Lançada em setembro de 2022, esta narrativa histórica é ambientada no interior de Minas Gerais e traz a amizade de um velho vendedor de mel com um menino de rua.
Acredito que há algo de muito positivo acontecendo na literatura mineira. Minha impressão é decorrência do grande número de livros ficcionais de autores de Minas Gerais que recebi nos quatro últimos meses. Como crítico literário especializado em títulos de ficção, eu ganho normalmente muitas obras para avaliar. Até aí, nada demais. A curiosidade é que, de julho para cá, mais da metade das publicações literárias que me foram enviadas tem a assinatura de escritores mineiros. O que estaria se passando, hein?! Ou a literatura de Minas está bombando ou o Bonas Histórias entrou definitivamente no radar de editoras, assessores de imprensa, artistas e agências de comunicação desse pedacinho querido do Brasil.
Estou trazendo esse assunto hoje para a coluna Livros – Crítica Literária porque uma das obras mineiras mais legais que tive a oportunidade de ler neste ano foi “O Velho e o Menino: o Rio” (Cria Editora), romance de estreia de José Carlos Martins. Natural do Sul de Minas, Martins teve uma longa carreira no judiciário federal e na docência universitária. Por grande parte da vida adulta, a literatura ficou em segundo (ou mesmo em terceiro, quarto...) plano na rotina do autor. O fazer literário era exercido meramente como hobby ocasional. Contudo, quando o SITRAEMG (Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário Federal do Estado de Minas Gerais) lhe concedeu o prêmio de melhor conto, em 2008, para “Sorriso de Ditinho”, sua primeira narrativa curta, uma luz acendeu na mente do escritor mineiro. Talvez José Carlos Martins levasse jeito para a produção ficcional e não soubesse de seu real talento, né?
Mesmo assim, nos dez anos seguintes, Martins só produziu mais um conto. Com a aposentadoria em 2018, ele resolveu mergulhar com afinco nos prazeres e nos desafios do fazer ficcional. Dessa forma, saiu de cena o professor de Direito da Universidade de Alfenas (UNIFENAS) e o profissional da Vara do Trabalho de Alfenas. E entrou no palco literário nacional o romancista com um texto elegante e uma narrativa saborosíssima.
Lançado em setembro de 2022, “O Velho e o Menino: o Rio” nasceu de “O Vendedor de Mel”, justamente aquele segundo conto que José Carlos Martins tinha desenvolvido em 2010. A partir da trama curtinha de um senhor septuagenário que percorria as ruas de uma pequena cidade do interior de Minas ao lado de um menino de rua carente de afeto e de atenção, o escritor construiu uma narrativa mais longa e encorpada. O conto deu lugar, assim, ao romance histórico. E o autor amador deu passagem ao romancista profissional. Com todo o respeito que o judiciário nacional merece (algo esquecido por tanta gente nos últimos anos nesse cantinho azedo do mundo), acho que a literatura brasileira ganhou bastante com a troca de papéis de Martins.
“O Velho e o Menino: o Rio” foi publicado pela Cria Editora. Fundada, em 2008, em Alfenas, essa casa editorial se dedica à literatura infantojuvenil. A trama de José Carlos Martins é ambientada na cidade fictícia de Conceição de Itororó e se passa essencialmente no ano de 1970. Contudo, a inspiração do romancista foi sua terra natal, Areado. Nascido e criado no pequeno município do Sul de Minas (só mais tarde ele se mudou para Guaxupé e, depois, para Alfenas, onde reside até hoje), Martins aproveitou o ar bucólico, os causos, os tipos populares, a religiosidade, o conservadorismo e a paisagem de Areado para criar Conceição de Itororó. Obviamente, o colorido da trama é pontuado pelas lembranças da infância do autor em sua cidade de origem.
O enredo de “O Velho e o Menino: o Rio” começa em 1970. Manuel Vieira Vasconcelos de Quental é um senhor septuagenário que nasceu em Portugal e foi criado desde pequeno no Brasil. Ele percorre as ruas de Conceição de Itororó, pequena cidade do interior de Minas Gerais, vendendo mel. Manuel tem como companhia Francisco, um menino sem casa e sem família. Enquanto o garoto alegra os clientes cantando e tocando violão, o velho dá conselhos ao pequeno amigo e lhe fornece comida e carinho. A amizade da dupla é sincera e pura.
