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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

  • Foto do escritorRicardo Bonacorci

Livros: Os Perigos de Fumar na Cama - A primeira coletânea de contos de Mariana Enriquez

Publicada em 2009, esta obra marcou o início da fase literária mais produtiva e exitosa da escritora argentina, um dos nomes contemporâneos mais proeminentes da ficção de terror na América do Sul.

O livro Os Perigos de Fumar na Cama é a coletânea de contos de estreia de Mariana Enriquez, uma das principais escritoras contemporâneas da Argentina e do gênero de terror na América do Sul

Os leitores mais antigos do Bonas Histórias já sabem: me amarro em literatura de terror. Essa preferência se estende automaticamente para o cinema. Quanto mais horripilante e apavorante for uma história, mais gosto da experiência artística. Se não bateu aquele medinho que nos faz temer o apagar das luzes à noite e/ou o barulho estranho na hora de dormir, então a publicação (ou o longa-metragem) não foi tão boa assim. E como estou morando na capital da Argentina há quase um ano, não poderia deixar de ler e comentar na coluna Livros - Crítica Literária uma das principais escritoras locais, da América do Sul e da língua espanhola deste gênero. Estou me referindo, por supuesto, à talentosa e carismática Mariana Enriquez.


Imaginando que a maioria do público brasileiro não esteja muito familiarizado com a literatura argentina, sinto-me na obrigação de, logo de cara, apresentar esta autora para meus conterrâneos – algo que soaria estranhíssimo em terras portenhas, visto o frenesi causado pela participação de Enriquez na 48º Feria Internacional del Libro de Buenos Aires no mês passado. As cenas que presenciei no evento literário ocorrido na La Rural foram dignas de uma legítima pop star. Jogador de futebol, estrela da música, astro do cinema ou top model de renome internacional? Nada disso! Para um grupo especial de homo sapiens (e, parodiando a engenhosa Dilma, mulher sapiens), a profissão mais charmosa é a de escritor. Saravá!


Em linhas gerais, posso dizer que Mariana Enriquez é jornalista, subeditora do suplemento Radar do jornal Página/12, professora e, obviamente, autora de ficção e de não ficção. Na literatura ficcional, sua especialidade é, como adiantei, a narrativa de terror. Nesse campo, ela produz tanto histórias curtas (contos) quanto tramas longas (romances). Além disso, seu portfólio literário é recheado com biografias e relatos de viagem. Até o momento, Enriquez já publicou 17 livros.


Considerada uma das principais escritoras contemporâneas da Argentina e figura de destaque da intelectualidade e do jornalismo de Buenos Aires, Mariana Enriquez ganhou nos últimos dez anos o respeito da crítica literária e o carinho do público leitor. Com obras de sucesso dentro e fora do país, coleciona importantes condecorações artísticas tanto na Espanha quanto no Cone Sul do nosso continente. Chamada carinhosamente de Rainha do Terror pela mídia local, integra um grupo de autores conhecido por praticar a Nueva Narrativa Argentina. ​  

Jornalista e escritora argentina nascida em 1973, Mariana Enriquez é autora dos livros Os Perigos de Fumar na Cama, Nossa Parte de Noite, Este é o Mar e As Coisas que Perdemos no Fogo

Apesar de seus títulos mais famosos e premiados serem os mais recentes – os romances “Nossa Parte de Noite” (Intrínseca) de 2019 e “Este é o Mar” (Intrínseca) de 2017, a coletânea de contos “As Coisas que Perdemos no Fogo” (Intrínseca) de 2016, e a biografia de Silvina Ocampo “A Irmã Menor: Um Retrato de Silvina Ocampo” (Relicário) –, quis ler (e compartilhar com os leitores do Bonas Histórias) algo que remetia mais à fase inicial da carreira literária de Enriquez. E aí minha escolha recaiu automaticamente a “Os Perigos de Fumar na Cama” (Intrínseca), sua primeira coletânea de contos. Essa obra foi publicada originalmente em 2009 em espanhol (com o título de “Los Peligros de Fumar en La Cama”), mas só em julho do ano passado ganhou uma edição em português, com tradução de Elisa Menezes.


