentina, Uruguai e Brasil realizado no final da década de 1950, o escritor preferiu permanecer em sua cabine e rascunhar essa trama. Após voltar para a França, Cortázar finalizou a história transcorrida a maior parte do tempo em alto-mar.
Quando “Os Prêmios” foi lançado, Julio Cortázar já era um escritor experiente. Esse título é a sexta publicação do argentino. Ele sucedeu a “Presencia” (sem edição em português), antologia poética de 1938, “Os Reis”, peça teatral de 1949, “Bestiário”, coleção de contos de 1951, “Final do Jogo”, coletânea de narrativas curtas de 1956, e “As Armas Secretas” (Best Seller), conjunto de pequenas histórias de 1959. A grande novidade de “Os Prêmios” é ser um romance, o primeiro texto do autor nesse gênero literário. As outras narrativas longas de Cortázar são: “O Jogo da Amarelinha”, de 1963, “62 Modelo para Armar”, de 1968, “Livro de Manuel”, de 1973, “Divertimento” (Civilização Brasileira), escrito em 1949, mas só publicado em 1986, e “O Exame Final” (Civilização Brasileira), produzido em 1950 e lançado somente em 1986.
No Brasil, “Os Prêmios” teve basicamente três publicações de maior destaque. As duas primeiras foram lançadas em 1975 por dois clubes de leitura de grande sucesso na época: o Círculo do Livro e o Abril Cultural – Clássicos Modernos. E há quem pense que os clubes literários são uma novidade recente. Sabe de nada, inocente! Essas versões tiveram a tradução de Gloria Rodríguez, uma das principais tradutoras de espanhol de nosso país. A terceira publicação foi realizada pouco depois pela Civilização Brasileira, então uma editora independente (hoje, ela é um selo da Editora Record). As edições da Civilização Brasileira aproveitaram justamente a tradução feita por Rodríguez. Li uma das versões mais recentes desse livro – a sexta edição, de 2011, que é a penúltima. Se não me engano, há uma edição mais recente, de 2015.
O enredo de “Os Prêmios” começa no London, café-bar localizado na esquina da Rua Peru com a Avenida de Mayo, em Buenos Aires. Em meio aos consumidores habituais do estabelecimento, um grupo heterogêneo está sentado às mesas do London no final de tarde por ordens da Loteria Turística. Eles ganharam como prêmio uma viagem transatlântica que irá durar entre 3 e 4 meses e que será organizada pela empresa Magenta Star. O destino do cruzeiro não foi especificado, assim como o nome da embarcação foi mantido em segredo. De acordo com as informações preliminares da Loteria Turística, os premiados deveriam se reunir naquele café-bar no horário e no dia estabelecidos. Dali, eles seriam levados pela empresa para o navio que conduziria os sortudos para a grande viagem marítima.
Aparecem no London 20 pessoas para a viagem: Carlos López, professor de Espanhol, e Dr. Restelli, professor de História Argentina, ambos docentes do Colégio Nacional; Felipe Trejo, adolescente de 16 anos que estuda no Colégio Nacional, e sua família – a irmã Beba Trejo, o pai Sr. Trejo e a mãe Sra. Trejo; Lúcio e Nora, noivos que estão cogitando a ideia de subir ao altar (enquanto ele vai enrolando, ela é quem sonha com esse dia); Gabriel Medrano, um dentista solteirão que abandona a namorada em Buenos Aires e não avisa ninguém de sua partida para o alto-mar; Claudia Freire, uma mulher divorciada há dois anos, que leva para a viagem seu filho ainda criança, Jorge, e um amigo deles, Persio, editor na Casa Kraft, conceituada editora portenha; Dom Galo Porriño, um senhor galego que é paralítico (anda em cadeira de rodas), não tem família e enriqueceu ao abrir lojas em várias cidades argentinas, e seu chofer (que acompanha o patrão para onde ele for); Atilio Presutti, cujo apelido é Pelusa, é acompanhado por sua noiva, Nelly, pela mãe, Dona Rosita, e pela sogra, Dona Pepa; e os amigos Raúl Costa, arquiteto de pensamentos liberais, e Paula Lavalle, moça de família abastada que vive tendo crises de rebeldia.
