Publicada em janeiro de 2024, a primeira obra ficcional da jornalista e escritora mineira foi inspirada na lenda de um patrimônio histórico e cultural de Resende Costa, cidade do interior de Minas Gerais que serviu de ambientação para o thriller.
Em abril, li “O Túmulo da Desconhecida” (Viseu), o encantador romance de estreia de Janete Helena. A jornalista e escritora nasceu em Resende Costa, a pequena cidade do interior de Minas Gerais que serviu justamente de cenário para a obra ficcional. O mais interessante é que, além da ótima experiência literária que o livro nos proporciona, há um curioso bastidor por trás desta produção narrativa. Utilizando-se das pesquisas históricas sobre um famoso patrimônio cultural de sua terra natal, o tal túmulo de uma mulher desconhecida datado do início do século XX, Janete construiu uma trama envolvente, misteriosa e romântica. Impossível não comentar este título na coluna Livros – Crítica Literária.
Conheci “O Túmulo da Desconhecida” no final de janeiro, época do seu lançamento. De maneira muito simpática, Janete Helena entrou em contato para apresentar seu trabalho. Ter um blog literário me confere o privilégio de conhecer os bons nomes da literatura brasileira contemporânea em primeira (ou segunda, como preferirem) mão. Contudo, naquele momento, admito envergonhado que não li o material com a devida atenção. Parei no final do terceiro capítulo, o suficiente para ver que ele tinha muita qualidade e que merecia uma apreciação posterior. Por isso, apenas comuniquei sua publicação no post dos novos livros de janeiro e fevereiro da coluna Mercado Editorial.
Curioso para conhecer a trama de “O Túmulo da Desconhecida” com mais profundidade, incluí o romance de Janete na minha lista de próximas leituras. Como os leitores mais antigos do Bonas Histórias bem sabem, sou daqueles que têm uma pilha de livros para degustar com calma. E, para espanto de muitos, eu não sossego enquanto não faço a fila andar – ainda estou falando de literatura! Digo andar porque já entendi que será impossível zerá-la. Mal termino um título, já surgem dois ou três, que são incorporados à lista quase que por osmose. Se Xuxa Meneghel via duendes em seu quarto nos anos 1990, eu creio que no meu apartamento há um bando de pequenas criaturas verdes que trazem, enquanto estou dormindo ou batendo perna na rua, novas obras ficcionais e as empilham na minha estante (e no meu Kindle). Aí quando vou ver, a situação fugiu do controle.
De qualquer forma, três meses mais tarde (do lançamento de “O Túmulo da Desconhecida” e não da suspeita da ação sorrateira dos duendes), me vi preparando a mochila para uma viagem de alguns dias para Montevideu. Sabendo que o deslocamento da Argentina, onde vivo, para o Uruguai demandaria algumas horas de ferry e estrada, tratei logo de rechear a bagagem com boas publicações ficcionais. Sou daqueles que tira algumas roupas da mala só para conseguir colocar mais brochuras. E, felizmente, essa opção se mostrou mais uma vez extremamente produtiva. As duas melhores obras lidas na viagem de abril renderam posts para a coluna Livros – Crítica Literária! E para quem pensou em “A Uruguaia” (Todavia), a espetacular novela de Pedro Mairal, aviso que, infelizmente, não havia tchutchuquinha uruguaia nem punhado de dólares me aguardando no outro lado do rio.
Por falar em análises, em maio, comentei “Amor Segundo Buenos Aires” (HarperCollins), o delicioso romance do paranaense Fernando Scheller. Agora é a vez de tratar da segunda boa surpresa daquela jornada pelo Rio da Prata, o thriller de Janete Helena. Para comentar com mais propriedade este título, o reli na semana passada – dessa vez no sossego do lar no bairro portenho de Saavedra. Curiosamente, achei esta obra ainda melhor nessa releitura. Se antes já havia gostado da sua história e da sua estrutura narrativa, agora confesso ter adorado. Como diria Raul Gil, é preciso tirar o chapéu para este trabalho literário de Janete.
Lançado em janeiro de 2024, “O Túmulo da Desconhecida” é um mistério protagonizado por Luísa, uma jornalista paulistana que viaja ao interior de Minas Gerais para receber uma herança. Junto com o belo casarão deixado por um parente distante, a moça ganha de brinde antigos segredos familiares para desvendar. O mergulho pelo passado da bisavó materna também levará a protagonista a procurar respostas sobre um intrigante jazigo não identificado no cemitério local.
