Publicado em janeiro de 2023, o drama psicológico do autor mineiro retrata a trajetória de vida de um anti-herói contemporâneo e com traços bem brasileiros.
Em janeiro, recebi gentilmente de José Carlos Martins o livro “O Menino Amarrado ao Manacá” (Publicação independente), seu segundo romance. Como já tinha lido (e adorado!) “O Velho e o Menino, o Rio” (Cria Editora), a obra de estreia do autor mineiro – inclusive fiz a análise completa dela no Bonas Histórias –, tratei logo de conhecer a nova publicação. E qual foi a minha surpresa ao descobrir que Martins produziu um título ficcional ainda melhor do que o primeiro. Se “O Velho e o Menino, o Rio” possui uma trama sensível, bonita e impactante, “O Menino Amarrado ao Manacá” é uma pequena obra-prima da literatura brasileira contemporânea. Digo pequena porque seu tamanho está justamente entre a novela e o romance. Eu o classifiquei como romance (narrativa longa), mas não seria errado vê-lo como uma novela (narrativa média). Tudo depende do ponto de vista.
O que parece unânime é a qualidade elevada do novo texto de José Carlos Martins. Falei sobre isso quando apresentei, em fevereiro, na coluna Mercado Editorial, os livros que foram lançados no Brasil no primeiro bimestre de 2023. Obviamente, destaquei “O Menino Amarrado ao Manacá” na lista das melhores novidades que chegaram às livrarias nacionais no comecinho do ano. Os leitores mais assíduos e atentos do blog deverão se lembrar que prometi, naquela oportunidade, a análise detalhada de “O Menino Amarrado ao Manacá” na coluna Livros – Crítica Literária. Aqui vai justamente o post prometido. Sei que demorei um pouco para cumprir a promessa (havia uma sequência de títulos programada para o debate). Antes tarde do que nunca, né?
Por falar em atraso (prefiro o termo “prazo alongado de entrega”...), nos próximos meses vou comentar no Bonas Histórias duas obras ficcionais que estou devendo para vocês: “Deixe a Música Contar” (Sete Autores), a novela musical de Roberto Marcio, e “A Contra-história” (Valentina), o terceiro volume da série “A Contrapartida” de Uranio Bonoldi. Minha ideia é publicar a análise desses bons livros em julho e setembro, respectivamente. Reparem que aos poucos vou pagando minhas dívidas. A frase anterior é mais abrangente do que vocês podem imaginar... Brincadeirinha! Ou não.
José Carlos Martins nasceu em Areado, Sul de Minas Gerais. Em sua cidade natal, o escritor viveu até o final do ensino médio. Para ingressar na graduação, ele se mudou para Guaxupé, onde cursou Filosofia no seminário diocesano e onde se formou em Letras na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Guaxupé (FAFIG). Depois de concluído os estudos, José Martins retornou para Areado e lecionou por doze anos. Foi nessa época que ele se casou com Marciana Prado Martins, bancária que se aposentou recentemente, e teve duas filhas: Lara Prado, atriz, e Lívia Prado, tradutora e revisora.
Em 1993, Martins resolveu fazer grandes mudanças em sua trajetória de vida. Ele foi morar em Alfenas para estudar Direito na Universidade de Alfenas (UNIFENAS). Com o diploma em mãos, ele trabalhou por 25 anos na Vara do Trabalho daquela cidade de Minas. Ao se aposentar em julho de 2018, José Carlos tomou duas importantes decisões: permanecer vivendo em Alfenas; e se dedicar à produção literária, paixão antiga que ficara adormecida por esses anos todos.
E pelo visto, José Carlos Martins está trabalhando intensamente no novo ofício. O romance “O Velho e o Menino, o Rio” foi lançado em setembro de 2022 pela Cria Editora, uma casa editorial de Alfenas especializada em literatura infantojuvenil. E em janeiro de 2023, recebemos seu segundo livro ficcional, “O Menino Amarrado ao Manacá”. Dessa vez, a opção do autor foi pela publicação independente (desvinculada de uma editora formal). Para tal, ele contou com a assessoria da LC Design & Editorial, braço da LC Agência de Comunicação que presta uma série de serviços editoriais: revisão, ilustração, design de capa, desenvolvimento do projeto gráfico da obra, diagramação, coordenação editorial, ficha catalográfica, obtenção do ISBN, impressão gráfica e conversão do texto em livro digital.