Ainda receoso se irá ganhar efetivamente a premiação conferida pela Loteria Turística, o grupo de sortudos questiona-se o tempo inteiro se a empresa promotora da excursão não está aplicando um golpe. Afinal, tudo aquilo é muito estranho. O que eles mais temem é ser vítima de fraude, estar participando de um jogo, ser cobaia de uma experiência, ser alvo da gozação de alguém e/ou vivenciar uma espécie de teste.
Entretanto, no horário estipulado, o inspetor da Direção de Fomento chega ao café-bar acompanhado de um batalhão de policiais e expulsa do London os fregueses que não ganharam na Loteria. Apesar dos protestos de alguns e da brutalidade policial desmedida, o comandante da operação não tem dificuldade para conseguir o que deseja. A partir daí, os 20 premiados são levados de ônibus ao porto de Buenos Aires e embarcam no começo da noite no Malcolm, navio contratado pela Magenta Star para operar o cruzeiro. Assim que todos estão a bordo, a viagem pelos mares da América do Sul não demora para começar.
Uma vez iniciado o cruzeiro, os viajantes se dividem em dois grupos bem distintos. Há aqueles que estranham as condutas dos tripulantes e da empresa Magenta Star e exigem melhor atendimento. Afinal, as bizarrices parecem não terminar nunca: o capitão do navio não se apresenta aos turistas; não é servido jantar na primeira noite; os viajantes não podem circular livremente pelo navio (há várias portas trancadas); eles não podem acessar sequer a popa da embarcação; há um grupo enxuto de funcionários que não parece falar espanhol; e não é especificado para onde o Malcolm segue. Por outro lado, temos um segundo grupo que parece não se importar com as esquesitices da Magenta Star. Eles estão ali para se divertir e vão aproveitar o passeio, mesmo com a falta de liberdade e com as dificuldades impostas pelo péssimo atendimento.
As coisas a bordo acabam piorando na manhã do primeiro dia. Para surpresa de todos, o navio parece não ter saído do lugar durante toda a noite. Com a luz solar, os viajantes constatam que ainda estão no litoral de Quilmes, cidade da Grande Buenos Aires. O que estaria acontecendo? Os passageiros do Malcolm seriam vítimas de alguma grande e complexa armação?
O fato é que essa viagem reservará muitas surpresas e caminhará para ser uma experiência surrealista. Além das intrigas com os funcionários e os comandantes da Magenta Star, os premiados da Loteria ainda terão que encarar seus próprios conflitos – amores, traições, revelações bombásticas, inveja e desavenças dentro do próprio grupo (ou entre os grupos, já que temos duas alas antagônicas de passageiros).
“Os Prêmios” possui 432 páginas e está dividido em 5 partes: Prólogo (22 capítulos), “Primeiro Dia” (15 capítulos), “Segundo Dia” (10 capítulos), “Terceiro Dia” (5 capítulos) e Epílogo (2 capítulos). Precisei de cerca de 10 horas para concluir essa leitura durante o último final de semana. Para tal, usei as manhãs e as tardes dos dois dias. Praticamente li metade da obra (Epílogo e “Primeiro Dia”) no sábado e a outra metade (“Segundo Dia”, “Terceiro Dia” e Epílogo) no domingo.
O primeiro aspecto que chama nossa atenção em “Os Prêmios” é a diferença entre os capítulos numéricos e os capítulos em letras. Eu ainda não tinha falado sobre isso, mas temos nesse livro capítulos nomeados por números romanos (I, II, III, IV, V, VI etc.) e capítulos nomeados por letras (A, B, C, D, E, F etc.). E a pegada narrativa é totalmente diferente nos dois casos, apesar de ambas as partes serem apresentadas em conjunto (estão embaralhadas ao longo da obra) e seguirem um mesmo enredo (linearidade da trama).
