Lançado na Espanha em 1986 com o título El Hombre Sentimental, o drama amoroso de um cantor de ópera que embaralha a vida real com sonhos, lembranças e desejos é uma das obras mais marcantes do escritor espanhol falecido recentemente.
O post de hoje da coluna Livros – Crítica Literária é uma homenagem a Javier Marías, escritor, tradutor e editor espanhol que faleceu em setembro de 2022 em Madrid aos 70 anos. Considerado um dos principais romancistas da literatura contemporânea em língua espanhola, Marías deixou como legado artístico 16 romances, 4 coletâneas de contos, 7 coleções de ensaios, 1 título infantojuvenil, vários artigos e mais de uma dezena de traduções. Suas obras foram publicadas em cerca de 50 idiomas e em mais de 60 países, o que rendeu 10 milhões de exemplares comercializados e vários prêmios literários. De certa forma, não dá para falarmos dos nomes mais proeminentes do Pós-modernismo ibérico e da literatura espanhola dos últimos 50 anos sem o mencionarmos.
Confesso que estava há muito, muito tempo com vontade de comentar no Bonas Histórias uma publicação marcante deste autor. Na época em que produzia as análises estilísticas do Desafio Literário (algo que eu preciso voltar a fazer urgentemente!), a ficção de Javier Marías quase foi incluída por duas oportunidades em meus estudos (acho que em 2017 e 2020). Porém, na última hora, ela sempre acabou preterida (daí a dor na consciência por não ter nenhum título debatido no blog). Para mim, Marías é uma mistura de Italo Calvino com Milan Kundera e Juan Carlos Onetti. Exagero?! Talvez. Mas juro que o vejo dessa maneira.
Se é para ser franco com você, minha primeira opção de análise era “Coração Tão Branco” (Companhia de Bolso), meu romance favorito do espanhol. Também não seria nada mal discutir “Amanhã na Batalha Pensa em Mim” (Martins Fontes) e “Negras Costas do Tempo” (Relógio d´Água). Se a proposta fosse procurar novidades em seu portfólio, queria ler a Trilogia “Teu Rosto Amanhã”: “Febre e Lança” (Companhia das Letras), “Dança e Sonho” (Companhia das Letras) e “Veneno e Sombra e Adeus” (Companhia das Letras).
Porém, o romance que li na semana passada e que trago para análise hoje é “O Homem Sentimental” (Alfaguara), quinta narrativa ficcional longa de Javier Marías. Por que a mudança de planos, Ricardinho?! A resposta é mais banal do que pode supor a vã literatura: porque foi essa a publicação que li por acaso na última quarta-feira à noite e que me chamou positivamente a atenção. Muitas vezes, trago para a coluna Livros – Crítica Literária títulos que planejo ler e, assim, comento detalhadamente após a leitura previamente organizada. Por outro lado, há textos que leio nos momentos de lazer (sim, na hora de folga, um crítico literário que se preze se diverte lendo!) e, quando gosto bastante, fico tentado a analisá-los. Só nesse ano, isso se passou com “A Uruguaia” (Todavia), deliciosa novela de Pedro Mairal que ganhou as salas de cinema recentemente, “Iluminadas” (Intrínseca), a boa ficção científica de Lauren Beukes, e “Quando Ninguém Está Olhando” (Intrínseca), thriller dramático de Alyssa Cole.
Fiz essa longa introdução (calma que ela não acabou!) para dizer que estava um calorão absurdo em CABA (enfim ele chegou por essas bandas!) e percebi que não dormiria cedo. Sem me preocupar, passei a mão no Kindle e procurei uma novela de qualidade ou um romance curtinho de um autor renomado que me entretivesse em poucas horas. Essa é a vantagem de não ter televisão em casa e não curtir redes sociais. Confesso que meu plano era manjadíssimo: me distrair com algo da literatura contemporânea argentina. Contudo, na estante virtual ao lado (sou daqueles que separa os títulos ficcionais na biblioteca do Kindle como se estivesse organizando a biblioteca real de casa) estava as obras da literatura espanhola. Aí, ao menor tropeço do olhar, não resisti ao avistar “O Homem Sentimental”, que há tanto tempo adiava.
