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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorRicardo Bonacorci

Livros: O Livro dos Baltimore - O terceiro romance de Joël Dicker

Publicada em 2015, essa obra expande o universo ficcional apresentado em A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert, o principal best-seller do autor suíço.

O Livro dos Baltimore é um romance de Joël Dicker, escritor suíço

Joël Dicker é um dos escritores europeus mais badalados da atualidade. Especialista em thrillers dramáticos, romances históricos e intrigas policiais, o suíço se tornou best-seller mundial e coleciona importantes prêmios literários. Confesso que minha intenção inicial era fazer um estudo das narrativas de Dicker na coluna Desafio Literário. O problema é que o autor só lançou, até agora, seis títulos (cinco romances e uma novela), o que inviabiliza minha ideia. Para quem não está familiarizado com o Bonas Histórias, preciso explicar: no Desafio Literário, analisamos o estilo dos grandes nomes da literatura clássica e contemporânea. E para tal, investigamos uma lista de pelo menos oito publicações dos artistas selecionados. Se não deu para incluir, por enquanto, Joël Dicker em um lugar, deu para colocá-lo em outro. Por isso, aí vai a discussão de “O Livro dos Baltimore” (Intrínseca), seu terceiro romance, na coluna Livros – Crítica Literária, o espaço do blog dedicado à análise individual das obras.


Publicado em setembro de 2015, “O Livro dos Baltimore” é um thriller ambientado nos Estados Unidos e que descreve os dramas dos Goldman, uma família que esconde vários segredos e possui incontáveis rivalidades entre seus membros. A trama é narrada por Marcus, um renomado romancista. O protagonista, vale a pena dizer, já aparecera em “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert” (Intrínseca), o livro anterior de Dicker e, não por acaso, seu maior sucesso até aqui. Agora com 32 anos, Marcus Goldman está obcecado por compreender o passado dos familiares. Ele tenta encaixar as peças deixadas soltas pelos pais, pelos tios, pelos avós, pelos primos e pela namorada da adolescência. O rapaz quer entender o que aconteceu efetivamente para sua vida ter se transformado em um caos sentimental.


A (re)construção desse quebra-cabeça narrativo reserva muitas surpresas e incontáveis reviravoltas. Admito que em vários momentos, a obra é capaz de tirar nosso fôlego. Só por essa trama, já é possível percebermos o motivo do entusiasmo do público e da crítica pela produção ficcional de Joël Dicker, um dos bons nomes da literatura contemporânea em língua francesa. “O Livro dos Baltimore” é efetivamente um romance de mistério de alto nível, capaz de encantar os leitores mais exigentes desse gênero.


Nascido em 1985, em Genebra, Joël Dicker cresceu na segunda maior cidade suíça. Aos 19 anos, ele se mudou para Paris e frequentou por um ano a badalada Cours Florent, a principal escola francesa de teatro. Nessa época, o jovem Dicker escreveu seu primeiro livro, “O Tigre” (Alfaguara Portugal). A novela histórica se passa em um povoado longínquo da Sibéria, no início do século passado. O enredo apresenta o confronto, com tintas existencialistas, entre o inexperiente caçador Iván Levovitch e o feroz tigre que aterroriza os habitantes da localidade siberiana. Empolgado com a qualidade do texto, Dicker inscreveu “O Tigre” em um concurso literário, mas a obra foi desclassificada logo de cara.

Joël Dicker, romancista suíço

Em 2010, o desfecho foi mais favorável para “Os Últimos Dias dos Nossos Pais” (Intrínseca), a segunda narrativa e o primeiro romance do autor suíço, que nesse momento já voltara a viver na cidade natal. Ele inscreveu a nova trama, que era ambientada na Segunda Guerra Mundial, no Prix des Ecrivains Genevois, importante premiação de Genebra para escritores novatos e para obras ainda não publicadas. E, dessa vez, Joël Dicker saiu vencedor. Após chamar a atenção de editores parisienses, o livro foi publicado, dois anos mais tarde, na França.