Provando que abraçou com entusiasmo a profissão de escritor ficcional, José Carlos Martins está preparando sua terceira publicação. Trata-se de “O Menino Chicão e o Gato Vicente”, sua estreia na literatura infantil. Esse título está na fase final de desenvolvimento e deve chegar às mãos do público em breve. Se tudo sair dentro da programação prevista, o autor mineiro deverá ostentar a incrível marca de três livros lançados em apenas um ano (setembro de 2022 a agosto de 2023). Além da invejável quantidade de obras recém-publicadas, o que é admirável nessa primeira leva de títulos literários é a qualidade das narrativas. Para isso, vamos debater com mais profundidade o romance que foi lançado em janeiro por Martins. Afinal, estamos na coluna Livros – Crítica Literária, né?
Em “O Menino Amarrado ao Manacá”, acompanhamos o relato em primeira pessoa de Francisco das Chagas Marins Filho. O narrador-protagonista é uma espécie de anti-herói. Ele conta sua trajetória de vida recheada de polêmicas, crimes, mágoas, amores e desamores. Ou seja, ficamos conhecendo seus trambiques e suas traições. Na verdade, as palavras de Francisco não são dirigidas diretamente aos leitores do livro. A personagem principal de José Carlos Martins conversa o tempo inteiro com uma mulher, que ele chama apenas de doutora.
A impressão que tive é que Francisco fala com uma advogada, uma delegada, uma juíza ou mesmo uma psicóloga. Não podemos saber com precisão quem é a pessoa com quem ele conversa, já que temos acesso única e exclusivamente às palavras do narrador (ele não detalha quem é a tal doutora). Por falar nisso, achei interessantíssimo o efeito desse expediente narrativo. O fato de o protagonista ter um(a) único(a) e misterioso(a) interlocutor(a) atiça nossa curiosidade e eleva o clima de suspense e tensão dramática da história (não é errado enxergarmos esse livro como um thriller e/ou como um romance histórico). Essa característica do romance me lembrou a estrutura de “Grande Sertão: Veredas” (Companhia das Letras). Se no clássico de Guimarães Rosa tínhamos apenas a voz de Riobaldo ecoando pelas páginas, agora é Francisco das Chagas Marins Filho o dono do monólogo.
Assim, acompanhamos a saga do narrador-protagonista da infância à vida adulta. Francisco nasceu em Carvoeiro, sítio localizado em Cafundó. Cafundó (chamado carinhosamente de Cafundó dos Judas) fica próximo a Brejo das Almas, vilarejo situado no interior do interior do interior do rincão do Brasil. Filho caçula e único menino de uma família de agricultores (o pai cuidava sozinho da propriedade rural enquanto a mãe era dona de casa), Francisco era o que podemos chamar de criança arteira.
Por ser o menor e o único homem entre tantas irmãs, ele sofria nas mãos das cinco meninas da casa (uma sexta garota faleceu pouco depois de nascer). Para conter a sanha bagunceira do garoto, as irmãs tinham o hábito de amarrar o pequeno Francisco em um manacá da serra, árvore vistosa que fora plantada pela mãe no quintal de casa antes do casamento. Mesmo assim, as irmãs não conseguiam conter a alma questionadora e indisciplinada do caçula. Sempre que podia, o menino aprontava das suas.
Se sentindo deslocado em Carvoeiro e não querendo trabalhar com o pai na enxada, Francisco fugiu para o litoral com 15 anos de idade. Curiosamente, esse foi o mesmo destino de suas irmãs. Uma a uma, elas deixaram o sítio paterno para construir a vida na cidade. Por ser o caçula, o narrador-protagonista foi o último a abandonar o lar natal. Em Barra de São Caetano, cidade às margens da praia, Francisco das Chagas Marins Filho se fixou. Primeiramente, ele trabalhou em Planalto, empresa que produzia peixes enlatados. Sua função era despedaçar os pescados. Nessa época, o rapaz vivia na casa da irmã mais velha, Ana Maria. Porém, Francisco não demorou para ser expulso da residência da primogênita dos Marins e foi morar na pensão de Dona Cotinha. Ele também trocou de emprego e foi atuar como magarefes (adoro essa palavra!!!) no Matadouro Municipal.