A ideia do suspense dramático surgiu quando Janete Helena trabalhava na Secretaria de Cultura de Resende Costa, cidade conhecida como a Capital Mineira do Artesanato Têxtil. Em 2021, ela atualizava as fichas de bens inventariados do município. Foi aí que se deparou com o mistério em torno de um túmulo em particular. A identidade da sepultada era desconhecida, apesar do rigoroso livro de registros do cemitério e da paróquia. O jazigo chamado de “O Túmulo da Jovem Desconhecida” virou um patrimônio histórico e cultural da localidade e sempre alimentou várias lendas urbanas. Afinal, quem fora enterrada ali e por que os segredos sobre seu nome e sua biografia jamais foram revelados?! Nascia, assim, as bases do enredo de “O Túmulo da Desconhecida”.
A versão mais aceita para a história real da famosa defunta de Resende Costa, mito que fora transmitido oralmente ao longo do último século, diz que se tratava de uma jovem de 15 anos. Após ajudar na construção do cemitério, ela fora a primeira a ser sepultada ali. Como o local acabara de ser entregue à população, a usuária debutante não foi devidamente registrada. Com o passar dos anos e o rigoroso controle dos demais enterros, aquela primeira e única personalidade não identificada ganhou ares de mistério. Até hoje ninguém sabe quem ela foi exatamente. A própria teoria de que se trata de uma moça de 15 anos é imprecisa – é só a hipótese mais aceita atualmente. Aproveitando-se da falta de fontes e da indefinição do caso, Helena criou sua própria (e fictícia) versão da trama.
A escritora mineira concebeu a história do romance em uma tarde. Contudo, levou dois anos para amadurecer a ideia e colocá-la no papel. O tempo de maturação ajudou na resolução dos aspectos práticos da narrativa ficcional. Por exemplo, o nome da personagem principal é uma homenagem à Luísa, a arquiteta que trabalhava com Janete na atualização das fichas da Secretaria de Cultura. A profissão e a personalidade da protagonista foram inspiradas na própria realidade da autora. Para completar, as demais figuras ficcionais foram criadas a partir de elementos de pessoas verídicas e a ambientação da obra tem como referência direta Resende Costa, apesar de o município não ser identificado no thriller. Quem está no meio literário sabe que a combinação entre ficção e realidade é infalível quando utilizada por mãos (e mentes) habilidosas.
Assim, quando se sentou para colocar a trama no papel, em janeiro de 2023, a romancista mineira já sabia exatamente o que iria produzir. Só o desfecho saiu diferente do que havia imaginado previamente. Não por acaso, finalizou o texto em apenas duas semanas e meia. Concluída esta parte do projeto editorial, começou o desafio de achar uma editora para publicar “O Túmulo da Desconhecida”. Depois de alguns contatos, Janete Helena optou pela Viseu, editora paranaense fundada em 2011 e que atua com autopublicação. A revisão textual foi feita pela própria escritora e a capa foi criada por um amigo tatuador. Tanto a narrativa quanto o projeto gráfico me pareceram impecáveis.
Graduada em Recursos Humanos pelo Instituto Federal Sudeste de Minas Gerais (IF Sudeste-MG), Janete trabalha como jornalista e, agora, escritora. Colaborando com diversos veículos de comunicação de Minas, ela produz crônicas e contos há alguns anos. Sua paixão pela escrita vem desde pequena. Aos nove anos, já tecia seus primeiros textos ficcionais. Contudo, só agora enveredou pelas narrativas longas. “O Túmulo da Desconhecida” é, como já disse, seu primeiro romance.
O resultado positivo do material e os feedbacks do público empolgado têm estimulado a romancista a seguir com novas publicações. Felizmente, ela cogita transformar o livro de estreia em uma série literária e se sente mais encorajada a lançar coletâneas de crônicas nas livrarias. Contudo, ainda não há nenhuma definição clara sobre seus próximos passos na literatura. A única certeza é que, aberta a porteira, virão mais obras por aí.