Ainda em 2012, a editora que apostara em “Os Últimos Dias dos Nossos Pais” lançou “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert”, o segundo romance de Dicker. O intervalo entre as duas publicações foi de apenas oito meses. O motivo para tamanha rapidez é facilmente visível pelos números. “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert” se transformou em um sucesso imediato e estrondoso na França. A obra foi rapidamente traduzida para dezenas de idiomas e alcançou a marca de cinco milhões de cópias vendidas. O romance policial conquistou o Grand Prix du Roman de l’Académie Française e o Prix Goncourt des Iycéens. Ou seja, o livro se tornou bem-sucedido tanto da perspectiva comercial (do público leitor) quanto da perspectiva literária (da crítica).


Curiosamente, “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert” é ambientado nos Estados Unidos (uma novidade até então na literatura de Joël Dicker, que nunca morou no outro lado do Atlântico) e apresenta pela primeira vez sua personagem mais celebrada, o escritor Marcus Goldman. Após um bloqueio criativo, o narrador-protagonista passa a investigar por conta própria um crime antigo e que ainda não foi solucionado pela polícia norte-americana. A ideia é, ao mesmo tempo, adquirir material para um novo livro e, por que não, solucionar o intrigante desaparecimento de uma jovem de 15 anos ocorrido em 1975.


Lançado três anos mais tarde, “O Livro dos Baltimore” aproveita-se da figura central de “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert” e expande o universo ficcional criado no best-seller suíço. O terceiro romance de Joël Dicker se passa alguns anos à frente do título anterior. Nesse momento da trama, Marcus está solteiro (ele namorava uma atriz famosa em “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert”) e sente saudades da namorada de infância/adolescência, Alexandra Neville. Alexandra é atualmente uma das cantoras mais populares do país. Porém, o antigo casal não se vê há oito anos. A nova narrativa mergulha no passado da dupla e nas intrigas familiares dos Goldman e dos Neville.

O Livro dos Baltimore. romance de Joël Dicker

No Brasil, “O Livro dos Baltimore” foi publicado pela Intrínseca, uma das maiores editoras de nosso país e dona dos direitos autorais dos títulos de Dicker por aqui. A adaptação desse romance do francês para o português brasileiro foi realizada por André Telles, tradutor carioca falecido em 2018 e vencedor do Prêmio Jabuti pelas traduções de obras de Alexandre Dumas. Telles também traduziu “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert” e “Os Últimos Dias dos Nossos Pais”.


Os dois últimos romances de Dicker são “O Desaparecimento de Stephanie Mailer” (Intrínseca), lançado em 2018, e “O Enigma do Quarto 622” (Intrínseca), publicado em 2020. Ambos os livros são típicos romances policiais e estão totalmente desassociados do núcleo ficcional de “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert”/“O Livro dos Baltimore”. Na penúltima obra do escritor suíço, a jornalista Stephanie Mailer investiga um crime ocorrido há duas décadas na pequena cidade de Orphea, nos Hamptons. Ela afirma que a polícia cometeu um sério erro na investigação daquele caso. No mais recente título de Dicker, o escritor Joël (esse é o nome da personagem, tá?) tenta elucidar um crime ocorrido há alguns anos. O local da tragédia é a suíte 622 do sofisticado hotel Palace de Verbier, nos Alpes Suíços. Para trabalhar com mais acuracidade, o protagonista se hospeda no fatídico quarto e mergulha em uma investigação particular sobre o enigmático assassinato ocorrido naquele hotel.


Confesso que poderia passar horas falando dos outros romances de Joël Dicker, mas a proposta desse post do Bonas Histórias é debater exclusivamente “O Livro dos Baltimore”. Foco, Ricardinho, foco! Não se esqueça que estamos na coluna Livros – Crítica Literária e não na coluna Desafio Literário. OK. Entendi o recado. Antes que mais alguém reclame comigo (além da minha própria consciência), segue, nos próximos parágrafos, a parte da apresentação do enredo da obra de hoje. Logo na sequência, trago minha análise pormenorizada do título em questão.