Nas seções numéricas, temos o relato convencional de “Os Prêmios”. Nessa parte, o narrador está em terceira pessoa e é do tipo observador. Ele acompanha de perto (com acesso aos pensamentos, memórias e sentimentos) as duas dezenas de personagens do romance mais ou menos de maneira uniforme. Aqui o narrador vai se revezando em espiar o que cada um dos viajantes (principalmente, Carlos López, Lúcio, Nora, Gabriel Medrano, Cláudia Freire, Felipe Trejano, Atilio Presuti, Raúl Costa e Paula Lavalle) está fazendo seja no London, seja no Malcolm. No começo da leitura, como são muitas as figuras retratadas, confesso que fiquei um pouco perdido sobre quem era quem. Contudo, chega um momento (mais ou menos na metade do romance) em que conseguimos distinguir tranquilamente as várias personagens.
Por outro lado, nas seções em letras, temos uma espécie de fluxo de consciência de um dos viajantes – Persio. Curiosamente, Persio não é um dos protagonistas de “Os Prêmios” (pelo menos não nos capítulos numéricos). Por isso, é meio estranho quando acessamos, nessa outra parte do livro, sua mente. Aqui navegamos pelos seus sentimentos, pensamentos, dramas íntimos e inquietações. Como ele é um cara muito erudito, o texto dessa parte da obra não é nada fácil. Não se assuste se você entender pouca coisa (eufemismo para o termo “não entender nada”) do que ele está matutando. Lembre-se: normalmente um texto baseado em um fluxo de consciência não é uma narrativa das mais tranquilas (as obras de Virginia Woolf são prova cabal disso).
“Os Prêmios” também possui muitas referências históricas e culturais da Argentina. Ao longo das páginas do romance, acompanhamos citações a passagens da história do país, letras de tango, hábitos gastronômicos, cenários de Buenos Aires e eventos esportivos (futebol e boxe principalmente). Até mesmo o inconfundível “che” presente na oralidade dos portenhos aparece o tempo inteiro nos diálogos. A intertextualidade é complementada com muitas associações à literatura e ao cinema. Assim, “Os Prêmios” é um livro com forte carga cultural – prato cheio para quem gosta desse tipo de intertextualidade!
De certa maneira, as críticas políticas, sociais e ideológicas (alienação do povo, burocracia excessiva, opressão das massas, governos totalitários, violências/ameaças físicas e psicológicas, intolerância, preconceitos, injustiças, disseminação de fake news, censura, manipulação etc.) vêm acompanhadas de reflexões existencialistas de alta qualidade. Aí está justamente um dos maiores méritos de “Os Prêmios”. Ao lado de uma trama interessante e divertida (com óbvio apelo de entretenimento), também temos divagações filosóficas e metafísicas (que agradam aos leitores com paladares mais apurados). O resultado é uma narrativa com forte pegada surrealista.
Por essas e outras, “Os Prêmios” me lembrou várias produções artísticas por diferentes razões. Esse livro de Julio Cortázar tem um quê de “Anjo Exterminador” (El Ángel Exterminador: 1962), filme clássico de Luis Buñuel. Afinal, ambas as obras são calcadas em enredos surrealistas sobre grupos de burgueses aprisionados em lugares aparentemente banais (casa e navio de cruzeiro). Em algumas passagens de “Os Prêmios”, lembrei bastante, ainda no universo cinematográfico, de “Apertem os Cintos... o Piloto Sumiu” (Airplane!: 1980), comédia icônica dos anos 1980. A comparação faz sentido porque estamos falando de bandos de viajantes desesperados com os desdobramentos de suas jornadas (no céu e no mar).
Por uma perspectiva mais contemporânea, esse romance cortaziano dialoga também com o seriado “Lost” (2004-2010). O motivo é a associação metafísica das tramas. Por fim, não posso deixar de citar “A Peste” (Record), obra-prima de Albert Camus. Assim como o livro do argentino, a narrativa do franco-argelino tem forte pegada filosófica. Além disso, as duas obras abordam questões existencialistas a partir de uma epidemia que assola um lugar isolado (povoado na Argélia e embarcação no porto de Buenos Aires).