E olha que tenho uma lista interminável de livros que quero analisar para o Bonas Histórias: “Maria e o Mundo Mágico” (Independente), livro infantil de Dayana Rampinelli, “Duas Guerras Surreais” (Independente), novela distópica de Graziella Moraes, “A Contra-história” (Valentina), terceira parte da saga “A Contrapartida” de Uranio Bonoldi, “1+1=2 2-1=0” (CEPE Editora), premiado romance de Fernanda Caleffi Barbetta, “Pindorama – Uma História da Civilização Animal” (Haikai), mistura de sátira política e fábula de Carlos Fernando Verne, “Como Escrever Mesmo Estando em Pânico” (Europa), dicas sobre o fazer literário de Carolina Zuppo Abed, “Copo Vazio” (Todavia), best-seller de Natalia Timerman, “A Noite da Espera” (Companhia das Letras), clássico contemporâneo de Milton Hatoum, “Uma Curva na Estrada” (Arqueiro), romance à la Nicholas Sparks, “Para Ler Como Um Escritor” (Zahar), guia literário de Francine Prose, “O Primeiro Dia do Resto de Nossas Vidas” (Arqueiro), romance água com açúcar de Kate Eberlen, “Quem Era Ela” (Intrínseca), suspense de JP Delaney, e (ufa, já estou terminando) “Por que Escrever” (Companhia das Letras), coletânea de ensaios de Philip Roth.
Para desespero daqueles que já pegaram senha e aguardam impacientes na fila cada vez mais extensa do blog (pessoal, o sistema caiu e só vamos retomar o atendimento em 2024!), me encantei com essa breve ficção de Marías, que passou na frente de todos em um estalar de dedos. Quem é que disse que esse mundo é justo, hein?!
Publicado originalmente em 1986 com o título “El Hombre Sentimental”, “O Homem Sentimental” inaugurou a fase mais profunda e inventiva da literatura de Javier Marías. Não por acaso, a partir desse título vieram as obras-primas do autor: “Todas as Almas” (Martins Fontes), de 1989, “Coração Tão Branco”, de 1992, “Amanhã na Batalha Pensa em Mim”, de 1994, “Negras Costas do Tempo” e “Teu Rosto Amanhã”, de 2002 (romance 1) a 2007 (romance 3 da trilogia).
Não dá para falarmos que os quatro livros anteriores a “O Homem Sentimental” desapontaram a crítica e o público (nem que os empolgaram!) porque eles simplesmente passaram quase que batidos em termos de repercussão. “Os Domínios do Lobo” (Alfaguara), romance de estreia de Marías que foi lançado em 1971, era um pastiche melodramático. Esse sim dá para dizer que era uma obra fraquinha, fraquinha. Na sequência vieram títulos com reflexões mais interessantes e estruturas mais elaboradas, mas ainda possuíam tramas pouco emblemáticas: “Travesía del Horizonte” (sem publicação em português), “El Monarca del Tiempo” (também sem edição em nosso idioma) e “El Signo” (para variar, sem publicação tanto no Brasil quanto em Portugal).
Com “O Homem Sentimental”, Javier Marías começava, enfim, a mostrar para o que viera na ficção literária. Esse romance é ao mesmo tempo simples e complexo. Seu enredo parece banal: um triângulo amoroso como qualquer outro. Até o título remete ao nome de muitas obras do Período Romântico, em uma ótima brincadeira intertextual. Entretanto, essa obra possui algumas boas sacadas na construção narrativa – embaralhamento do espaço temporal e mistura dos planos da realidade, quase uma versão espanhola do psicanalítico “Breve Romance de Sonho” (Companhia de Bolso), de Arthur Schunitzler – e ambientação árida (todas as personagens principais são figuras solitárias, melancólicas e sem amor). Ou seja, temos aqui uma história de amor, mas sem paixão nem sentimentos aflorados. É ou não é uma boa sacada criativa, hein?
A ideia para escrever esse romance surgiu de uma viagem de trem que Javier Marías fez no início dos anos 1980. Ele ia de Milão para Veneza e, no vagão, se deparou com uma moça bonita com jeitão triste. Por que aquela infelicidade insistia em emoldurar a beleza da viajante?! Ali surgiu a inspiração para o livro. A partir da cena da mulher melancólica no assento do trem, ele montou o restante da trama. “O Homem Sentimental” conquistou o Prêmio Herralde de melhor romance de 1986. Essa foi a primeira de muitas premiações literárias que Marías receberia no papel de autor. Até então, ele só ganhara honrarias pelos trabalhos como tradutor.
O enredo de “O Homem Sentimental” começa com o narrador-protagonista, um cantor de ópera famoso cujo apelido é Leão de Nápoles (não conhecemos seu nome verídico), revelando aos leitores os seus relatos mais íntimos. Ele teve naquela manhã um sonho revelador. Curiosamente, as passagens oníricas aconteceram de verdade e misturam-se com sua imaginação, desejos e lembranças, seja lá o que isso queira dizer (sim, é confuso mesmo!). No sonho matutino, ele é visitado por pessoas que conhecera há quatro anos em uma viagem de trem. Naquela época, o artista tinha medo de andar de avião e, por isso, cruzava frequentemente a Europa pelos trilhos a trabalho.