A narrativa de “O Livro dos Baltimore” começa basicamente em fevereiro de 2012. Marcus Goldman continua sendo um dos mais admirados escritores norte-americanos da atualidade. Seus romances venderam como água e ele está milionário. Entretanto, o rapaz passa por dificuldades para produzir o novo livro (algo que já tínhamos visto ocorrer em “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert”). Ao invés de se lançar em uma investigação criminal, como na publicação anterior de Joël Dicker, Marcus prefere dessa vez mergulhar nos dramas e nas desavenças de sua família. A ideia do autor é contar a história dos Goldman. Para isso, ele compra uma casa em Boca Raton, na Flórida. Ao deixar o apartamento em Nova York, o protagonista acredita que encontrará a inspiração que deseja para descrever a trajetória conturbada dos parentes.

O Livro dos Baltimore. romance de Joël Dicker

Em Boca Raton, Marcus faz amizade com Leonard Horowitz, o vizinho septuagenário que tem curiosidade para saber como o renomado romancista trabalha. Para decepção de Leo, como ele é chamado carinhosamente, o escritor passa os dias passeando pela cidade, pensando por horas no quintal de casa e rememorando álbuns de fotografias antigas dos familiares. Sentar e escrever que é bom nada!


A rotina aparentemente pouco produtiva de Marcus Goldman só piora quando surge um cachorrinho perdido em sua residência. Depois de se afeiçoar ao pet por alguns dias, o escritor descobre, enfim, onde o bichano mora. Ao levar Duke (esse é o nome do cão) para seus verdadeiros donos, o escritor se encontra com Alexandra, sua antiga namorada e estrela de primeira grandeza da música norte-americana. A moça está passando férias na casa ao lado da de Marcus. Ela é a dona de Duke. E está namorando com Kevin Legendre, um jogador canadense de hóquei. O encontro mexe com os antigos pombinhos, que não se viam há oito anos. O término do relacionamento de Marcus e Alexandra não foi bem digerido por ambos, que parecem ainda nutrir um forte sentimento um pelo outro.


Querendo rever a antiga namorada, Marcus furta Duke da casa de Kevin. Após passar o dia com o cachorro, ele o devolve para Alexandra à noite, dizendo que o encontrou novamente no quintal de casa. O cãozinho gosta tanto de ficar com o romancista que não demora para ele mesmo começar a visitar o amigo humano todas as manhãs. Assim, Markus não precisa mais prosseguir com os furtos caninos (ou seria sequestro canino, hein?). E, para a alegria do rapaz, ele retorna todas as noites para a casa de Kevin para devolver Duke para Alexandra.


Os rápidos momentos de conversa com a moça são os melhores instantes do dia do escritor. Não demora para os encontros fortuitos do antigo casal resvalar em um assunto delicado: o término do namoro. Alexandra gostaria de entender o motivo de Marcus tê-la abandonado. Ele diz que não poderia ficar com ela depois do fatídico novembro de 2004. Na véspera do Dia de Ação de Graça daquele ano, uma grande tragédia abalou para sempre os Goldman (e os Neville por consequência). E até hoje Marcus culpa Alexandra pelo que aconteceu há quase uma década.

O Livro dos Baltimore. romance de Joël Dicker

A partir daí, a trama de “O Livro dos Baltimore” caminha simultaneamente em dois períodos: presente e passado. Nos dias atuais, assistimos às angústias sentimentais de Marcus Goldman e Alexandra Neville. Apesar de rica, famosa e bem-sucedida na carreira artística (ele na literatura, ela na música), a dupla sofre por não estar junta e por remoer antigas feridas aparentemente não cicatrizadas. Quando a narrativa retrocede no tempo, mais precisamente para o final da década de 1980 e o início dos anos 1990, acompanhamos a infância conturbada de Marcus. Desde criança, ele padeceu pela rivalidade e pela inveja do eixo mais rico da família, chamado de Goldman-de-Baltimore. Para seu azar, ele era do lado pobre, nomeado de Goldman-de-Montclair.