A trama do romance é contada, na maior parte das páginas, pelo vendedor de mel. Ele fala sem parar enquanto caminha pelas ruas mineiras. Encantado com a atenção conferida por Francisco, Manuel relata sua trajetória de vida e o passado de seus familiares, além de apresentar sua visão de mundo, as opiniões, as crenças (ou descrenças, já que ele é um ateu convicto e um anarquista inveterado) e as curiosidades da cidade onde cresceu e sempre viveu.
Quando a memória é fustigada, as palavras do narrador retornam para maio de 1897. Essa é a data em que Manuel nasceu. Ele é filho de António José de Quental e Isabel Maria Vieira Vasconcelos. A família vive na aldeia de Cancelos de Baixo, ao norte do Distrito de Guarda, Portugal. O clã Vieira Vasconcelos trabalha produzindo vinho. Porém, com o falecimento de Isabel após o parto de Manuel, António resolve abandonar a propriedade dos sogros e viaja com o filho recém-nascido para o Brasil. Depois de chegar ao Porto de Santos, a dupla ruma para a Vila do Itororó, então povoado da comarca de Rio Pequeno, em Minas Gerais. Ali, António instala-se com o pequeno Manuel na Fazenda da Cachoeira, uma das propriedades da região que se dedica ao cultivo do café. Acostumado a lida no campo, o pai do protagonista rapidamente se ambienta ao novo país e ao novo ofício e se torna funcionário importante na fazenda banhada pelo Rio Itororó.
Não demora e António se casa pela segunda vez. O novo matrimônio é com Maria Cândida Bittencourt Antunes, irmã de um advogado importante no povoado e filha do Barão de Itororó. Com Candinha, como a esposa é chamada carinhosamente por todos, António tem mais três filhos: João Antônio, José Antônio e Maria Antonieta. Dessa maneira, Manuel tem uma família de verdade. Candinha é a mãe afetuosa e dedicada que o menino até então não teve. E a chegada de um trio de irmãos mais novos dá vida ao lar dos Antunes de Quental.
Com o pai cada vez mais relevante aos olhos dos proprietários da plantação de café, Manuel ganha o direito de estudar. O menino adora ler e se dedica bastante à escola montada na Fazenda da Cachoeira. Contudo, ele só consegue avançar até o quarto ano primário. Nem mesmo a limitação na formação acadêmica limita a sede de conhecimento do garoto. Manuel continua frequentando a escola seja para ler os livros da biblioteca nas horas de lazer, seja para ajudar as crianças menores no processo de alfabetização e letramento. Dessa maneira, o protagonista de “O Velho e o Menino: o Rio” se torna mestre-escola. A paixão por ensinar e por ler só é comparada ao que Manuel, uma vez adulto, sente por Mariana. Um encontro fortuito e um passeio de mãos dadas na praça já são suficientes para o rapaz vislumbrar uma vida inteira ao lado daquela moça bonita e de boa família.
Enquanto conta ao pequeno Francisco seu passado e sua trajetória de vida, o narrador-protagonista também relata o crescimento da Vila do Itororó. A localidade emancipa-se da comarca de Rio Pequeno e se torna um município independente. O novo nome da cidade é Conceição de Itororó. Manuel também fala ao amiguinho sobre as curiosidades dos moradores do interior de Minas Gerais. Bom de prosa, a personagem principal do romance não se cansa de relatar as confusões e as particularidades dos moradores mais engraçados de Conceição de Itororó. Aí entra em cena figuras curiosíssimas: Zé Côco, irmãos Maior e Menor, Seu Antenor da Coberta, Joaquim Poeta, Zé d´Aurélio, Pai Preto e tantos outros.
Para completar, Manuel não perde a oportunidade de expor o quão contraditório e sem sentido são os dogmas do Cristianismo. O antigo mestre-escola, agora vendedor de mel, argumenta sobre a falta de sentido na crença divina e nos relatos bíblicos. O ateísmo de Manuel leva geralmente o Padre Messias ao desespero. E aproveitando que está criticando as instituições religiosas, por que não mostrar para Francisco as mazelas sociais, políticas e ambientais do Brasil, hein? Assim, o narrador-protagonista faz uma bela contextualização político-histórica (Guerras Mundiais, Crise do Café, Imigração Europeia para a América, Chegada do Homem à Lua, Golpe Militar etc.) e enumera as injustiças e os erros contidos na terra em que vive desde pequeno. Para os olhos de alguém desacostumado com as particularidades do Brasil, nosso país pode parecer mesmo um grande hospício.