Antes de deixar Planalto, Francisco começou a namorar uma colega de trabalho, Virgínia. Como a moça ficou grávida, o casamento foi sacramentado. Tão logo se uniu e passou a viver em uma casa própria, o casal teve Sebastian Emanuel, o único filho daquela relação. Entretanto, o matrimônio trouxe muitos aborrecimentos e frustrações para os cônjuges. Virgínia não suportava a frieza e as grossuras do marido. Por sua vez, Francisco preferia a companhia das duas amantes: Maria Tereza, a professora mais velha que o desvirginara, e Minha Menina Morena, a jovem prostituta com quem ele se encontrava regularmente no prostíbulo local.
Com o fim do casamento, Francisco passou a namorar Ester, uma moça fogosa e evangélica que via com maus olhos o ateísmo do amado. Ao ter certeza de que ele jamais iria se tornar crente, ela o abandonou. Ao mesmo tempo que se desiludiu com as mulheres (no caso, com os relacionamentos convencionais, já que mantinha as visitas frequentes às camas de Maria Tereza e Minha Menina Morena), a personagem principal do romance largou o emprego de magarefes e decidiu empreender. O problema é que o quiosque na praia que ele montou foi vandalizado e o jovem empresário perdeu tudo. Aquilo foi a gota d´água. Agir dentro da lei e procurar ser certinho não estava se mostrando uma estratégia bem-sucedida.
Não por acaso, a partir desse ponto da história, Francisco das Chagas Marins Filho resolveu radicalizar. Seus novos trabalhos eram nos campos da segurança patrimonial e do entretenimento masculino. Só pela escolha das palavras dá para ver que esses trampos eram, como o próprio protagonista gostava de dizer, termos eufemísticos. Afinal, eles podiam ser vistos como eticamente condenáveis ou legalmente questionáveis.
Sem se importar com a opinião alheia, o jovem empreendedor alcançou, enfim, o sucesso financeiro. Como tudo no Brasil, as coisas que vão contra a ética, a lei, a moral e os bons costumes acabam se tornando extremamente lucrativas. Como diria os antigos versos de Roberto Carlos: “E como vou saber/ o que devo fazer?/ Que culpa tenho eu?/ Me diga amigo meu/ Será que tudo o que eu gosto/ é ilegal/ é imoral/ ou engorda”. Numa mistura bem-azeitada das colunas Livros – Crítica Literária e Músicas, diria que a trilha sonora que se encaixa perfeitamente no drama psicológico de Francisco das Chagas Marins Filho é “Ilegal, Imoral ou Engorda”.
O único efeito colateral da vida bandida foi o surgimento de alguns inimigos, que fariam qualquer coisa para acabar com a vida de bem-bom de Francisco. Será que o anti-herói conseguirá passar imune aos vários crimes e safadezas praticados ao longo da vida adulta? Esse é o mistério que rege a leitura do novo livro de José Carlos Martins.
“O Menino Amarrado ao Manacá” possui 164 páginas, que estão divididas em 175 capítulos. Há também um prefácio que foi produzido por Eneida D´Ávila Figueiredo, professora do autor que o incentivou a seguir com a escrita literária. Com quase 90 anos e morando em Belo Horizonte, a Professora Eneida analisou, no início do livro, os principais elementos da nova narrativa do antigo aluno. Levei em torno de quatro horas para concluir essa leitura. Precisei de apenas um dia para ir da primeira à última página de “O Menino Amarrado ao Manacá”. Basicamente, fiz a leitura em duas sessões: uma de manhã (com duas horas de duração) e outra à tarde (com mais duas horinhas).