Para termos uma noção do quão atrasado o mercado editorial brasileiro estava, “Os Perigos de Fumar na Cama” foi traduzido primeiro para o inglês. Antes de chegar ao Brasil, portanto, foi lançado nos Estados Unidos e na Inglaterra em 2021. Em outras palavras, esta obra ganhou o mundo antes de atravessar a fronteira interna do Mercosul. Ai, ai, ai. No Reino Unido, a coletânea chegou a ser finalista do Internacional Booker Prize de 2021. Nos Estados Unidos, este título alcançou o feito de ser nomeado tanto para o Kirkus Prize de 2021 quanto para o Ray Bradbury Prize de 2022. Ou seja, além de atemporais, essas tramas de terror psicológico se provaram universais.


Acho essa publicação emblemática para a trajetória ficcional de Mariana Enriquez porque foi a partir dela que a jornalista portenha passou a se dedicar com mais afinco e regularidade à literatura. Não à toa, depois de 2009, ela lançou regularmente novos títulos, praticamente um por ano. Na última década e meia, para termos uma ordem de grandeza, foram 12 novidades entre romances, coletâneas de contos, biografias e crônicas de viagem. Seu trabalho mais recente é a coleção de histórias curtas “Un Lugar Soleado para Gente Sombría” (ainda sem versão em português), devidamente apresentado ao público argentino na Feira do Livro de Buenos Aires em maio de 2024.


Até “Os Perigos de Fumar na Cama”, é bom que se diga, os esforços profissionais de Enriquez estavam concentrados quase que exclusivamente na atuação jornalística. A publicação dos romances “Bajar Es Lo Peor” (sem publicação no Brasil) no longínquo ano de 1995 e “Cómo Desaparecer Completamente” (também sem edição em nosso país) de 2004 e dos ensaios “Mitología Celta” e “Mitología Egipcia” (ambos sem tradução para o português) de 2003 e 2007, respectivamente, foram exceções que só ratificaram esta tese. Por isso, enxergo a coletânea de narrativas curtas de estreia da autora argentina como um dos pilares da literatura que praticaria dali para frente.

Lançado originalmente em espanhol em 2009 e traduzido para o inglês em 2021 e para o português em 2023, Os Perigos de Fumar na Cama é a primeira coletânea de contos de terror da argentina Mariana Enriquez

Nascida em Buenos Aires há cinquenta anos, Mariana Enriquez passou a primeira infância em Lanús (para saber mais sobre essa cidade, recomendo a leitura do post da peça “Made In Lanús”, na coluna Teatro). Quando ainda era criança, sua família foi morar na Província de Corrientes e, em seguida, em La Plata. Foi na charmosa Universidad Nacional de La Plata que se formou em Jornalismo e Comunicação Social. Tão logo se graduou, se transferiu para a capital argentina para trabalhar nos principais veículos de comunicação do país. Desde 2009, vive no bairro de Parque Chacabuco, na região centro-sul de CABA – Ciudad Autónoma de Buenos Aires.


As doze histórias de “Os Perigos de Fumar na Cama” são: (1) “O Desenterro da Anjinha”; (2) “A Virgem da Pedreira”; (3) “O Carrinho”; (4) “O Poço”; (5) “Rambla Triste”; (6) “O Mirante”; (7) “Onde Está Você, Coração?”; (8) “Carne”; (9) “Nem Aniversários nem Batizados”; (10) “Garotos Perdidos”; (11) “Os Perigos de Fumar na Cama”; e (12) “Quando Falávamos com os Mortos”.


Em “O Desenterro da Anjinha”, a narrativa de abertura da coletânea de Enriquez, uma menina brinca no quintal de casa cavoucando a terra. Para espanto da família, a garotinha acha os ossos de uma criança que fora enterrada ali há muitos anos. A avó supersticiosa explica que são os restos mortais de Anjinha, uma de suas irmãs que morreu com alguns meses de vida. Surpreendentemente, esse episódio banal irá trazer repercussões perturbadoras para o futuro da narradora-protagonista do conto, a menina que desenterrou por acaso a tia-avó.


“A Virgem da Pedreira” mostra as intrigas sentimentais de um grupo de moças recém-saídas da adolescência. As amigas são apaixonadas por Diego, um rapaz mais velho e bonito que as acompanha frequentemente em vários passeios. Contudo, ele só está interessado em Silvia, a mais velha do grupo e única que possui rotina independente. Isso é motivo para causar enorme inveja nas demais integrantes da trupe. Assim, as viagens das amigas à Lagoa da Pedreira da Virgem, onde é possível se refrescar do calor escaldante do Verão de Buenos Aires, acabam ganhando um desfecho trágico.