Os Goldman-de-Baltimore eram constituídos pelo casal Saul e Anita (tios de Marcus) e pelo filho deles, Hillel (que tinha a mesma idade de Marcus). Tio Saul era um dos mais importantes advogados de Maryland e, quiçá, da Costa Leste dos Estados Unidos. Por sua vez, Tia Anita era médica na cidade e tinha uma beleza estonteante. O primo Hillel era um menino extremamente esperto e espirituoso. Na visão de Marcus, os Goldman que viviam em Baltimore eram o núcleo perfeito do clã: ricos, bonitos, amorosos, altruístas, divertidos, elegantes e inteligentes. Marcus sempre gostou de visitá-los nas férias e nos feriados. Além de admirar os tios, o narrador-protagonista sempre nutriu um carinho especial pelo primo, desde muito cedo seu melhor amigo.


O clima de harmonia entre os Goldman-de-Baltimore se intensificou quando eles adotaram Woodrow Finn, um adolescente da idade de Hillel que fora abandonado pelo pai biológico após a morte da mãe. Woody, como o jovem era chamado carinhosamente, apresentava problemas comportamentais nos vários orfanatos em que viveu. Uma vez na casa dos Goldman, contudo, ele recebeu o amor que tanto ansiava e se tornou o melhor amigo de Hillel. Woody e Hillel viviam como irmãos inseparáveis. Quando Marcus visitava os primos, eles formavam o que chamavam de Gangue dos Goldman. Como bons adolescentes que eram, a trupe gostava de se divertir, jogar bola, passear, paquerar. O importante era que permanecessem juntos. E, para conseguir alguns trocados, eles trabalhavam como jardineiros no condomínio onde os Goldman-de-Baltimore viviam. Como é possível perceber desde já, o termo gangue que os garotos se deram é apenas uma brincadeira juvenil. A Gangue dos Goldman não fazia nada de errado (pelo contrário, eles eram muito bem-quistos pelos vizinhos).


Para desespero de Marcus, os dias em que ele passava em Maryland ao lado dos tios e dos primos ricos eram exceção em sua rotina. Ele vivia em Montclair, subúrbio de Nova Jersey. Seu pai era engenheiro e sua mãe era vendedora de roupa. Eles tinham uma casa simples e viviam como classe média. A aparência comum dos pais e o estilo de vida simplório dos Goldman-de-Montclair envergonhavam Marcus, principalmente quando a família inteira se reunia. Diferentemente dos tios e dos primos elegantes, bonitos e ricos, ele fazia parte do lado rude, feio e pobre do clã. Impossível não sentir inveja dos parentes mais afortunados.

O Livro dos Baltimore. romance de Joël Dicker

Apesar da inveja que sentia pelos Goldman-de-Baltimore, Marcus adorava as estadas na mansão dos tios. Lá, ele podia fazer o que mais gostava: admirar a imponência natural de Saul, suspirar pela beleza de Anita e, principalmente, integrar a Gangue dos Goldman. A rotina ao lado dos primos só melhorou, em meados da década de 1990, quando eles fizeram amizade com Scott Neville. O menino tinha fibrose cística e vivia em uma cadeira de rodas. As limitações físicas do novo amigo não o impediram de ser aceito na Gangue dos Goldman. O mais incrível da história é que Scott tinha uma irmã dois anos mais velha: Alexandra. Ao conhecê-la, os jovens Goldman se apaixonaram. Tanto Marcus quanto Woody e Hillel morriam de amores pela irmã de Scott e não escondiam um do outro esse sentimento. Não por acaso, ela foi aceita de forma unanime na Gangue dos Goldman.