A principal característica positiva deste livro é a narrativa deliciosa. Também temos um conjunto de ótimas cenas, excelentes personagens e um conflito forte. Apesar de saber/entender tudo isso, ainda sim achei que o maior mérito de “O Menino Amarrado ao Manacá” reside justamente na sua narrativa fluida, gostosa e impactante. O que ajudou na beleza descomunal do texto foi a linguagem impecável de Francisco. Acompanhar o relato do seu drama pessoal é uma experiência literária indescritível. Por mais inverossímil que a narrativa seja (falarei sobre isso daqui a pouco), não dá para não reconhecermos a riqueza das palavras e da apresentação da história do narrador-protagonista. O que o autor mineiro fez nesta publicação é de tirar o chapéu.
Outro mérito de “O Menino Amarrado ao Manacá” é a trama impecável e clara. O livro tem ótimo começo, ótimo meio e ótimo final. Nem por isso, o romancista se preocupou em ser muito didático ou extremamente formal. José Carlos Martins emulou uma conversa entre duas pessoas, mas só mostrou o que uma delas disse. Assim, temos todos os elementos comuns de um diálogo: oralidade, mudança abrupta de assunto, retomada de temas esquecidos, repetição, dissimulação, falta de ordem temporal, esquecimentos...
Também temos uma forte intertextualidade literária em “O Menino Amarrado ao Manacá”. O leitor atento e com um maior repertório ficcional conseguirá pescar as várias referências deixadas sutilmente ao longo dos capítulos do romance. Seria coincidência o surgimento de nomes como Paulo Honório, protagonista de “São Bernardo” (Record), clássico de Graciliano Ramos, e de Virgínia, um dos amores do anti-herói de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Martin Claret), obra máxima de Machado de Assis? Sinceramente, acho que não é mero acaso. Se você procurar bem, achará mais passagens intertextuais. O legal é que José Carlos Martins não se preocupou em explicitar as correlações de seu livro com os clássicos nacionais. Adoro quando os autores valorizam e investem na inteligência dos leitores.
Ainda na seara da astúcia do texto de “O Menino Amarrado ao Manacá”, é preciso elogiar a inserção de críticas sociais e de reflexões religiosas de altíssimo nível no meio da trama ficcional. Não à toa, as melhores partes da narrativa de Francisco (e as mais engraçadas também) são exatamente aquelas em que ele debate as mazelas brasileiras e as contradições e a falta de lógica dos preceitos do Cristianismo. Já tínhamos visto esse tipo de proposta em “O Velho e o Menino: o Rio”, o título de estreia de José Carlos Martins.
É possível notar que o romancista segue com uma visão crítica da religião. Se na obra anterior achei excessivo e gratuito o ódio do protagonista pela Igreja (apesar de concordar com seu conteúdo), em “O Menino Amarrado ao Manacá” isso não ocorre. São evidentes os motivos que levaram Francisco a se opor à religiosidade da mãe e de Ester. Além disso, não temos o gasto de mais páginas do que o necessário para tratar desse tema. A fixação do narrador-protagonista de provar a validade do seu ateísmo é totalmente lógica dentro do romance (algo que não aconteceu em “O Velho e o Menino: o Rio” com Manuel Vieira Vasconcelos de Quental).
Outra questão interessante para ser observada neste romance é o mistério sobre quem seria a interlocutora da conversa de Francisco das Chagas Marins Filho. Como só ouvimos a voz do protagonista ao longo de toda a obra e ele chama a pessoa com quem conversa de doutora, não sabemos exatamente quem seria a tal doutora. Seria ela uma advogada, uma juíza, uma delegada, uma médica ou uma psicóloga, hein? Não dá para precisar. Acertadamente, José Carlos Martins não revela a identidade da misteriosa mulher que ouve tão atentamente Francisco em “O Menino Amarrado ao Manacá”.
Nesse caso, podemos dizer que o desfecho do livro é aberto. Adoro finais interpretativos. Por exemplo, juro que achei desde o início que a doutora fosse uma delegada, juíza ou advogada que estivesse tratando de livrar o narrador-protagonista de seus crimes. Terminei a leitura com essa mesma sensação. Já Eneida D´Ávila Figueiredo disse no prefácio que acha que a personagem oculta é uma psicóloga. E você, o que acha, hein? Como diria Dona Milu: misteeeeeeeeeeeeeeeeeeério!!!