O enredo de “O Túmulo da Desconhecida” inicia-se nos primeiros meses de 2020. Luísa é uma jornalista paulistana de 40 anos que recém concluiu o doutorado. Cansada do trabalho acadêmico que a consumiu nos últimos anos, a protagonista do romance pede licença da função de professora universitária e interrompe momentaneamente os jobs como escritora freelancer. Sua ideia é sair em um período sabático. Como vive sozinha e conseguiu economizar, a proposta é passar os próximos meses viajando de carro pelo Brasil. Assim, acredita que conseguirá conhecer o país natal.
Colocando o plano em prática já em janeiro, Luísa ruma pelas estradas do Sul. Contudo, após o Carnaval, a moça recebe uma mensagem inusitada que a faz mudar completamente os planos da viagem. A correspondência informa que ela recebeu uma herança no interior de Minas Gerais. Um parente distante que ela jamais ouvira falar morreu e deixou uma casa no testamento. Intrigada com tal situação, Luísa muda em 180 graus o trajeto e volta para o Sudeste.
Chegando à pequena cidade incrustada no alto das serras mineiras, ela se encanta com a beleza e o bucolismo da localidade. O povoado, conhecido como a Capital Estadual do Artesanato Têxtil, é minúsculo, mas tem seu charme. Instantaneamente, a forasteira se torna alvo da curiosidade dos moradores. O que uma paulistana solteirona e independente estaria fazendo naquelas terras?!
Sem se importar com olhares, comentários e perguntas dos bisbilhoteiros de plantão, Luísa procura se inteirar da herança. Dessa maneira, descobre que é dona de um belíssimo casarão centenário no Centro do município. Quem deixou o imóvel foi Gervásio, um tio que nunca fora citado pelos familiares. As surpresas não param por aí. Quando conhece a casa por dentro, Luísa descobre que a bisavó Rosária trocou cartas por anos e anos com o tal Gervásio. A correspondência da bisa está guardada em muitas caixas em um cômodo. Curiosa, a jornalista veste a carapuça de historiadora e começa a ler o material. Há ali um grande mistério. Por que Rosária fugiu em 1922 e nunca comentou sobre o passado vivido no interior de Minas com a família em São Paulo? Por que nunca voltou à terra natal se sentia tantas saudades? E porque manteve escondida da filha, da neta e da bisneta a intensa correspondência com Gervásio?
Enquanto investiga lances mal resolvidos do passado familiar, Luísa também se vê fascinada por outro enigma. Na pequena cidade serrana, há o túmulo de uma mulher desconhecida. No cemitério, aquela é a única lápide que não possui qualquer identificação. Em contradição à carência de informações da falecida, os moradores do povoado ainda prestam homenagens para a misteriosa morta. Até hoje ela é reverenciada pela população, mesmo tendo o nome e a história ocultados. Inclusive, reza-se missa aos domingos para ela e se cria teorias de quem teria sido. Já que está desbravando a história da bisavó, Luísa se sente encorajada a procurar também explicações para o maior enigma daquela aprazível cidadezinha.
O que a protagonista de Janete Helena não poderia imaginar é que os dias passados no interior de Minas Gerais fossem se tornar tão intensos. Em poucas semanas, a protagonista se enturma com Joana, a dona do bar, Jacira e Tonho, os proprietários da pousada, Geraldo, o fofoqueiro mor da praça, e Renato, o cozinheiro do bar de Joana. Para uma mulher solitária de uma metrópole, fazer amizade tão sincera e rapidamente é um feito notável. Ao mesmo tempo, Luísa se sente mal na presença de Egídio, o dono do cartório, e do Cabo Torres, o policial.
O que torna a situação mais delicada é a eclosão da pandemia da Covid-19 no final de março de 2020. A grave calamidade sanitária fecha municípios e inviabiliza deslocamentos pelo país. Encantada com a cidade mineira, com a casa herdada e com as amizades feitas, Luísa já não tem mais pressa de ir embora e voltar para a estrada. Ela quer descobrir todos os segredos que insistem em desafiá-la. Guiada pela curiosidade e pela intuição, a paulistana aprofunda as investigações sobre o passado da bisavó e as imprecisões do cemitério local.
Li “O Túmulo da Desconhecida” em duas sessões que totalizaram aproximadamente três horas. Comecei a leitura ao embarcar no Buquebus em Buenos Aires, no porto fluvial de Porto Madero, e a concluí quando estava chegando de ônibus à Montevideu. Só não devorei esta obra em uma única batida porque precisei sair do ferry em Colônia do Sacramento e pegar o ônibus que seguiria para a capital uruguaia. Se não fosse esse vai-e-vem burocrático, acho que teria ido da capa à contracapa de uma vez só.