“Carrinho” começa com o relato de uma tarde de domingo aparentemente normal em um bairro residencial de classe média baixa da capital argentina. Os moradores aproveitam a tranquilidade do dia de folga para lavar o carro, brincar na rua, se reunir no bar e colocar a conversa em dia. A calma só é quebrada com a chegada de um senhor desconhecido de aproximadamente 60 anos. O velho está bêbado, é pobre e empurra um carrinho cheio de bugigangas fétidas. Para desespero dos habitantes da localidade, o mendigo baixa as calças e defeca na calçada sem o menor constrangimento. A cena revolta principalmente Juancho, um vizinho que vive bêbado e que naquela altura do campeonato já está muito alto. Ele espanca o sujeito sem modos, expulsa-o do bairro e, ainda por cima, se apropria do seu carrinho de porcariada. O que ninguém poderia supor é que aquele fato iria disparar uma terrível maldição para quase todos os moradores do bairro.

Primeiro livro de contos de Mariana Enriquez, Os Perigos de Fumar na Cama (cujo título original é Los Peligros de Fumar en La Cama) apresenta 12 histórias de terror ambientadas essencialmente na Argentina

O quarto conto do livro é “O Poço”. Quando tinha seis anos, Josefina fez uma viagem de férias com a família para Corrientes, cidade que fica às margens do Rio Paraná. A lembrança mais marcante daquele período foi a visita ao lado da mãe, de uma tia e da irmã mais velha à casa de Dona Irene, uma mulher considerada bruxa. Foi a primeira vez que Josefina, até então uma garotinha corajosa e destemida, sentiu medo. A partir daí, ela se transformou em uma medrosa contumaz. Já adulta, a protagonista temia até mesmo passar pela porta de casa e ganhar a rua, o que transformou sua vida em um inferno.


Em “Rambla Triste”, acompanhamos a viagem de Sofia à Barcelona. A portenha está hospedada na casa de Julieta, uma amiga que vive há muitos anos na Espanha. A cidade da Catalunha é descrita como um lugar de enormes contradições. Para os turistas endinheirados, o que chama atenção é a linda arquitetura, a boemia fascinante e os passeios atrativos. Para os moradores mais simples, o que se destaca são as histórias horripilantes do passado da cidade e a overdose de gente louca que perambula pelas ruas. A pobre Sofia terá a oportunidade de conhecer os dois lados de Barcelona.


“O Mirante” tem como cenário um hotel em Pinamar, um tradicional balneário turístico da Província de Buenos Aires. O estabelecimento é meio assombrado e esconde histórias antigas e cabulosas. Por isso, a filha do dono do hotel, desde criança, não gosta dali. Agora adulta, ela tem medo de visitar o negócio da família no Inverno. Em um intrigado quebra-cabeça com doses generosas de terror, acompanhamos a viagem de Eliana até Pinamar. Recém-separada, a turista se hospeda no hotel sem imaginar o que lhe pode acontecer.


Por sua vez, “Onde Está Você, Coração?” trata de um curioso e estranho fetiche. Uma moça sente atração sexual por pessoas com doenças pulmonares e, principalmente, complicações cardíacas. Não importa se é homem ou mulher, velho ou jovem, bonito ou feio, real ou literário. Se o(a) doente tiver arritmia cardíaca, cicatrizes provocadas por cirurgias e dificuldades respiratórias, a protagonista deste conto se sente atraída sexualmente. Isso começou quando ela era criança e viu algumas vezes o pai de uma amiguinha pelado. O homem tinha feito várias operações no coração e ostentava uma gigantesca cicatriz no abdômen.


A oitava narrativa de “Os Perigos de Fumar na Cama” se chama “Carne”. Nesta trama, a imprensa argentina está em ebulição. O assunto que monopoliza a cobertura das televisões, rádios, jornais, revistas e portais da Internet do país inteiro, além das rodas de conversa das famílias e dos amigos no dia a dia, é a internação em uma clínica psiquiátrica de Mariela e Julieta. As duas são irmãs e têm 17 e 16 anos, respectivamente. Elas cometeram um ato inexplicável e bárbaro, que causou repulsão nacional. A loucura da dupla de adolescentes ocorreu após o suicídio de Santiago Espinho, uma estrela do rock argentino. Ele era amado pelas jovens do país inteiro.