“O Velho e o Menino: o Rio” possui 240 páginas e está dividido basicamente em três partes. Na primeira (de um único capítulo), assistimos a um flash do menino Francisco ao lado do vendedor de mel em Conceição de Itororó. Na segunda seção do romance (com 103 capítulos), acompanhamos a saga de Manuel de Quental desde o nascimento em Portugal, em 1897, até a sua rotina de vendedor de mel pelas ruas do interior de Minas Gerais em 1970. E a terceira parte da obra (com 6 capítulos) traz o desfecho da trama. Por fim, há ainda uma espécie de posfácio intitulado “Carta à Revisora Lívia Prado”. Nas páginas finais da publicação, o autor comenta brevemente algumas curiosidades e detalhes da produção textual.
Levei aproximadamente cinco horas para concluir, no último final de semana, a leitura desta obra ficcional de estreia de José Carlos Martins. Usei praticamente o domingo inteiro para isso. Quem não gosta de longas sessões de leitura como eu, dá para degustar tranquilamente “O Velho e o Menino: o Rio” em dois dias ou mesmo em três noites consecutivas.
A primeira questão que nos chama a atenção nesse romance é a sua narrativa gostosa e seu texto extremamente elegante. Ler este livro é mergulhar na história da imigração portuguesa no Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX e na história da formação sociocultural do interior de Minas Gerais. Curiosamente, esses assuntos não são tão explorados na literatura brasileira. Normalmente, acabamos acompanhando nas páginas ficcionais a saga da imigração italiana em São Paulo, a chegada dos alemães no Sul do país e os dramas dos africanos traficados para o Rio de Janeiro ou para o Nordeste no Período Colonial. Por isso, logo de cara gostei de “O Velho e o Menino: o Rio”. De certa maneira, a obra de estreia de José Carlos Martins dialoga com os títulos da literatura portuguesa que abordam a questão da migração lusitana para o Brasil. De cabeça, posso citar os livros de José Vieira, como “Dedicação, Palavra e Honra” (ebook independente), “Adágios” (Chiado Editora) e “Alecrim” (ebook independente), que tratam dessa questão pela perspectiva dos portugueses.
Em relação à elegância do texto de Martins, o que posso dizer, hein? A narrativa de “O Velho e o Menino: o Rio” está simplesmente impecável. Ah se todo autor ficcional estreante escrevesse com tamanha precisão e com alto nível de beleza, né? No meu caso, sou honesto em reconhecer que não tenho tal capacidade. Por isso mesmo, costumo ficar maravilhado quando me deparo com profissionais das letras com talento e/ou disposição para nos entregar histórias tão bonitas e tão bem escritas. Você até pode apontar um ou outro ponto negativo neste livro (algo que faremos sim mais à frente neste post da coluna Livros – Crítica Literária – até porque não temos aqui um romance perfeito), mas não poderá reclamar da qualidade textual de José Carlos Martins. Isso não!!! Martins é um belíssimo escritor ficcional que desponta como uma boa promessa da literatura mineira e da literatura nacional contemporânea. Olho nele, senhoras e senhores!
Um dos aspectos que mais gostei nesta obra é o seu caráter versátil, multidisciplinar. Digo isso porque “O Velho e o Menino: o Rio” é um romance sem sombra de dúvida. Porém, em alguns momentos, temos a impressão de estar lendo uma coletânea de contos (causos de Conceição de Itororó e de seus habitantes), uma coleção de crônicas (a história do Brasil e de Minas Gerais) e um conjunto de ensaios religiosos (ponto de vista de um ateu para as contradições, para não dizer total falta de lógica, do Cristianismo e das religiões monoteístas). Quem curte literatura pra valer e aprecia as diferenças de gêneros narrativos irá pirar lendo este título. Eu adorei!
Em relação à estrutura narrativa, “O Velho e o Menino: o Rio” é um romance muito bem construído. A divisão das partes do livro respeita as particularidades dos diferentes tipos de narrador, que, por sua vez, fazem total sentido do ponto de vista da experiência literária do leitor. Na primeira seção da obra, temos a narração em terceira pessoa com o narrador colado ao menino Francisco. Dessa forma, conseguimos ter uma visão mais geral do que está acontecendo e do ambiente (mesmo em uma única página). Na segunda parte de “O Velho e o Menino: o Rio”, a narração está em primeira pessoa e é realizada pelo vendedor de mel já idoso. Aí temos o mergulho propriamente dito nas memórias, nas falas, nos sentimentos e nas opiniões da personagem principal. E na terceira e última seção, a narração volta a ser em terceira pessoa e o narrador fica colado a diferentes personagens dependendo do capítulo. Como consequência, o leitor consegue acompanhar o desenlace do livro de perspectivas distintas, o que gera certo suspense ao desfecho do romance. Incrível, né?