O livro possui 186 páginas e está dividida em 16 capítulos, sendo introdução, 14 capítulos numerados e epílogo. Há também o prefácio de Samantha Magalhães. Por sua extensão, este título de Janete Helena pode ser classificado tanto como um romance (narrativa longa) quanto como uma novela (narrativa mediana). É aquela velha dúvida: ele seria um romance breve ou uma novela estendida?! Como a autora e a editora o chamaram de romance, quem sou eu para falar algo diferente, né?
Para começo de análise, é preciso dizer que “O Túmulo da Desconhecida” é uma obra deliciosa. Seu texto é elegante e a trama é bastante envolvente. Considerei essa publicação ótima para a sessão de leitura noturna, como companhia literária numa viagem rápida e para a diversão ficcional num final de semana de chuva e frio. Curiosamente, essas três situações foram os motivos das minhas leituras – a prévia de checagem em janeiro, a principal em abril e a releitura em julho. Cada vez mais aprecio livros que entregam tudo de maneira rápida e ágil sem enrolação nem frescura. Juro que fiquei com gosto de quero mais, principalmente na viagem para o Uruguai. Meu pensamento naquele momento foi: “que pena que não tenho outro romance com essas características e dessa autora na minha mochila para o restante da estrada!”.
A estrutura narrativa de “O Túmulo da Desconhecida” é convencional e adequada. Escrevo isso como um elogio à Janete Helena. No meu trabalho de crítico literário e de editor de ficção, encontro uma enorme quantidade de autores iniciantes que tentam reinventar a roda da literatura e se perdem no meio do processo. Depois de desmontarem todas as peças dos romances, como se isso fosse genial, não sabem montá-lo. Aí o resultado é geralmente assustador, quando não trágico. Ainda bem que Janete teve a maturidade e a competência de impactar positivamente os leitores com um romance que não procurou inovações estéticas. Quando se tem uma história forte em mãos, ótimas personagens, um bom conflito, uma belíssima ambientação e, claro, o dom da narrativa, por que não os apresentar no formato padrão, hein? Foi o que a autora mineira fez com enorme brilhantismo.
Por isso, a sensação é de que todas as partes de “O Túmulo da Desconhecida” estão no seu devido lugar. Repito: isso é algo que parece fácil de fazer na teoria, mas que na prática não é tão simples de ser executado. Tente você escrever um livro de 200 páginas para sentir o quão difícil é organizá-lo! Por ser um romance de estreia, seria natural encontrar aqui e ali alguns equívocos de ordem narrativa ou mesmo de estrutura. Porém, Janete Helena tira de letra o desafio da produção ficcional e entrega excelentes cenas, suspense na medida certa e emoção do início ao fim. Confesso que fiquei fã do seu estilo literário.
O que mais gostei em “O Túmulo da Desconhecida” foi a variedade de gêneros literários abordados. Essa publicação é, ao mesmo tempo, um romance policial, um drama familiar, um suspense pandêmico, uma comédia romântica, uma narrativa histórica, um thriller de terror e um mistério com tintas contemporâneas. Como diriam os novinhos: tudo junto e misturado! Adorei essa mescla estilística. Indubitavelmente, o enredo fica ainda mais saboroso com esse mix de ingredientes. Por qualquer perspectiva que vejamos este livro (eu o definiria como um thriller histórico com generosas doses de comédia romântica), temos uma ótima experiência literária.
Falando apenas dos elementos da narrativa ficcional, adorei principalmente a ambientação e a construção das personagens. Sobre a ambientação especificamente, ela está impecável. O clima de mistério, o choque cultural, a desconfiança e o incômodo da moça da cidade grande que vai para o interior de Minas são contagiantes da primeira à última página. É válido notar que a sensação de mal-estar é mútua: tanto de Luísa com os olhares dos moradores do povoado interiorano quanto dos habitantes locais em relação à postura e ao comportamento empoderado da forasteira.