Os Perigos de Fumar na Cama é o livro de terror de Mariana Enriquez que inaugurou a fase mais exitosa e produtiva da literatura desta renomada escritora argentina

Em “Nem Aniversários Nem Batizados”, conhecemos Nico, um sujeito um tanto peculiar. Ele se tornou próximo da narradora do conto no Verão em que ela brigou com todos os amigos e familiares. O que os aproximou foi os hábitos noturnos, o gosto pelo cinema e, fundamentalmente, as conversas de madrugada nos chats online. Depois de largar o trabalho de passeador de cães, Nico se especializou em fazer vídeos estranhos. O rapaz era contratado geralmente por voyeurs. Suas gravações giravam em torno de casais com fetiche de serem vistos transando, de encomendas para pedófilos e solicitações de mulheres desfilando como modelos pelas ruas. Contudo, a solicitação que mais mexeu com ele foi a de Marcela, uma jovem que era atormentada por possessões demoníacas. Ninguém acreditava que ela era vítima de entidades paranormais. Assim, as filmagens de Nico poderiam ser a única prova que a moça e sua família tinham para colocar um ponto final naquela misteriosa e perigosa situação.


“Garotos Perdidos” relata o trabalho de Mechi nos arquivos do Conselho dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes da Prefeitura de Buenos Aires. Funcionária pública há muitos anos, a protagonista se sente, pela primeira vez, gostando de algo que faz profissionalmente. Sua função é catalogar os casos de meninos e jovens desaparecidos na cidade. A maioria das ocorrências são de menores de idade que escaparam dos maus tratos e dos abusos em casa ou que foram sequestrados para integrar a rede de prostituição infantojuvenil da América do Sul. Não é preciso dizer que as principais vítimas são do sexo feminino. De todas as situações trágicas registradas, a que mais chama a atenção de Mechi é a de Vanadis, uma linda jovem de 15 anos. A menina está desaparecida há cerca de um ano e a família não parece nem um pouco preocupada.


“Os Perigos de Fumar na Cama” é o décimo primeiro conto da coletânea de Mariana Enriquez e a narrativa que empresta seu nome ao título da publicação. Essa história começa em uma noite de Primavera um pouco fria em Buenos Aires. Paula é despertada pelo forte cheiro de fumaça que toma conta de seu apartamento. Pela janela, ela vê o incêndio no prédio em frente. Na manhã seguinte, o porteiro fofoqueiro conta em detalhes a tragédia para Paula. Uma velhinha paralítica adormeceu com o cigarro aceso entre os dedos. As cinzas caíram na coberta e, pronto, o fogo se alastrou rapidamente pelo cômodo. A senhora morreu queimada. Na noite seguinte, Paula tem uma ideia diferente para se masturbar no silêncio e na privacidade de sua cama.    


Por fim, “Quando Falávamos com os Mortos” mostra cinco amigas adolescentes que gostavam de interagir com os espíritos pela brincadeira do copo. Elas tinham um tabuleiro de ouija sensacional e haviam ficado muito boas na comunicação com o além. Depois de ser proibido de fazer as sessões mediúnicas na casa de Polaca, o quinteto passou a se reunir na residência de Pinóquio. Foi lá que testemunharam uma experiência estranhíssima, que até hoje não sabem explicar bem.

Uma das publicações mais emblemáticas de Mariana Enriquez, Os Perigos de Fumar na Cama é o livro de contos de terror que foi lançado na Argentina em 2009 e que chegou ao Brasil, em tradução feita por Elisa Menezes, em 2023

“Os Perigos de Fumar na Cama” possui 144 páginas. Acho que levei em torno de três horas para percorrer integralmente seu conteúdo na semana passada. Minha leitura se dividiu basicamente em uma sessão noturna na quarta-feira (de aproximadamente duas horas) e algumas sessões diurnas na quinta-feira (que devem ter totalizado mais ou menos uma hora). Essa segunda perna do trabalho foi feita nos deslocamentos por Buenos Aires entre uma palestra e outra do Festival Borges, indicação preciosa de uma chica preciosa.


A primeira característica que me chamou a atenção em “Os Perigos de Fumar na Cama” é a pegada escatológica de seus textos. Todas as narrativas de Mariana Enriquez usam e abusam de cenas e sensações nauseantes. Preparem-se, senhoras e senhores, porque é preciso ter estômago forte para percorrer esses contos. Nesta leitura, acompanhamos, por exemplo, uma morta se decompondo fetidamente, a jovem que coloca o sangue da menstruação na bebida do amado, as irmãs que comem carne de gente morta e a mulher que adora tocar em cicatrizes, pus e doenças. Vômito, catarro, fezes, suor e sangue aparecem do início ao fim desse livro. Por isso, considerei essa obra com fortíssimos componentes naturalistas. Talvez o correto seja apontá-la como sendo um título do Novo Naturalismo ou do Neonaturalismo.