Porém, o grande enigma que intriga o leitor de “O Livro dos Baltimore” é: o que aconteceu na véspera do Dia de Ação de Graça de 2004? As únicas coisas que sabemos são que o Drama, como Marcus Goldman intitulou o trágico episódio de sua juventude, ocorreu na mansão dos Goldman-de-Baltimore e foi capaz de separar o jovem casal de namorados (sim, Marcus e Alexandra engataram um namoro escondido dos primos dele) por tanto tempo. O que Alexandra fez de tão grave para o escritor virar as costas para ela e não querer nunca mais vê-la? Como diria o bordão de Dona Milu, personagem célebre da telenovela “Tieta”: “Misteeeeeeeeeério”.


“O Livro dos Baltimore” possui 416 páginas. Apesar de ser um romance caudaloso, ele é o segundo menor de Joël Dicker em extensão de páginas. Somente “Os Últimos Dias dos Nossos Pais”, a narrativa longa de estreia do suíço, é mais enxuto – tem 304 páginas. Os demais romances do autor têm mais de 500 páginas cada um. “O Livro dos Baltimore” está dividido em cinco partes (“Livro da Juventude Perdida”, “Livro da Fraternidade Perdida”, “Livro dos Goldman”, “Livro do Drama” e “Livro da Redenção”), além de trazer o Prólogo e o Epílogo. Levei aproximadamente nove horas para percorrer seu conteúdo na semana passada. Precisei de duas tardes/noites para isso. Praticamente li metade da obra na quarta-feira e a outra metade na quinta-feira.


O primeiro aspecto que preciso citar sobre “O Livro dos Baltimore” é que ele tem um enredo totalmente independente de “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert”. Apesar de ser um prolongamento do universo ficcional do romance anterior de Dicker, essa obra não exige a leitura prévia do título precedente. Portanto, se você ainda não leu nada de Joël Dicker, não se preocupe. Esse livro pode ser muito bem degustado isoladamente.

O Livro dos Baltimore. romance de Joël Dicker

Outra questão importante para salientar logo de cara, principalmente para os fãs de “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert”, é que “O Livro dos Baltimore” não é propriamente um romance policial. Na minha visão, essa obra está mais para um thriller dramático, um mistério com doses generosas de intriga familiar e/ou um suspense psicológico. Talvez isso possa incomodar um pouquinho os devotos mais fervorosos das intrigas criminais convencionais, mesmo não faltando por aqui lances com muita ação, reviravoltas, segredos, suspense, e por que não, mortes e assassinatos. O fato nu e cru é que, queiramos ou não, “O Livro dos Baltimore” não é propriamente um romance policial (pelo menos não na maneira como a Teoria Literária o classifica).


Algo que precisa ser elogiado nesse romance é a sua riqueza narrativa. Não por acaso, essa é uma das marcas autorais mais significativas de Dicker. Vemos tal característica também em “Os Últimos Dias dos Nossos Pais”, “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert”, “O Desaparecimento de Stephanie Mailer” e “O Enigma do Quarto 622”. E o que exatamente eu quero dizer com riqueza narrativa? Quero falar que acontecem muitas coisas nas tramas do autor. Em “O Livro dos Baltimore”, essa característica fica evidente logo nos primeiros capítulos. A sensação que temos é de assistir a mais de uma história simultaneamente. Nesse terceiro romance do autor, há muitas personagens, vários conflitos, diferentes espaços narrativos e distintos espaços temporais. E, de maneira sublime, todas as searas narrativas são bem amarradas em uma trama única. Impossível não ficar embasbacado com o talento do suíço em conseguir tecer tantas linhas para cada subtrama e, ao mesmo tempo, em amarrá-las. A impressão lendo “O Livro dos Baltimore” é que produzir literatura ficcional é uma tarefa fácil, natural e corriqueira (pelo menos para Joël Dicker).