Como vivi mais de um ano numa pequena cidade de Minas Gerais (que saudades, meu Deus!), sei que isso acontece MESMO. Dos vários locais do Brasil em que morei, certamente os mineiros foram os mais desconfiados (quase escrevi ressabiados) com as intenções deste paulistano que por lá apareceu sem maiores explicações e sem pedir qualquer consentimento. Juro que, em várias cenas de “O Túmulo da Desconhecida”, me enxerguei na pele de Luísa. Essa parte da narrativa está extremamente verossímil e tocante. As cenas em que a protagonista é medida de cima a baixo pelos moradores curiosos me fizeram lembrar de quando passei (algumas vezes) por situações idênticas. Incrível como as páginas da ficção podem, nas mãos de autores habilidosos, imitar a vida real. De tão fidedigna que é Luísa, admito que pensei que Janete fosse uma escritora e jornalista paulistana que viveu efetivamente o que narra.
A força da ambientação não está apenas na verossimilhança do cenário. A sensação, durante a leitura, é de estarmos mesmo fazendo a viagem com a personagem ficcional pelos recôncavos de Minas Gerais. Esse talvez seja o grande mérito do romance e o ponto mais difícil de ser obtido. Ao longo dos capítulos de “O Túmulo da Desconhecida”, vemos a paisagem, ouvimos os sons, sentimos os cheiros, provamos as comidas, apreciamos o sotaque, respiramos a atmosfera local, passamos frio da serra e assistimos ao conservadorismo do rincão do país. Ou seja, entramos de corpo e alma nesta trama. Falo sobre isso sem medo de parecer exagerado. Eu estava fisicamente em outro país (em alguns momentos, para ser mais preciso, estava na fronteira de duas nações vizinhas ao Brasil) e juro que me senti novamente na querida e inconfundível Minas. Incrível!
Adorei também a construção das personagens do romance. Ao mesmo tempo em que são figuras alegóricas (a simpática proprietária da pousada, o policial mau, o cara interesseiro do cartório, o fofoqueiro da praça, a divertida dona do bar, o pinguço alegre, a forasteira emancipada etc.), as criações ficcionais de “O Túmulo da Desconhecida” têm várias particularidades bem acentuadas. Prova disso é que é (quase) impossível confundir as personagens durante a leitura. Uma vez que foi apresentado a elas, o leitor saberá exatamente quem é quem até o final do livro.
Ainda nessa seara, outra questão que precisa ser elogiada é o uso dos apelidos e a ausência de sobrenomes das personagens na maior parte da trama. Esse recurso demonstra a informalidade e a proximidade do estilo de vida no interior de Minas. Juro que consegui visualizar na minha frente as principais figuras retratadas nesta obra. Elas são muito, muito reais, o que até nos faz pensar: “essa história é realmente verdadeira?!”; “essa trama aconteceu mesmo?”; e “essa gente foi inspirada em indivíduos de carne e osso?”. Acho que uma boa narrativa ficcional é justamente aquela que embaralha as linhas entre realidade e inventividade literária. Mais um ponto elogiável para o trabalho narrativo de Janete Helena.
“O Túmulo da Desconhecida” tem ótimas cenas. É até difícil dizer quais são as melhores. Notamos a maturidade literária da autora mineira justamente nas escolhas do que encenar e do que sumarizar. Quando não se efetua boas escolhas nessa área, ou o romance se torna gigantesco e/ou ele fica com ritmo lento. Repare que não é o que acontece aqui. Temos uma narrativa ágil e um tamanho até econômico de páginas. Por isso a sensação de que ocorre muitas coisas nos capítulos.
Eu, por exemplo, adorei o início. De maneira rápida, lúcida e bonita, a autora apresenta a protagonista, a viagem para Minas Gerais e o contexto da trama. Quando o leitor vê, já está envolvido com o enredo, conhecendo boa parte das personagens e ávido por saber o desfecho. Como estamos falando de um thriller, o texto precisa ser ágio e certeiro para prender a atenção do público. É exatamente o que ocorre nessa publicação.
Não é só o início do romance que é muito bom. O final também é espetacular. Não por acaso, essas são as duas melhores partes de “O Túmulo da Desconhecida”. O desfecho é sensível e lógico. Para não dar o spoiler (não cometemos esse sacrilégio na coluna Livros – Crítica Literária nem nas demais seções do Bonas Histórias), posso dizer que a brincadeira de misturar os diferentes planos literários (livro dentro do livro) foi uma excelente sacada (e foi muito bem executada). Gostei tanto desse recurso que achei que ele poderia ter sido mais explorado (conforme vou explicar mais à frente).