Outro elemento marcante desta publicação de Enriquez é a violência. É até difícil listar todas as atrocidades verificadas ao longo de “Os Perigos de Fumar na Cama”. Admito que comecei a anotá-las, mas depois perdi a conta. Racismo, assalto, assassinato, espancamento, machismo, estupro, canibalismo, pedofilia, suicídio, saques, rituais satânicos, vingança, corrupção, preconceito social, machismo, xenofobia e prostituição são alguns crimes e barbaridades que registrei. Contudo, saiba que há muito, muito mais. Quando disse que é preciso coragem para seguir nessa leitura, não estava me referindo apenas aos elementos nojentos. Ter que encarar tanta violência é algo difícil para as almas mais fracas e para os corações mais puros. Aí o Naturalismo dá lugar para o Brutalismo – abraço póstumo Rubem Fonseca.


Essa mistura de escatologia e brutalidade confere uma marca extremamente pessoal à literatura de Mariana Enriquez. Por isso, acho graça quando alguém compare as narrativas da escritora argentina aos textos de Stephen King, autor de “A Dança da Morte” (Suma das Letras), e de Edgar Allan Poe, autor de “Assassinatos na Rua Morgue e Outras Histórias” (L&PM Pocket). Apesar de adorar esse trio de artistas, acho suas produções bem distintas. A única semelhança é talvez o gênero literário: terror. Portanto, Enriquez não é apenas uma voz extremamente moderna e poderosa da ficção sul-americana contemporânea como é também muito original na produção das narrativas aterrorizantes.

Misturando realismo fantástico, violência brutal e escatologias, o livro de terror Os Perigos de Fumar na Cama é a primeira coletânea de contos da argentina Mariana Enriquez

Junto com o Realismo nu e cru da vida real e com o Brutalismo do cotidiano da América do Sul, temos doses generosas de fantasia. O mais adequado seria dizer que vários contos de “Os Perigos de Fumar na Cama” bebem do Realismo Fantástico, linha literária que marcou o Boom Literário Latino-americano. Apesar de não gostar muito de tramas fantásticas, admito que adorei o tempero desse expediente narrativo no trabalho de Enriquez. A escritora portenha soube equilibrar muito bem cada um dos ingredientes nas camadas de suas tramas: a inocência e a pureza da infância/adolescência; a crueldade e os perigos do mundo adulto; e o sobrenatural e o místico que ninguém de bom-senso consegue explicar. Exatamente por isso, confesso que achei esse livro mais parecido com a literatura de Julio Cortázar, autor de “Histórias de Cronópios e de Famas” (Best Seller), do que com o trabalho ficcional de King e Poe.


Também há um humor inteligente, fino e ácido. Diria até que essa publicação tem a cara da comicidade argentina! Ora os contos são sarcásticos, ora são ao melhor estilo nonsense. Mesmo diante de tanto terror, ainda assim conseguimos rir (risadas de nervoso e envergonhada, claro) do que se passa nas páginas da coletânea. O melhor exemplo disso é a tranquilidade com que a narradora-protagonista de “O Desenterro da Anjinha”, a primeira narrativa da coleção, nos conta seu infortúnio. São hilários os detalhes sórdidos com que a mulher revela que um espírito em decomposição a segue para todos os lados da casa e da cidade. Isso é Julio Cortázar puro, Santo Deus!


Outro aspecto que não poderia deixar de comentar é a forte sinestesia dos textos de “Os Perigos de Fumar na Cama”. Praticamente os cinco sentidos são despertados nessa leitura: a visão, a audição, o paladar, o olfato e o tato. Desses, achei o predomínio do olfato. Há muito tempo não lia uma publicação que explorasse tão fortemente o sentido do nariz. É impossível caminhar por essas histórias de Mariana Enriquez e não notar o odor exalado por suas palavras. Incrível!


É óbvio que essa coletânea de pequenas narrativas pertence ao gênero de terror. Eu não seria maluco de vir aqui na coluna Livros - Crítica Literária e dizer o contrário. Contudo, acho importante salientar a mescla saborosa com outros estilos literários. Há, nos contos, suspense, drama psicológico, aventura policial, trama histórica, realismo fantástico, ação naturalista, acontecimentos sobrenaturais e comédia. Tudo junto e misturado, como diriam os mais novinhos.