Adorei também o humor do romance. Repare que, do ponto de vista estritamente do conteúdo de “O Menino Amarrado ao Manacá”, a narrativa é densa e bastante pesada. Ela é quase uma trama de terror. Afinal, há muitas traições, maldades e crimes ao longo do relato de Francisco. Mesmo assim, é possível notarmos que o texto é bonito, sensível e muito agradável. Gosto dessa dicotomia entre conteúdo (árido) e estética (aprazível). Por isso, a semelhança que vem à mente é com “Grande Sertão: Veredas”.
Para completar com chave de ouro a beleza desta narrativa, a obra de José Carlos Martins ainda tem um humor inteligente e sutil. É possível dar algumas boas risadas ao ler as contradições e as tiradas espirituosas de Francisco das Chagas Marins Filho. Esse lado cômico dele ajuda a humanizá-lo, trazendo um tom acertado de contradições ao protagonista. Gosto quando a construção da personagem redonda é bem-feita! E o componente do humor foi, sem dúvida nenhuma, um acerto. O lado satírico e a veia sarcástica de Francisco contagiam a leitura.
O único defeito mais sério de “O Menino Amarrado ao Manacá” está na inverossimilhança de sua narrativa, algo que curiosamente apontei também em “O Velho e o Menino: O Rio”. No caso, a falta de veracidade (de ambos os romances de José Carlos Martins) está na incompatibilidade entre o tipo do narrador-protagonista (um homem simples, sem estudos formais e meio brucutu) e o texto por ele produzido (elegante, inteligente, engraçado e cheio de referências literárias, filosóficas e culturais). Por mais que o autor tenha se esforçado para justificar como alguém tão ogro conseguiu tecer uma narrativa tão refinada (em “O Menino Amarrado ao Manacá” é Francisco das Chagas Marins Filho e em “O Velho e o Menino: O Rio” era Manuel Vieira Vasconcelos de Quental), ele não conseguiu me convencer (e acho que não convence a maioria dos leitores). Sempre fico com a sensação de que Martins se apropria indevidamente das falas de suas personagens para expressar suas próprias opiniões (um erro crasso da ficção literária – o escritor não pode interferir no texto do narrador, que é uma outra pessoa).
Por exemplo, Francisco diz que nunca leu a Bíblia (na verdade, parou no comecinho) e jamais se preocupou com assuntos cristãos (nem mesmo prestava atenção ao culto quando ia com Ester, a namoradinha evangélica). Entretanto, ele discorre com enorme propriedade de passagens do Velho e do Novo Testamento como um entendido no assunto. Como isso é possível, senhoras e senhores? Não sei.
Ele também não é nem um pouco chegadinho em literatura, história, filosofia, filme, música, ecologia, antropologia, sociologia e futebol. Porém, consegue citar obras, autores, temas e personalidades desses universos com enorme facilidade como se fosse um intelectual ou uma pessoa engajada com causas sociais. Aí não dá, né?! Ao invés de tentar explicar o inexplicável, por que não dar educação e alguma erudição à personagem, como João Guimarães Rosa fez com Riobaldo, né? Acho que seria mais fácil e lógico.
O problema da narrativa de “O Menino Amarrado ao Manacá” não está apenas na elegância e na riqueza do conteúdo, algo que Francisco jamais conseguiria produzir sozinho (ou com a ajuda indireta de Maria Tereza, a professora com quem ele compartilhava a cama). O equívoco se estende para as opiniões do protagonista do romance. Não me parece fidedigno que um sujeito como o que nos conta uma história tão atroz e egoísta seja (além de extremamente erudito) um crítico do machismo, da misoginia, do racismo, das injustiças sociais e da falta de cuidado ambiental em nosso país. A única característica que caiu como uma luva nele foi o ateísmo (faz todo o sentido ele se questionar sobre a existência e, principalmente, a atuação de Deus nesse mundão repleto de maldades e injustiças). Pelo perfil e pelos comportamentos da personagem principal de “O Menino Amarrado ao Manacá”, o mais correto seria se Francisco das Chagas Marins Filho fosse mais reacionário e menos progressista.