Fazia tempo que não lia (e olha que leio bastante) uma história ficcional ambientada no período da pandemia da Covid-19. Por mais que tenhamos vivido há pouquíssimo tempo a crise de saúde pública mais grave do último século, esse período deixou de ser abordado na literatura comercial. Não sei o motivo desse silêncio. O que posso afirmar é que Janete Helena fez muito bem ao usá-lo como contexto de sua trama. Se o enredo já tinha elementos de suspense e terror suficientes para agradar aos leitores mais exigentes, a pitada de drama extra trazida pela pandemia do novo coronavírus potencializou ainda mais o conflito do romance.
Por falar em Covidão, outro elemento curioso é que as personagens centrais da trama propagam a importância do distanciamento social (para prevenir o contágio do vírus, claro), mas adoram fazer encontros desnecessários no meio da pandemia. Chega a ser hilária essa contradição entre discurso e prática. Se bem que o livro é muito convincente ao explicar que é baixo o risco da maior proximidade entre as pessoas – a cidadezinha não tinha casos de Covid e se tornou uma ilha sanitária. Por isso, achei esse detalhe do enredo mais uma contradição das próprias personagens (algo perfeitamente real: atire a primeira pedra quem nunca...) do que algum problema mais grave da trama. É a cara do Brasil e dos mineiros do interior essa avidez por se encontrar e prosear, seja no meio de uma pandemia, seja no meio de uma guerra nuclear.
Por mais prazerosa que seja a leitura de “O Túmulo da Desconhecida”, preciso reconhecer que o livro possui alguns pontos a melhorar. Ainda bem que não é nada que prejudique a qualidade geral da obra. Mesmo assim, são aspectos que os leitores mais atentos irão notar e que eu não poderia deixar de comentar neste post da coluna Livros – Crítica Literária.
Em relação aos aspectos que poderiam ter sido mais bem trabalhados, começo relatando que constatei alguns erros de foco narrativo. O narrador em terceira pessoa é colado à protagonista. Assim, ele tem acesso aos pensamentos, sentimentos e história de vida de Luísa. Até aí beleza – não há problema nenhum nessa característica. Contudo, ele também acaba acessando pensamentos e sentimentos de outras personagens, inclusive de alguns coadjuvantes. E o que é pior, por vezes, o narrador abandona a protagonista para seguir outras pessoas em cena. Confesso que achei isso um tanto esquisito. Para uma leitura recreativa, obviamente, não tem problema nenhum o maior alcance da interferência e a extensão da ação do narrador. Entretanto, pela perspectiva da Teoria Literária, trata-se de um erro crasso (ou, no melhor dos casos, uma escorregadinha perigosa) de foco narrativo.
O conflito é forte e interessante. Isso é inegável. Só achei que o mistério, a essência de um bom thriller, demorou um pouco para aparecer nas páginas de “O Túmulo da Desconhecida”. Por exemplo, o jazigo misterioso que dá origem ao título do romance só surge quando percorremos mais de um terço da obra – tempo excessivo em uma época com leitores tão ansiosos e imediatistas. Acredito que usando algumas técnicas mais sagazes da ficção literária, a autora poderia ter tornado o começo da obra ainda mais dinâmico e instigante. Do jeito que está, os capítulos de abertura priorizam a sumarização à encenação e a apresentação da protagonista ao conflito. A inversão da lógica narrativa nessa etapa (mais encenação e conflito e menos sumarização e apresentação didática) potencializariam o suspense já no pontapé inicial da trama.
Se bem que é complicado falar de qualquer tipo de mudança na parte de abertura deste livro. Gostei tanto dele! Por isso, pode parecer até meio amalucado esse debate que estou propondo. Apesar de o conflito demorar para surgir, ainda assim a leitura me prendeu bastante. É engraçado comentar essa contradição do meu ponto de vista. Não foi necessário atirar o drama principal de Luísa logo de cara para que o enredo de “O Túmulo da Desconhecida” se tornasse atraente e convidativo. Pelo contrário. Somos envolvidos pela atmosfera e pela história de outra maneira. Se essa foi a intenção de Janete, reconheço que os primeiros capítulos estão impecáveis e não está mais aqui quem palpitou diferente.
O que não dá para relativizarmos são os errinhos de lógica narrativa que aparecem aqui e ali no romance. Talvez o mais sensível seja o vacilo do ordenamento das cartas da bisavó de Luísa. A narrativa informa que a correspondência de Rosária está organizada cronologicamente e é dessa maneira que a protagonista as lê. Contudo, esse material é apresentado de maneira aleatória aos leitores do romance. Como foi possível essa contradição temporal? Juro que não entendi. Repare que não é um problema que estrague a experiência literária. É mais um detalhe que causa estranhamento nas almas mais observadoras.
