Em 1999, José Eduardo Agualusa, jornalista e escritor angolano com trabalhos de destaque tanto em sua terra natal quanto em Portugal e no Brasil, morava em Berlim. Em uma das noites frias da capital alemã, ele sonhou que frequentava um bar com muitos brasileiros. Ao som de samba e de chorinho, um homem sentou-se à sua mesa e se apresentou: “O meu nome é Félix Ventura, sou angolano e vendo passados aos novos ricos do meu país”. Ao despertar na manhã seguinte, o autor não perdeu tempo e escreveu um conto protagonizado pelo conterrâneo que viera lhe visitar em sonho.
Apesar de ter colocado aquela história no papel, Agualusa não tirou mais da cabeça a figura de Félix Ventura, uma das personagens mais incríveis da literatura angolana e da literatura contemporânea em língua portuguesa. Uma narrativa curta parecia pouco para abranger uma trama com tantos nuances dramáticos. Assim, após concluir o romance “O Ano em que Zumbi Tomou o Rio” (Gryphus Editora), o escritor angolano lançou-se ao desafio de produzir um enredo mais completo para aquele conto berlinense. Nascia, assim, “O Vendedor de Passados” (Tusquets), o sexto romance de José Eduardo Agualusa.
Esta obra faz uma sátira inteligente e bem-humorada aos dramas angolanos do Pós-Guerra Civil. Com doses de Realismo Fantástico, com muitas passagens oníricas e um ambiente extremamente violento, Agualusa tece um retrato magnífico da realidade atroz do seu país e das neuroses de seus conterrâneos. Não à toa, para muitos críticos literários, esta é a sua principal obra. Confesso que faço parte deste grupo. Há quem prefira, contudo, “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” (Tusquets), outro título memorável do portfólio artístico de José Eduardo Agualusa. Independentemente das preferências pessoais, uma coisa não se questiona: a excelência narrativa desses dois livros. De certa maneira, eles representam o auge literário de um dos principais autores vivos de nossa língua e da recente literatura africana.
Escrito entre 2003 e 2004, quando Agualusa já tinha voltado a morar em Lisboa, “O Vendedor de Passados” foi publicado em 2004, em Portugal, e logo depois em Angola e no Brasil. Sucesso instantâneo de público e de crítica, este livro foi traduzido para vários idiomas. Em 2007, ao ganhar uma versão em inglês, cujo título foi “The Book of Chameleons”, “O Vendedor de Passados” conquistou o Prêmio Independent, honraria concedida pelo jornal britânico homônimo, na categoria Ficção Estrangeira. Foi a primeira vez que um africano recebeu este prêmio.
Em 2015, esta história de José Eduardo Agualusa foi adaptada para os cinemas. A produção brasileira foi dirigida por Lula Buarque de Hollanda, roteirizada por Isabel Muniz e teve o protagonismo de Lázaro Ramos, Alinne Moraes e Odilon Wagner. Apesar de ter tido uma bilheteria tímida nas salas de cinema de nosso país, o longa-metragem foi assistido, anos mais tarde, por mais de oito milhões de espectadores quando exibido pela Rede Globo na televisão aberta.
Provavelmente, quem gostou do livro do angolano irá se frustrar com o filme brasileiro. Afinal, a produção cinematográfica usa a trama de Agualusa apenas como base narrativa e cria uma (nova) história totalmente desvinculada da original. A versão audiovisual, inclusive, dispensa boa parte dos elementos mais charmosos do romance: o enredo não se passa em Angola (e sim no Brasil) e, portanto, não usa o passado violento do país africano como origem dos traumas das personagens; o protagonista não é albino (nem possui um passado obscuro/contraditório); o narrador não é uma osga/lagartixa (uma das gratas surpresas do livro); e não há uma forte crítica social à nova burguesia luandense (ávida por ter ancestrais famosos e/ou com histórias importantes). O longa-metragem de Lula Buarque de Hollanda é meramente um thriller policial com uma pegada contemporânea. Ou seja, ele não poderia ser mais distinto do que o livro de José Eduardo Agualusa!