Em um primeiro momento, o enredo de “O Velho e o Menino: o Rio” me lembrou as tramas de “Vendedor de Passado” (Tusquets), romance de José Eduardo Agualusa (busca obstinada pela memória pessoal e familiar), e de “O Meu Pé de Laranja Lima” (Melhoramentos), clássico de José Carlos Vasconcelos (relação bonita e poética de um comerciante mais velho com um menino esperto e carismático). Contudo, já na metade da leitura, tive a impressão de que o narrador-protagonista de José Carlos Martins tinha algo de Vitorino Carneiro da Cunha, personagem de José Lins do Rego em “Fogo Morto”, e de Florentino Ariza, figura central em “Amor nos Tempos do Cólera” (Record), um dos mais divertidos trabalhos de Gabriel García Márquez (a melancolia, o saudosismo, os fracassos amorosos e a visão um tanto deturpada da realidade podem ser vistas como características do narrador de “O Velho e o Menino: o Rio”).
Por falar em referências, achei o título dessa obra uma mistura de “O Velho e o Mar” (Bertrand Brasil), novela de Ernest Hemingway (por motivos óbvios, né?), com “Grande Sertão: Veredas” (Companhia das Letras), romance mais famoso de Guimarães Rosa (pela estrutura da pontuação). Como gosto da intertextualidade literária, confesso que curti o nome desta obra ficcional de estreia de José Carlos Martins. Contudo, as semelhanças entre os títulos podem suscitar certo desconforto em alguns leitores, menos inclinados à intertextualidade e às sutis brincadeiras literárias.
Algo que precisa ser muito elogiado neste romance é a excelente ambientação. Fiquei fascinado com a atmosfera de “O Velho e o Menino: o Rio”. A impressão que temos durante a leitura é de estar realmente caminhando pelo interior de Minas Gerais ao longo das primeiras sete décadas do século XX. Vale a pena dizer que criar a ambientação de um romance histórico não é algo simples e fácil. E Martins foi primoroso nesse trabalho. Tudo parece conspirar para a manutenção dessa atmosfera saudosista, particular e verossímil do interior mineiro: personagens curiosas, conservadorismo da população, religiosidade local, inconformismo com o progresso, causos da região, especificidades geográficas... Por ter morado por um ano no interior de Minas Gerais, posso dizer com propriedade: a descrição do ambiente do romance é maravilhosa e fidedigna, algo que somente um escritor local com talento literário poderia fazer com tamanho alcance e propriedade.
Os capítulos curtos do livro dão grande dinamismo ao texto. Adorei essa característica de “O Velho e o Menino: o Rio”. Parte do caráter híbrido desta narrativa de José Carlos Martins (mistura de romance, conto, crônica e ensaio) deve-se as constantes mudanças de assuntos de um capítulo para outro. Ora o narrador-protagonista está falando do passado do pai, ora ele trata de um caso envolvendo uma personalidade pitoresca de Conceição de Itororó. Na sequência, ele narra um acontecimento nacional para depois confessar algo de sua biografia. Aí ele emenda uma reflexão filosófico-religiosa, para depois relatar uma preocupação que tem do presente. Note que o autor usa muitíssimo bem tal quebra da sequência narrativa. Portanto, não espere uma trama linear e lógica. A impressão que tive é que o protagonista vai contando sua história e de sua família para o menino Francisco à medida que vai se lembrando, como em uma conversa informal. E no meio do caminho sempre tem uma pedra, que precisa ser contornada. É incrível esse efeito!
Outra questão saborosíssima é a sensação de que o livro está sendo montado diante dos nossos olhos. O narrador-protagonista fala com a revisora (não me lembro de ter visto este recurso em outro romance), deixa anotações para serem excluídas da versão final da obra (mas que ficaram!), constrói linha temporal da trajetória familiar (como se usasse suas anotações como cola ou esboço para sua produção textual), não termina alguns capítulos (o que por si só já indica muita coisa!), dá dicas literárias (como se falasse consigo mesmo) e volta em temas delicados que não consegue abordar diretamente (escancarando alguns bloqueios psicológicos). É ou não é maravilhoso acompanhar a construção da narrativa, hein?