Talvez se assistíssemos às falas mais polêmicas (contra as mulheres, contra os negros, contra os pobres, contra a ecologia etc.) dele poderíamos entender o quão descabido e nojento é esse tipo de discurso aos olhos dos leitores contemporâneos e com alguma inteligência. O que não colou foi a defesa de alguns princípios que sabemos que não estão na essência da personagem principal do livro de José Carlos Martins (por mais pertinentes que sejam). A construção de figuras polêmicas e a distinção da visão de mundo das personagens com as opiniões do próprio autor são uma das qualidades dos melhores romancistas.
Outras coisas que não gostei foram dos conteúdos do Índice para Catálogo Sistemático (CDD) e dos Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP). Sim, eu leio essas partes também (antes de iniciar a leitura). Na verdade, eu leio TUDO dos livros analisados!!! Acho que falei rapidamente sobre o equívoco na classificação da nova obra de José Carlos Martins no post da coluna Mercado Editorial em que apresentei os livros que foram lançados em janeiro e fevereiro de 2023.
Pela extensão desta publicação (pouco mais de 160 páginas), “O Menino Amarrado ao Manacá” pode ser visto tanto como uma novela (narrativa média) quanto como um romance (narrativa longa). De qualquer maneira, estamos no universo da ficção literária (e não saímos dele em nenhum momento). O problema é que, lendo o Índice para Catálogo Sistemático e os Dados Internacionais de Catalogação na Publicação, temos a impressão de que este é um título não ficcional. É só olhar lá. “O Menino Amarrado ao Manacá” foi catalogado como sendo um livro de Crítica Social: Sociologia e de Crônicas – História e Crítica. Não!!! Ele não é uma publicação não ficcional nem uma coletânea de crônicas. Ele é sim uma ficção e está entre a novela e o romance, não sendo uma coleção de narrativas curtas (contos ou crônicas). Ai, ai, ai.
Por fim, preciso falar do projeto gráfico. Achei os elementos visuais e de diagramação de “O Menino Amarrado ao Manacá” muito simplórios. E olha que estou comparando esse livro ao anterior de José Carlos Martins e não às publicações das grandes editoras nacionais. Perto de “O Velho e o Menino: O Rio”, “O Menino Amarrado ao Manacá” tem um projeto gráfico mais pobre, mais tímido. Por exemplo, o espaçamento entre as linhas é menor, o que dificulta um pouco a leitura e passa a sensação de um texto menos convidativo. E a mistura de vários capítulos na mesma página também transmite a sensação de que se priorizou a economia de folhas impressas à experiência de leitura. Pela qualidade altíssima desta narrativa, acredito que o novo romance de José Carlos Martins merecia sim um capricho maior em seu visual e em sua diagramação.
De qualquer maneira, a maioria dos problemas que apontei em “O Menino Amarrado ao Manacá” não se refere à narrativa em si (a exceção, obviamente, é em relação à incompatibilidade da narrativa e o perfil do narrador-protagonista). Por isso, não achei que esses aspectos atrapalharam substancialmente minha experiência literária. Os pontos positivos do texto são mais fortes e numerosos, o que transforma esse romance em uma ótima leitura.
O que mais gostei foi de ter acompanhado o crescimento do trabalho ficcional de José Carlos Martins de um livro para outro. Mesmo mantendo-se fiel à sua proposta literária (reparem que “O Velho e o Menino: O Rio” e “O Menino Amarrado ao Manacá” possuem uma mesma linha estético-narrativa e/ou uma mesma pegada editorial), a segunda obra tem uma qualidade muito maior do que a primeira. E a diferença entre as publicações foi de apenas um ano. Em outras palavras, estamos assistindo ao amadurecimento muito rápido do autor. Se continuar nessa franca evolução, José Carlos Martins se posicionará rapidamente como um dos melhores nomes da atual geração da literatura brasileira e da literatura mineira.
Como falei, a próxima novidade do escritor mineiro será o lançamento de seu primeiro título infantil. “O Menino Chicão e o Gato Vicente” deverá chegar em breve aos leitores mirins. Aguardemos ansiosos pela terceira publicação do autor.
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