Pode parecer presunção minha (sou um paulistano da gema que mora na Argentina há um ano) questionar o discurso de “O Túmulo da Desconhecida” (feito por uma autora mineiríssima), mas achei as falas das personagens com pouca mineiridade. É delicado tratar dessa questão pois sempre me encantei com as particularidades do linguajar de Minas Gerais (principalmente do interior). Inclusive, continuo usando diariamente algumas expressões típicas desse pedacinho do Brasil: “bão”, “trem”, “não é coisa de Deus”, “tô besta”, “logo ali” e “nó/nú”. Não é preciso dizer o quão desesperador deve ser essa combinação idiomática para meus amigos argentinos (beso, Paola!). Vejo que eles não entendem ABSOLUTAMENTE NADA do que digo nessas horas! Sim, senhoras e senhores, tasco normalmente essas expressões no meio das conversas em castellano rioplatense – uma espécie de “mineiñol”, que só eu acho que faz sentido.
É bom destacar que os mineiros têm um jeito próprio de se expressar que é quase uma marca cultural. Quando morava em Minas, adorava prosear com quem tinha o sotaque mais carregado e o vocabulário local na ponta da língua – e olha que eu nunca fui muito chegado em jogar conversa fora. Porém, ao ler o romance de Janete Helena, não encontrei essa riqueza linguística nos diálogos. Há pouquíssimas expressões da oralidade do Estado em “O Túmulo da Desconhecida”. Talvez a única personagem que puxasse mais o mineirês tenha sido Tonho, o marido da proprietária da pousada onde Luísa se hospedou. Toda vez que ele abre a boca é um espetáculo. Explorar a mineiridade no discurso, sem cair na caricatura ou no exagero, tornaria o livro ainda mais fidedigno e expressivo. Da maneira como está, a sensação é que as personagens criadas por Janete Helena poderiam ser de qualquer parte do país. A mineiridade acabou expressa em outros elementos da narrativa. Aí não há o que contestar.
Ainda tratando dos diálogos, acho que eles estão em um nível um pouquinho abaixo da narração (essa sim impecável!). Em alguns momentos, senti que personagens diferentes diziam as mesmas coisas com os mesmos termos e expressões, algo que não fica legal em uma trama ficcional com este nível de qualidade. As pessoas até podem ter opiniões e pontos de vista semelhantes, mas certamente os expressariam de maneiras distintas.
Como todo bom thriller dramático, “O Túmulo da Desconhecida” reserva muitas surpresas. Impossível não gostarmos do seu tom de mistério. É legal notar que são vários os segredos que são revelados apenas nos últimos capítulos, o que potencializa a experiência de leitura. O problema, na minha visão, é que algumas revelações são um tanto óbvias. Confesso que matei facilmente algumas charadas propostas pela obra, principalmente as iniciais. Em alguns casos, tratou-se da primeira hipótese que cogitei – algo que raramente acontece nos melhores suspenses, pois nunca acerto os palpites.
Para minha perplexidade, as personagens do livro não pensaram igual a mim e tascaram frases como: “nunca pensamos nisso!”, “que surpreendente!” e “como foi possível isso acontecer?!”. Tive vontade de perguntar para elas: “É sério mesmo que vocês não consideraram essa possibilidade?! Ela é tão óbvia!”. Para ser justo em meu comentário, preciso dizer que as últimas revelações do romance são surpreendentes – aí não passei perto de adivinhá-las.
O elemento que mais me incomodou no livro de Janete Helena foi disparado a postura pouco verossímil de Luísa em relação às cartas da bisavó. Sobre esse assunto, foram vários os inconformismos. Em primeiro lugar, jamais alguém com uma postura investigativa (seja jornalística, histórica ou acadêmica) delegaria a leitura do material bruto para amigos e conhecidos. Por mais interessante que tenha sido para o romance o fato de Luísa compartilhar a leitura do material com a trupe mineira (são divertidas as sessões de leitura coletiva na nova casa da moça!), na realidade ela jamais terceirizaria essa atividade.