Curti o aparecimento mais explícito do nome do protagonista apenas na penúltima página da terceira parte do romance. Ou seja, conhecemos efetivamente a graça da personagem principal no apagar das luzes da leitura. Gostei desse efeito. Esse recurso (revelação da identidade do narrador central no final do livro) até pode não ser tão inovador assim na literatura, mas caiu muitíssimo bem nesta obra. Confesso que já tinha desistido de descobrir o nome do antigo mestre-escola de Conceição de Itororó que virou vendedor de mel na velhice. Achei, inclusive, que ficaríamos sem conhecer sua identificação, o que valorizaria ainda mais suas palavras (o importante não é quem ele é e sim o que ele tem para nos contar). Aí, aos 45 minutos do segundo tempo (ou seria na prorrogação?), vem a surpresa saída da boca do menino Francisco. Maravilhoso! É verdade que o nome do protagonista já tinha aparecido indiretamente no meio do livro em algumas passagens. Todavia, nunca de uma maneira explícita (um exemplo disso pode ser visto na página 174). Ou seja, fala-se o nome do protagonista sem indicar que é o narrador. Pelo menos eu não consegui ligar o tal Manuel à personagem central da trama tão rapidamente. Quem sabe um leitor mais atento e perspicaz consiga, né?
Repare na existência de quatro níveis narrativos em “O Velho e o Menino: o Rio”, sendo dois macro e dois micro. No macro, temos a história do Brasil (factual) e a história de Conceição de Itororó (ficcional com base evidentemente em elementos reais captados pelo autor de sua cidade natal, Areado). Se a primeira parte (contextualização do passado nacional) me pareceu um tanto banal (afinal, já conhecemos de cor e salteado os acontecimentos tragicômicos do nosso país), a segunda parte é deliciosa (os causos do interior de Minas são incríveis!). Eita lugarzinho especial para ter boas histórias, Santo Deus! No micro, as duas linhas narrativas são a trajetória de vida de António José Vieira Vasconcelos de Quental (pai do narrador) e as memórias pessoais de Manuel (o narrador). Ambas as tramas são muito boas e valem a leitura, mas não ganham em colorido e em riqueza literária do relato macro do interior mineiro (esta parte do romance é uma preciosidade!!!).
Há poucos discursos diretos nesse romance, algo que não estamos acostumados a ver com tanta frequência na literatura comercial, geralmente infestada por diálogos e mais diálogos. Afinal, é mais fácil criar uma conversa entre as personagens do que construir uma cena com discurso indireto ou com discurso direto livre, né? Nota-se, portanto, a habilidade de José Carlos Martins na escrita ficcional. Ele desenvolve um texto dinâmico, gostoso e interessante quase sem diálogos. Acredite se quiser: a falta de conversas em “O Velho e o Menino: o Rio” não estraga em nada o bom ritmo narrativo do livro (um perigo para quem não sabe usar bem esse tipo de expediente narrativo).
A contradição entre a trajetória pessoal, profissional, social, econômica e sentimental do protagonista (pouco edificante e quase nada emocionante até mesmo para os padrões interioranos) e a evolução da cidade de Conceição de Itororó (mais transformadora do que o dia a dia de seus habitantes) é uma das sacadas criativas mais legais de Martins em “O Velho e o Menino: o Rio”. Normalmente, acontece o contrário na literatura: a rotina dos moradores é movimentada (cheia de bafafás, escândalos e aventuras amorosas) enquanto o povoado cresce e evolui a passos de tartaruga. Basta vermos boa parte da literatura de Jorge Amado para compreendermos esse tipo de efeito. Contudo, neste romance de José Carlos Martins, temos o oposto, em uma interessante quebra de expectativas. A vida da personagem principal é apagada de grandes feitos e o pequeno município progride (rumo à destruição!). Gostei disso.