A versão literária de “O Vendedor de Passados” tem como cenário a capital angolana, Luanda, no fim da Guerra Civil (1975-2002). Félix Ventura é um senhor albino com hábitos reclusos e com uma biblioteca imensa em sua casa. Aproveitando-se da sua erudição e dos documentos e materiais históricos que possui, ele trafica memórias. Em outras palavras, Félix vende passados melhores para quem deseja apagar a trajetória complicada e perturbada que teve. A partir destes serviços, os clientes (grupo formado majoritariamente por novos ricos, figuras públicas, empresários, políticos e artistas angolanos) adquirem uma nova biografia, mais charmosa e mais condizente com os novos tempos.
Certo dia, surge na casa de Félix um sujeitinho singular. Dizendo ser fotógrafo de guerras e tendo um forte sotaque brasileiro, o rapaz, que prefere não revelar o verdadeiro nome, quer um novo passado. Para isso, ele paga adiantado US$ 5 mil ao vendedor e promete outros US$ 5 mil para quando o serviço for concluído (sua exigência inclui os recebimentos de novos documentos e passaporte). Diante de uma proposta considerada irrecusável, Félix Ventura cria uma identidade novinha em folha para seu cliente: José Buchmann é filho de Matheus Buchmann e de Eva Miller, tem 52 anos e é natural de Chibia, um povoado colonizado por madeirenses.
O novo José Buchmann fica tão empolgado com sua recém-obtida biografia que ele começa a realizar uma profunda pesquisa a respeito do seu “novo” passado. Apesar das advertências de Félix para não se expor tanto, o cliente inicia viagens para Chibia em busca de informações sobre seu pai e sobre sua mãe. Reconstruir sua trajetória (mesmo que criada de forma fictícia) se transforma em uma obsessão para Buchmann. De tão apegado à nova identidade, o fotógrafo passa por uma grande transmutação física e comportamental: ele se torna mais eloquente, passa a usar roupas coloridas, a risada vem fácil e até seu rosto fica mais parecido ao dos africanos.
Nos meses seguintes, Félix Ventura e José Buchmann viram grandes amigos. Ambos os homens compartilham as descobertas relativas à família Buchmann. Nesses encontros, sempre na casa de Félix, o albino apresenta, ao amigo, Ângela Lúcia, uma jovem fotógrafa por quem está apaixonado. E José apresenta, ao anfitrião, Edmundo Barata dos Reis, um mendigo das ruas de Luanda que diz ter sido um oficial do governo angolano no período da Guerra Civil.
Quem narra esta história é Eulálio, um dos moradores da residência de Félix Ventura. Eulálio é uma osga-tigre (espécie de lagartixa malhada) de quinze anos que tem a capacidade de dar gargalhadas como os seres humanos. Essa habilidade do animal chamou a atenção do morador da casa a ponto de Félix passar a conversar com o bichinho (conversa em tom de monólogo, obviamente, já que a osga não fala, né?). Foi o albino quem deu o nome de Eulálio ao pequeno réptil.
O corpo da lagartixa é, na verdade, habitado pela alma de um (antigo) homem que, na vida passada, cometeu suicídio. Como carma, ele reencarnou agora em um ser aparentemente menos evoluído. Enquanto tenta recordar os dramas de sua encarnação anterior e tenta fugir dos seus predadores atuais (Eulálio tem tanto medo de ser comido por um animal maior que quase não sai da casa de Félix), a osga acompanha a saga do amigo-anfitrião e dos seus visitantes: José Buchmann, Ângela Lúcia e Edmundo Barata dos Reis.