Parte do segredo da construção de um título com tanto conteúdo está na fragmentação (ou seria extensão!) temporal do(s) conflito(s). Apesar de recebermos as várias partes da narrativa em um texto único, a trama se passa em várias épocas. Em alguns capítulos, temos acontecimentos simultâneos de até três ou quatro períodos temporais diferentes. Basicamente, o romance caminha mais para trás (de 2012 para 1960) do que para frente (de outubro de 2012 a novembro de 2012). Aí vem a pergunta: a leitura de “O Livro dos Baltimore” é difícil, embolada ou hermética? Que nada! O texto é fluído e gostoso do começo ao fim. É até difícil largarmos suas páginas.


Outra parte fundamental da excelência narrativa desse livro está na ótima construção das personagens. Como sabemos se as figuras ficcionais criadas por Dicker são interessantes ou não?! Eu costumo usar alguns critérios: (1) ver se elas são tipos redondos; (2) procurar elementos únicos em suas constituições físicas, comportamentais e/ou psicológicas; (3) notar se eu não confundo, no meio da leitura, as diferentes pessoas citadas; e (4) perceber o quanto cada indivíduo contribuiu para o desenvolvimento da trama. Por qualquer critério que você utilize, me parece sensato afirmar que as personagens de “O Livro dos Baltimore” são construções ficcionais excepcionais. Quase todas são do tipo redondo, possuem componentes marcantes, não permitem confusão por parte do leitor durante a leitura e marcam o enredo do romance de maneira significativa (ninguém é colocado no meio da história sem um propósito forte).

O Livro dos Baltimore. romance de Joël Dicker

Independentemente da época retratada e das personagens enfocadas, uma coisa permanece imutável ao longo dos capítulos, a temática da obra. O centro do romance – termo popularizado por Orhan Pamuk em “O Romancista Ingênuo e o Sentimental” (Companhia das Letras) – é a inveja e a rivalidade alimentadas pelos vários integrantes dos Goldman. Nesse sentido, “O Livro dos Baltimore” é uma espécie de versão masculina e norte-americana da Série Napolitana, tetralogia de Elena Ferrante. A relação contraditória de Elena Greco e Rafaella Cerullo (leia-se amor e ódio) pode ser vista nas relações gangorras (sobe-e-desce) de Marcus com Hillel/Woody, de Marcus com Kevin Legendre, Woody com Hillel, Nathan com Saul, Saul com Patrick Neville (o pai de Alexandra e Scott) e Woody com Luke (o marido de Collen).


Por extensão, é legal reparar na dicotomia geográfica do “O Livro dos Baltimore”. A lista é vasta: Baltimore versus Montclair/Nova Jersey; Madison versus Massachusetts, Los Angeles versus Miami, Miami versus Nova York, Nova York versus Nova Jersey, Estados Unidos versus Inglaterra. A impressão é que as personagens estão sempre angustiadas por estar no lugar errado. Em outras palavras, a rivalidade das personagens é quase que uma incongruência espacial. Interessante olhar a narrativa por essa outra perspectiva.


Como thriller dramático, “O Livro dos Baltimore” está impecável. Não preciso dizer que Joël Dicker consegue sustentar o clima de mistério do início ao fim. O interessante é notar como ele mantém o ar de suspense da obra. Diferentemente do convencional, o autor suíço não expõe claramente o conflito logo de cara (uma técnica recorrente desse tipo de romance). Não! O narrador-protagonista diz apenas que o Drama, episódio ocorrido na véspera do Dia de Ação de Graça de 2004, representou uma ruptura emblemática em sua vida. O que seria esse Drama? Não sabemos. Só entendemos o que Marcus Goldman está se referindo nas últimas 40 páginas do livro. Enquanto isso, somos envolvidos por uma trama que possui várias surpresas bombásticas. A primeira surge no meio do romance. A segunda aparece no segundo terço da narrativa. Daí para o final é uma bomba dramática por seção. Incrível!