Preciso dizer também que os trabalhos de design e de revisão do livro foram certeiros. O projeto gráfico da obra é impactante. A capa é bonita, temos ilustrações lindíssimas na abertura de cada uma das partes do livro (são quase como pinturas em aquarela emulando telas) e há desenhos escondidos entre as páginas (que fazem referência, obviamente, às cenas e à atmosfera do romance). Por fim, não encontrei nenhum grave problema de ortografia ou de pontuação, algo normal de surgir aqui e ali em uma obra com mais de duas centenas de páginas, que não tivesse justificativa. Por exemplo, a opção pela grafia da palavra Deus em minúscula é um tanto lógica. Basta ler o livro para entendermos o porquê dessa decisão. A única coisa que me incomodou um pouco foi a grafia distinta do nome do pai do narrador. Ora ele é descrito como António (ao estilo do português de Portugal), ora aparece como Antônio (como é mais comum no português do Brasil). Não entendi essa falta de padronização para uma das personagens principais de “O Velho e o Menino: o Rio”.
Por tudo isso o que você falou até aqui, Ricardo, quer dizer que este romance de Martins só tem características positivas, certo? Juro que eu ficaria, caro(a) leitor(a) do Bonas Histórias, muitíssimo feliz de responder a tal pergunta com um sonoro e retumbante siiiiiiiiiiim. Todavia, são raras as obras literárias imunes aos defeitos de ordem narrativa. Para ser sincero, desconheço um título que não dê qualquer tipo de margem a questionamentos dos leitores e da crítica literária. Como não seria diferente, “O Velho e o Menino: o Rio” tem também alguns tropecinhos narrativos e estéticos que precisamos apontar nesta análise crítica. Aí vão os mais visíveis!
O principal problema deste livro, na minha visão, é a incompatibilidade do texto do romance com o perfil do narrador-protagonista. Sabe quando a narrativa não combina nem um pouco com quem conta a história?! Pois foi exatamente essa a impressão que tive durante a leitura. Lembremos que quem conta a história ficcional para o leitor não é o autor e sim o narrador. Segundo a Teoria Literária, o escritor é uma figura totalmente distinta do narrador. A personagem principal de “O Velho e o Menino: o Rio” é descrita o tempo inteiro como alguém simples, sem grande erudição e sem formação escolar completa. Ele é fruto do seu tempo (primeira metade do século XX) e de seu local de morada (interior do Brasil, apesar de ter nascido em Portugal).
É verdade que Manuel Vieira Vasconcelos de Quental lia muitos livros e tinha vários motivos para se indignar com a religião. Contudo, onde ele aprendeu a falar inglês e latim? Quando leu os filósofos e religiosos que tanto cita? Onde tinha acesso às notícias do país (em plena Ditadura Militar) para saber o que acontecia de trágico no país na segunda metade da década de 1960? Como pode discorrer sobre os problemas ambientais (em uma época em que pouquíssimos abordavam tal questão) com tanta propriedade como se fosse um cidadão contemporâneo? Como seu vocabulário é tão rico e ornamental? Juro que não entendi esse gap gigantesco entre as características da personagem e as características de seu relato.
Meu palpite é que a narrativa de “O Velho e o Menino: o Rio” combina muito mais com as crenças, as opiniões, a visão de mundo, o repertório linguístico e os conhecimentos idiomáticos de José Carlos Martins (o autor contemporâneo) do que com o perfil de Manuel (o narrador-personagem septuagenário que viveu no interior de Minas e que nos contou sua história em 1970). Infelizmente, esse é um erro crasso que alguns escritores iniciantes cometem. Eles roubam a voz de sua personagem principal e/ou do narrador ao invés de mergulhar no contexto psicossocial da criação ficcional.
Aproveitando que estamos falando das incongruências conceituais do romance, preciso destacar que há um grave problema de realidade ficcional nesta obra. Obviamente, as críticas sociais, ambientais, religiosas e políticas feitas pelo narrador-protagonista são pertinentes e justíssimas. Impossível não concordarmos com elas. Porém, elas não combinam com o contexto narrativo do livro. Como já disse anteriormente, um senhor no interior do Brasil em 1970 não teria elementos tão contundentes para criticar um monte de coisa trazida pelo texto (algo mais simples de ser feito por um indivíduo contemporâneo, por exemplo). Apesar de estar certíssimo em tudo o que apresenta e no que critica (não é esse o ponto que me incomodou, tá?), o protagonista soou inverossímil no contexto da realidade ficcional.