“O Vendedor de Passados” possui 208 páginas. Seu conteúdo está dividido em 32 capítulos (são capítulos curtinhos). Demorei cerca de quatro horas, na tarde e na noite da última quarta-feira, para concluir integralmente esta obra. Dos livros de José Eduardo Agualusa que li até aqui no Desafio Literário de novembro, este é indiscutivelmente o melhor. Se “A Conjura” (Gryphus Editora) e “Nação Crioula” (Gryphus Editora) são bons romances históricos (nada mais do que bons títulos...), “O Vendedor de Passados”, por sua vez, está alguns degraus acima em nível de excelência narrativa. Em suma, trata-se de uma obra espetacular! Não é errado dizer que esta é uma publicação para guardarmos na memória por vários e vários anos (patamar que, infelizmente, os livros anteriores do angolano não tinham conseguido atingir).
Curiosamente, “O Vendedor de Passados” utiliza-se de boa parte dos ingredientes literários dos livros anteriores de Agualusa: realismo fantástico, ambiente de extrema violência e racismo, forte intertextualidade literária, personagens afetadas diretamente pelos acontecimentos políticos e sociais de Angola e tramas multifacetadas dentro de uma história maior. Entretanto, o resultado desse caldo narrativo é bem diferente de outrora. Apesar de usar as mesmas matérias-primas ficcionais, José Eduardo Agualusa conseguiu, enfim, construir uma história saborosíssima e marcante.
O Realismo Fantástico está presente, em “O Vendedor de Passados”, já no foco narrativo. Ter como narrador uma osga é uma ideia genial. E Eulálio não se limita a descrever o que presencia na casa de Félix Ventura. Ele vai além: sonha, relembra suas vidas passadas, sente medo e questiona o que as personagens humanas estão fazendo. Parte da graça deste romance de José Eduardo Agualusa está na surpresa que o leitor tem quando se depara com este tipo de narrador e na riqueza que é ter uma osga como uma personagem ficcional (confesso que não sei qual figura deste livro é a mais interessante – se Eulálio ou Félix Ventura?!).
Se por um lado colocar Eulálio como narrador da trama foi uma decisão corajosa e acertada, por outro lado esse expediente literário não é algo tão original assim em se tratando da moderna ficção africana em língua portuguesa. “O Vendedor de Passados” me fez lembrar de “A Varanda do Frangipani” (Companhia das Letras), romance de Mia Couto publicado pela primeira vez em 1996. A trama do moçambicano também era narrada por um espírito de um homem encarnado, tinha um animal com poderes especiais (no caso um pangolim, uma espécie de tamanduá africano com a capacidade de frequentar tanto o mundo dos vivos quanto o mundo dos mortos) e possuía como contexto os traumas da guerra (no caso, o longo conflito de independência de Moçambique). São inegáveis, do ponto de vista do foco narrativo e da ambientação, as várias semelhanças entre as obras de Agualusa e Couto. Duvido que o autor angolano não conhecesse “A Varanda do Frangipani” quando começou a produzir seu romance.
Por falar em ambientação, “O Vendedor de Passados” é uma trama permeada de violência. As minas terrestres espalhadas pelo território angolano expõem o quão perigoso é o cenário do livro. Segundo o narrador, há mais bombas terrestres ativas do que habitantes em Angola (um exagero, obviamente) e a profissão de sapador, o trabalhador que desativa esses artefatos, é uma das mais prósperas deste país (outro exagero, é claro). Além disso, assistimos aos efeitos deletérios da Guerra da Independência e da Guerra Civil, que se propagaram por quase três décadas e que deixaram feridas pessoais e sociais ainda não totalmente cicatrizadas. Junto com a violência, o racismo estrutural afeta diretamente toda a sociedade angolana. Por mais paradoxal que seja, em um país em que a população é prioritariamente negra, ainda sim o racismo pode vigorar intensamente.
Como um bom romance de Agualusa, “O Vendedor de Passados” é um texto com intensa intertextualidade literária e alguma intertextualidade musical. Ao longo desta narrativa, são citados uma infinidade de autores (Mikhail Bakunin, Eça de Queirós, William Shakespeare, Gabriel García Márquez, Paulo Coelho, Camilo Castelo Branco, J. M. Coetzee, Fernando Pessoa, Jorge Amado, Aldous Huxley e Michel de Montaigne) e algumas modalidades musicais (cuduro, quizomba, samba, chorinho, fado e tango, por exemplo). A trama principal desta obra também apresenta forte metalinguagem literária: o trabalho de Félix Ventura conversa com os clássicos da ficção (o protagonista é especialista na literatura de Eça de Queirós) e, ao final do livro, ele se lança ao trabalho de escritor.