A atemporalidade e a universalidade das tramas de “Os Perigos de Fumar na Cama” são outras características relevantes dessa obra. Lembremos que o livro foi lançado originalmente há 15 anos na Argentina e retratava a realidade aterrorizante de bairros suburbanos de Buenos Aires e de algumas cidades do interior do país. Em um mundo tão veloz como o nosso, uma década e meia é um espaço temporal gigantesco. Além disso, havia grande chance deste cenário específico não ser interessante aos olhos dos leitores estrangeiros. Entretanto, precisamos reconhecer que os conflitos, as personagens e os enredos desta publicação seguem atuais e bastante impactantes. Prova disso foi a ótima receptividade da obra pelo público nos Estados Unidos e na Inglaterra no ano retrasado.

Autora da coletânea de contos Os Perigos de Fumar na Cama, Mariana Enriquez é a jornalista e escritora argentina que nasceu em Buenos Aires em 1973

Outro aspecto que gostei bastante foi dos desfechos das histórias de Enriquez. A escritora portenha não é do tipo que deixa tão fechados os desenlaces dos contos (o que inviabilizaria a viagem criativa dos leitores), mas também não os deixa tão abertos (o que impossibilitaria uma linha conclusiva). Ou seja, ela fica no meio do caminho entre abrir demais e fechar excessivamente. Se isso não for a comprovação cabal da maturidade ficcional da autora (e dos ensinamentos da produção contista de Jorge Luis Borges e de Ricardo Piglia), não sei mais o que é uma boa literatura ficcional.  


As personagens centrais e as narradoras deste livro são quase sempre mulheres jovens. Na maioria das vezes, a trama gira em torno de dramas adolescentes ou infantis, que podem respingar para a fase adulta e até mesmo para a velhice. Há alguns contos em “Os Perigos de Fumar na Cama” em que a ação ocorre ao redor de figuras masculinas (estrela do rock, cameraman de filmes estranhos, mendigo bêbado, jornalista investigativo) ou de mulheres mais velhas (avó supersticiosa, bruxa do interior, filha do dono do hotel já adulta). Porém, os conflitos dos contos enfocam invariavelmente meninas e jovens do sexo feminino. Elas são as figuras principais dessa publicação.


Outro elogio que preciso fazer para essa coletânea de histórias curtas é a originalidade do espaço narrativo. Se você acha, como eu pensava, que os contos se passariam em Buenos Aires e nas regiões mais turísticas da capital argentina, certamente esse livro trará surpresas positivas. Os cenários das tramas de “Os Perigos de Fumar na Cama” são quase sempre bairros afastados do Centro e cidades do interior do país. Em um ou outro caso, a ação se passa no exterior. Gostei de assistir a um panorama mais completo da Argentina (e menos conhecido pelos brasileiros que cruzam as fronteiras a lazer). O país apresentado por Mariana Enriquez é mais misterioso, violento, sobrenatural e imprevisível.


É verdade que, como a maioria das coleções de contos disponíveis nas estantes das livrarias, esse livro tem altos e baixos. Algumas histórias são ótimas e inesquecíveis. Adorei “O Desenterro da Anjinha”, “Onde Está Você, Coração?”, “O Poço” e “Quando Falávamos com os Mortos”. Por outro lado, há também algumas narrativas pouco significativas, como “Rambla Triste”, “O Mirante” e “Os Perigos de Fumar na Cama” – sim, o conto que empresta seu título à obra é fraquinho. Porém, é válido dizer que no geral, o livro é muito bom. Quem é fã do gênero de terror, curte narrativas mais rápidas e não teme encarar cenários, situações e personagens envoltos em escatologia e violência (coloca o dedo aqui que já vai fechar!), certamente gostará da experiência de leitura proporcionada por Mariana Enriquez.  


Admito que ao fechar esta publicação, o sentimento que me bateu foi: preciso conhecer os trabalhos ficcionais mais premiados e recentes desta escritora argentina. Minha curiosidade agora é saber como é a qualidade de “Nossa Parte de Noite”, “Este é o Mar” e “As Coisas que Perdemos no Fogo”. Por isso, não se surpreenda se em breve eu voltar ao Bonas Histórias e à coluna Livros - Crítica Literária para analisar esses outros títulos literários de Enriquez. Afinal, é como eu sempre digo: enquanto o mundo gira, a gente lê; fazer o quê?


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