Repare que quase todas as produções citadas nos dois parágrafos anteriores são posteriores ao lançamento do livro de Cortázar. A exceção é “A Peste”, romance publicado em 1957 (um ano antes de “Os Prêmios” começar a ser rascunhado). Ou seja, o escritor argentino não poderia ter sido influenciado pela maioria dessas obras, mas pode muito bem tê-las influenciado. No caso específico de “A Peste”, é quase certo que Julio Cortázar leu o romance de Camus antes de produzir seu livro. A influência do trabalho existencialista do franco-argentino é evidente. Por uma outra perspectiva, podemos dizer que “Os Prêmios” é uma narrativa com características extremamente contemporâneas. Chega a ser assustador perceber que esse livro tem mais de seis décadas de vida. A impressão é que ele foi escrito nos últimos anos.
A chave para a leitura de “Os Prêmios” é encarar sua história e seus protagonistas pela perspectiva da alegoria. Se você procurar as representações simbólicas por trás dos acontecimentos narrados e por trás dos perfis das personagens retratadas, você acessará o subtexto do livro – a parte mais crítica e forte dessa narrativa de Julio Cortázar. Uma vez feito esse mergulho nas camadas mais profundas do romance, atingimos o ponto mais sensível do engajamento do texto. É legal notar que, dessa vez, o autor argentino usou o Realismo Fantástico como estopim para escancarar as mazelas sociais e políticas de sua nação. Impossível não apreciarmos uma construção ficcional com esse nível de sutileza e requinte.
Prova maior desse tom alegórico do livro está na formação dos grupos que se opõem ao longo da trama. Os embates podem ser resumidos como sendo de: civis versus militares; jovens versus velhos; conservadores versus liberais; ricos versus pobres; socialistas versus capitalistas; homens versus mulheres; adultos versus crianças/adolescentes; trabalhadores versus rentistas; viajantes versus tripulação; religiosos versus ateus; engajados versus alienados; casados versus solteiros; e esquerdistas versus direitistas. Lido nos dias de hoje (período de forte polarização), “Os Prêmios” parece uma obra com temáticas, conflitos e personagens contemporâneos.
Esse livro também possui algumas características típicas da literatura de Julio Cortázar. Temos aqui, por exemplo, a criação de neologismos (a brincadeira proposta com os termos lipídios, glucídios e protídios é espetacular!), o humor acentuado (do tipo sutil, inteligente e com certo tom de surrealismo) e a atmosfera de mistério crescente (os capítulos finais dessa narrativa se tornam quase que um romance de aventura, uma trama policial ou um enredo aterrorizante). A diferença estilística é que temos agora alguns elementos novos: cenas de grande violência (física, psíquica e sexual), a exposição de preconceitos sociais e, obviamente, as críticas políticas.
Por tudo isso, achei “Os Prêmios” o melhor trabalho realizado por Cortázar até então. Nessa obra, ele conseguiu dar um sentido às maluquices que propunha (seja embaralhar a realidade com a ficção, mergulhar no universo onírico de suas personagens ou construir cenas surrealistas que instigam a imaginação dos leitores). Acho que esse livro é um dos melhores que li em 2021. Sem dúvida nenhuma, “Os Prêmios” deverá figurar na lista das minhas melhores leituras do ano, que é apresentada na coluna Recomendações.
O Desafio Literário de Julio Cortázar continuará na próxima semana com a análise de mais um livro. A quinta obra que iremos investigar do argentino é “Histórias de Cronópios e de Famas” (Best Seller), coletânea de contos de 1962. Esse título é um dos mais famosos de Cortázar e um dos mais emblemáticos da Literatura Fantástica. Essa publicação também pode ser definida como sendo uma coleção de microcontos (afinal, suas narrativas são extremamente diminutas). A análise completa de “Histórias de Cronópios e de Famas” estará disponível no Bonas Histórias na próxima terça-feira, 2 de novembro. Boa leitura a todos e até o próximo post do Desafio Literário desse bimestre!
Gostou da seleção de autores e de obras do Desafio Literário? Que tal o Bonas Histórias? Seja o(a) primeiro(a) a deixar um comentário aqui. Para saber mais sobre as análises estilísticas do blog, clique em Desafio Literário. Para acessar as análises literárias individuais, clique na coluna Livros – Crítica Literária. E não deixe de nos acompanhar nas redes sociais – Facebook, Instagram, Twitter e LinkedIn.