Se há muitas semelhanças entre este título e os anteriores de José Eduardo Agualusa, há também algumas diferenças consideráveis. A primeira é a pouca quantidade de personagens desta vez. Se “A Conjura” e “Nação Crioula” tem quase um novo personagem por página, “O Vendedor de Passados” tem sua trama concentrada em cinco figuras: Félix Ventura, Eulálio, José Buchmann/Pedro Gouveia, Ângela Lúcia e Edmundo Barata dos Reis. Quando muito, esta narrativa cita uma ou outra personagem secundária – Esperança Job Sapalalo (a empregada doméstica de Félix), Eva Miller (a mãe de José/Pedro), o ministro, o presidente... Do ponto de vista da complexidade da trama, é possível enxergar “O Vendedor de Passados” como uma novela e não como um romance. Gostei disso! Confesso que fiquei várias vezes confuso durante a leitura de “Nação Crioula” e, principalmente, de “A Conjura”. O excesso de personagens, naquelas obras, não agregava (pelo contrário - desagregava).
Outra questão interessante de “O Vendedor de Passados” é a multiplicidade de sua narrativa. A partir de uma linha central, a história de Agualusa se bifurca em vários pontos. Assim, temos: a vida presente e real das personagens (de Félix Ventura e de Eulálio, por exemplo); as vidas passadas do narrador (quando Eulálio era ainda um homem e não uma osga); as vidas inventadas por Félix Ventura, o vendedor de passados; o universo onírico do narrador (que se embaralha com os sonhos das demais personagens); o passado de Félix Ventura (que não sabemos se é real ou fictício – ele teria feito um “novo” passado para si mesmo?!); e o emaranhado biográfico entre José Buchmann/Pedro Gouveia, Edmundo Barata dos Reis e Ângela Lúcia (que propicia a última surpresa do livro).
Por fim, a ambientação deste romance e sua estrutura narrativa estão calcadas em cima de um contexto político bem específico (Guerras em Angola da segunda metade do século XX). É impossível compreender o que se passa nesta trama sem entender o que aconteceu com este país nas últimas décadas. “E qual a novidade nisso?”, alguém pode me perguntar. A diferença está no fato do aspecto político ficar, desta vez, apenas ao redor do conflito principal. Vale lembrar que em “A Conjura” e em “Nação Crioula”, este elemento fazia parte da essência dos romances (a política estava no centro da narrativa). Também gostei dessa alteração. A parte ficcional ganhou força frente aos elementos históricos e sociais.
O principal mérito de Agualusa, em “O Vendedor de Passados”, foi ter abordado vários temas delicados de seu país sem ser literal em seus apontamentos/críticas. A sutileza foi a arma do jogo. A sátira foi usada pelo autor angolano como ferramenta de crítica social e o humor teve a função estratégica de apontar os absurdos da sociedade.
Em resumo, “O Vendedor de Passados” é um romance memorável. Admito que fiquei encantado com sua narrativa (e com o talento ficcional de Agualusa). Não se surpreenda, portanto, se você vir esta obra na lista das melhores leituras de 2020, post do final do ano da coluna Recomendações.
O próximo livro de José Eduardo Agualusa que vamos analisar no Desafio Literário de novembro será "As Mulheres do Meu Pai" (Língua Geral). Publicado em 2007, este romance, o sétimo do autor angolano, aborda a busca de uma cineasta portuguesa por suas origens africanas. Quando sua mãe morreu, ela descobriu ser filha de Faustino Manso, um popular compositor angolano nas décadas de 1960 e 1970. O post com os comentários de "As Mulheres do Meu Pai" estará disponível, no Bonas Histórias, na próxima quarta-feira, dia 18. Boa leitura!
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