Como estratégia para a quebra pontual da tensão dramática, Dicker recorre ao humor. Há cenas realmente divertidas em “O Livro dos Baltimore”. De maneira sutil, espirituosa e inteligente, o texto nos faz sorrir (e em alguns momentos até a rir). As passagens mais hilárias estão concentradas nas tentativas de Marcus em reconquistar o coraçãozinho de Alexandra, na relação de amizade inusitada do autor com o vizinho meio enxerido da Flórida e nas epopeias tragicômicas de Hillel pelas várias escolas da região de Baltimore.

O Livro dos Baltimore. romance de Joël Dicker

Ainda nessa seara mais cômica, achei brilhante a brincadeira proposta pelo romance em expor as contradições e as particularidades do ofício da Escrita Criativa. Desde os primeiros parágrafos de “O Livro dos Baltimore”, já assistimos aos diálogos metalinguísticos do fazer literário. Não à toa, o protagonista desse título é um escritor. E para produzir sua narrativa, Marcus Goldman prefere correr atrás da história ao invés de ficar “brigando com o texto” dentro de casa (o inverso do método de trabalho de Leonard Horowitz, que também tentava produzir um romance). É ou não é uma dica preciosa para quem deseja lançar-se nessa carreira, hein?


Por esse caráter metalinguístico, tive uma leitura diferente das partes derradeiras do romance – fique calmo(a), não vou dar o spoiler! No final do livro, o leitor pode ter a sensação de que o texto de Dicker possui uma pontinha de elementos sobrenaturais ou que coloca um pezinho no universo fantástico. Admito que não vi dessa maneira. Na minha ótica, a aparição de personagens que já morreram completa a discussão sobre o fazer literário (exposta no parágrafo anterior). Os familiares de Marcus Dicker saíram do mundo real e ingressaram no mundo ficcional. Daí suas aparições, conversas e interações com o autor.


De negativo, posso apontar uma série de passagens inverossímeis do enredo de “O Livro dos Baltimore”. Muitas vezes, é difícil de engolir as cenas desenvolvidas por Joël Dicker. Não me parece crível, por exemplo, uma criança ser espancada diariamente por um colega dentro dos muros de um colégio, ainda mais em uma escola particular e grã-fina. Nenhum funcionário vê nada, nenhum professor sabe o que Hillel Goldman passa nas mãos de Vicent/Porco, hein? Impossível! A mesma lógica se aplica à entrega do texto do espetáculo cênico para o aluno faltoso. Não é muita coincidência que o principal inimigo de Vicent/Porco leve o material da atividade escolar na sua casa? E, para piorar, o garoto não tem condições intelectuais de compreender que as páginas recebidas possuem um conteúdo pejorativo? Minha impressão é que faltou tato, em alguns momentos, para Dicker no desenvolvimento de certas cenas. Ele parece acreditar que vamos aceitar qualquer coisa que ele nos diga.

Joël Dicker, romancista suíço

Também achei estranha a fragmentação do romance em cinco partes. Tive a impressão de que as diferentes seções dessa trama possuem mais unidade entre si do que fragmentação. Ou seja, as divisões não respeitam a delimitação temporal proposta pelo próprio autor. Nesse caso, seria mais coerente apresentar “O Livro dos Baltimore” em capítulos simples do que em capítulos seccionados em partes. A única explicação que encontrei para a divisão formal do romance foi indicar claramente para o leitor a apresentação das cenas bombásticas. Repare que cada parte do livro contém um episódio singular, de altíssima tensão dramática e com propriedade para alterar os acontecimentos da narrativa. Temos, portanto, pelo menos cinco clímaces. Quem gosta de uma boa reviravolta, na certa se fartará com essa leitura.


Em suma, “O Livro dos Baltimore” é um livrão. Gostei muito de sua história e, principalmente, do estilo da literatura de Joël Dicker. Temos aqui um autor que sabe o que está fazendo e faz seu trabalho com enorme qualidade. Talvez, o principal efeito colateral dessa leitura seja a vontade de conhecer os demais títulos do suíço. Se você não tiver lido “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert”, na certa correrá até uma livraria assim que terminar “O Livro dos Baltimore”.


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