Por falar nisso, há poucos elementos de oralidade na narrativa de Manuel Vieira Vasconcelos de Quental. Para ser mais preciso em meu comentário, diria que eles são inexistentes ou raros. O natural, em se tratando de uma conversa do vendedor de mel com Francisco, seria encontrarmos fortes indícios de oralidade, né? Mas não é o que acontece. Sinceramente não entendi o motivo disso. A narrativa do romance é, indiscutivelmente, elegante, gostosa e profunda. Mas ela não combina com a conversa informal de duas personagens que caminham pelas ruas, algo que o texto se propõe a emular.
É preciso apontar também alguns tropeços de lógica em “O Velho e o Menino: o Rio”. Como os irmãos de Manuel (João Antônio, José Antônio e Maria Antonieta) têm o sobrenome de Isabelita (Vieira Vasconcelos), a falecida esposa de António de Quental, se eles são filhos de outra mulher (Candinha)? Por que o pai do protagonista incorporou o sobrenome da esposa, quando isso não é prática nada comum (é a esposa que incorpora o sobrenome do marido)? Além disso, não entendi o texto da quarta-capa do livro: “(...) Um velho vendedor de mel, sem passado, sem história. O velho anda pela cidade vendendo mel talvez, para completar sua renda ou porque tenha feito isso a vida inteira. Um dia aparece um menino, sem futuro, sem obrigação alguma, que passa a ajudar o velho na sua tarefa”. Reconheço que essa imagem/cena é maravilhosa. Porém, não entendi a menção à falta de passado do velho. Para mim, Manuel tem muuuito passado.
Precisamos falar das várias, várias, várias, várias e várias páginas dedicadas à crítica religiosa em “O Velho e o Menino: o Rio”. Admito que adorei o conteúdo dessa parte do romance. Nota-se que José Carlos Martins caprichou em seus argumentos e na explanação. O texto crítico é elegante, inteligente, convidativo e, por vezes, espirituoso. Impossível não concordarmos com as palavras trazidas pelo livro. O problema é que o autor exagerou. Sabe quando a pessoa se empolga e aí dá mais tinta para um determinado assunto do que seria recomendado? Pois foi o que aconteceu nessa parte. A impressão que tive, em alguns momentos, é que o romance ficou em segundo plano e a publicação ganhou tons de panfleto ateísta. Nada contra o ateísmo em si (que abraço desde a infância com muito ardor!), mas não contamine uma boa narrativa ficcional com crenças (ou descrenças) religiosas de qualquer linha. Novamente fiquei com a sensação de que as opiniões, as crenças e os sentimentos do autor sobre esse assunto poluíram a narrativa de Manuel de Quental (que é quem efetivamente nos conta a história).
Por fim, preciso debater o conflito do romance de Martins. Se notarmos bem, “O Velho e o Menino: o Rio” não tem um conflito forte e bem definido. Só percebi isso no meio da leitura. Aí fiquei me perguntando: qual o grande obstáculo que impede o protagonista de alcançar seus objetivos? Confesso que não encontrei. Somente no final da terceira parte surgiu a questão da construção da barragem, que iria alagar a Fazenda da Cachoeira. Seria esse, então, o conflito do livro? Talvez. Ou a questão seria o sumiço de Francisco, também nas páginas finais? Pode ser. Ou a engrenagem que faz a roda literária girar seria a esperança de que Manuel conseguisse, enfim, uma mulher? Cogitei isso também. De qualquer maneira, a presença de um conflito mais intenso e claro desde o início ajudaria a potencializar a narrativa. É verdade que o tom de crônica da obra (vale mencionar que a crônica é o único gênero narrativo que não exige a presença de um conflito central) é delicioso e é justamente uma das características mais legais deste texto. Por outro lado, a falta de uma definição explícita do conflito pode incomodar os leitores mais ansiosos.
Essas questões atrapalham a experiência literária? Atrapalham sim. Isso quer dizer, então, que o livro de José Carlos Martins é ruim? Não, de forma alguma! “O Velho e o Menino: o Rio” é um romance histórico interessante e saboroso. Seus pontos positivos aparecem em maior número e com mais relevância do que os aspectos negativos (do contrário, não seria comentado aqui na coluna Livros – Crítica Literária, né?). Se ele tivesse recebido um trabalho de edição um pouco mais cuidadoso, seria uma obra sublime. De qualquer maneira, “O Velho e o Menino: o Rio” é um título muito acima da média. Ele tem a capacidade de encantar os leitores que gostam de tramas originais, de narrativas bem escritas, de enredos com um olhar apurado para o passado e de personagens pitorescas. Ah se toda publicação ficcional de estreia tivesse essa qualidade!!!
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