Se a protagonista estava realmente curiosa para descobrir as origens familiares, ela leria TUDO! TUDINHO!!! Não faz o menor sentido alguém que nutri devoção por um conteúdo dividir a leitura do material com outras pessoas. É a mesma coisa de eu dizer: estava gostando tanto de tal romance que, quando saí para comprar pão na padaria (no caso, medialunas en la panadería), deixei minha namorada lendo o livro no meu lugar. Não tem lógica! Além disso, não me pareceu que a quantidade de cartas exigiria tantas horas, dias e semanas de análise, como mostrado na narrativa ficcional.
E o que dizer, então, dos sustos e do pânico de Luísa com as descobertas do passado da família, hein? Achei a reação da moça (uma mulher cosmopolita, moderna, empoderada, madura e inteligente) um tanto exagerada e fora de contexto. Essa talvez seja a melhor definição do meu sentimento sobre esse assunto: a reação de Luísa é exagerada, infantil e, por isso mesmo, inverossímil.
Como assim? Vejamos. Ela ficou várias semanas aflita para descobrir o conteúdo das cartas que faltavam do material coletado. Até aí tudo bem. Eu e os leitores também ficamos curiosos. O que ela faz quando realmente descobre o conteúdo misterioso que tinha desaparecido? Nada. Ela vai tomar um banho na cachoeira para relaxar ao invés de mergulhar na leitura do material. Ou prefere dormir porque está muito cansada. O quê? Impossível. Em condições normais de temperatura e pressão, a protagonista devoraria o material recebido sem respirar.
E quando, enfim, poderia ler as cartas uma vez que voltou para casa e está descansada, Luísa não lê. Quem lê são os amigos e o namorado. Não, não e não! Isso é inverossímil, senhoras e senhores. Não tem o menor cabimento. Admito que esse foi o principal vacilo de “O Túmulo da Desconhecida”, algo que me decepcionou profundamente. Uma autora que construiu uma narrativa tão correta e interessante até o clímax poderia muito bem ter encontrado outras soluções ficcionais para alongar o suspense no desfecho da obra, né? Achei que faltou um melhor trabalho de edição nessa parte final. Mesmo tendo ficado perplexo com essa escolha narrativa, ainda continuo batendo na tecla: o desfecho é ótimo. Se não é perfeito, ainda assim é excelente.
Por fim, tenho mais um ponto a comentar. Não se trata, provavelmente, de um ponto negativo da obra e sim algo que vejo que poderia ter sido feito de outra maneira. As cartas que Rosária enviou para Gervásio me parecem tão interessantes, mas tão interessantes que mereciam um maior destaque na narrativa de “O Túmulo da Desconhecida”. Ou seja, ao invés de apenas acompanharmos as reações das personagens contemporâneas à leitura do material e ver algumas poucas linhas das missivas (um ou outro trecho são realmente mostrados aos leitores), acredito que poderíamos ter acessado diretamente as partes mais significativas da correspondência.
Assim, veríamos juntamente com Luísa e seus amigos as angústias e as emoções do texto investigado (e talvez concordássemos com suas reações mais passionais). Para completar, o romance ganharia um novo componente de intertextualidade literária: outro livro dentro do livro (o que conversaria perfeitamente com o desfecho proposto pela autora). Achei essa uma oportunidade perdida ou, no menor dos casos, uma excelente parte dramática não tão bem aproveitada pela história.
Como falei, mesmo com esses aspectos a melhorar (a maioria deles, reconheço, é de pontos subjetivos e menores), é inegável que “O Túmulo da Desconhecida” seja um livrão e proporcione uma ótima experiência literária para quem gosta de boas histórias. Mais legal do que o enredo e a trama em si foi ter tido a oportunidade de retornar, mesmo que por três horinhas, para o inesquecível interior de Minas Gerais. Por isso, o meu muito obrigado a Janete Helena pela viagem agradabilíssima pelo cantinho do Brasil que mais amo.
Gostei tanto deste romance que, quando a autora mineira lançar seus próximos romances, algo que tenho certeza de que irá acontecer em breve (do contrário, seria um desperdício de talento), não vou mais ficar enrolando para lê-los. Afinal, que vergonha falar disso na coluna Livros – Crítica Literária, minha fila de leituras tem alguns autores com certos privilégios. Eles passam na frente dos demais sem qualquer cerimônia. A partir de agora, saibam que Janete Helena está nesse hall de leituras prioritárias.
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