No deslocamento de quatro anos atrás, o cantor ia de Edimburgo, onde acabara de se apresentar, para Madrid, sua cidade natal e onde interpretaria Cássio na peça Otello, de Verdi, no Teatro de la Zarzuela. Depois de vários ramais ferroviários (Edimburgo-Londres, Londres-Paris e Paris-Madrid), ele compartilhou, na última parte da jornada, o vagão com três figuras que chamaram sua atenção: dois homens e uma mulher. Apesar de se conhecer, o trio viajou em um silêncio agonizante e em uma completa falta de interação.
O primeiro sujeito passou boa parte da viagem olhando a paisagem pela janela, algo estranho pois era noite e não dava para ver nada do lado de fora. Ele era um velho com aparência distinta, tinha roupas elegantes, mas um tanto curtas, usava perfume forte e parecia ter algum dinheiro. Certamente ocupava a média gerência de uma boa empresa internacional.
No assento ao lado, no meio da fileira de três poltronas, viajava uma mulher. Evidentemente mais jovem do que a dupla masculina que a acompanhava, ela dormia com os cabelos longos e castanhos cobrindo-lhe a face e com as pernas cruzadas. Portanto, não deu para o protagonista do romance ver o rosto feminino naquele primeiro momento. Mesmo assim, pôde verificar que se tratava de uma pessoa extremamente melancólica e solitária. Suas unhas eram muito bem cuidadas, mas a pele que as rodeava estava em carne-viva, como se tivesse sido ferida ou queimada. Havia algo de muito sinistro naquela figura de ar angelical.
Na outra extremidade da fileira e ao lado da mulher, ia um homem cuja idade não deu para o cantor lírico precisar. Ele era careca e gordo, ostentava um bigode aristocrático e vestia-se com o que havia de melhor no mundo. O que deu para notar rapidamente é que era muito ambicioso, do tipo empresário poderoso e milionário que faria qualquer coisa em nome do lucro e que exigia obediência servil daqueles que o rodeavam. Olhando fixamente para frente, o sujeito parecia viver em um mundo à parte e não se importar em ser observado.
Quatro ou cinco dias depois daquela viagem com as personagens tão soturnas, quando já estava hospedado em Madrid e ensaiando com a companhia de ópera no Teatro de la Zarzuela, o tenor Leão de Nápoles reencontrou o homem mais velho e de perfume marcante no bar do hotel. Depois de se recordarem da recente jornada de trem, a dupla engatou uma conversa descontraída.
O narrador relatou sua profissão e o quanto era solitário viver viajando pelo mundo. Diferentemente da crença glamurosa que as pessoas comuns tinham da vida artística, viver de hotel em hotel, não possuir amigos, familiares e conhecidos por perto e ter uma rotina estritamente profissional era profundamente melancólico. O que adiantava a situação material confortável e a fama se faltavam emoções e sentimentos genuinamente humanos no dia a dia do cantor?! Por uma perspectiva pitoresca, seu cotidiano era muito parecido ao dos caixeiros-viajantes, que levavam seu trabalho para todos os lados como tristes andarilhos da sociedade.
Curiosamente, Dato (é assim que se chamava o senhor que o tenor encontrou no trem e agora no bar do hotel) entendeu perfeitamente o que o novo/velho amigo/conhecido estava dizendo. Ele também se sentia profundamente enojado da sua rotina não tão menos enfadonha. Ele trabalhava como acompanhante da Sra. Mansur (a moça que o narrador viu dormindo no vagão). Antes que alguém possa estranhar ou fazer conjecturas sobre tal ofício, Dato era só isso mesmo o que o nome da profissão dizia: ele acompanhava (de maneira amigável e casta!) Natalia (esse era o nome da moça) ao longo do dia. Enquanto o marido, Hieronimo Mansur (o sujeito metido a besta que também estava no trem), um banqueiro belga bilionário, vivia fazendo negócios, alguém precisava entreter a esposa para que ela não caísse em depressão profunda. Tal função era exercida com excelência por Dato, que conquistou a amizade de Natalia e a confiança de Hieronimo.
Assim que conheceu Natalia Monte Mansur, o narrador se encantou pela moça. E ela demonstrou curiosidade pelo artista e seu trabalho. Todos os dias, a Sra. Mansur e Dato, que a seguia para todos os lados como uma sombra (e como toda boa sombra, mantinha-se em completo silêncio), compareciam aos ensaios de Otello para ver e conversar com Leão de Nápoles. A amizade dos novos amigos cresceu e saiu das dependências do teatro. O cantor lírico e a mulher do banqueiro passaram a se ver no hotel em que estavam hospedados, em cafés e lojas de Madrid. De certa forma, eles afagavam mutuamente a melancolia e a solidão com a novidade proporcionada pela presença inusitada do outro.
Contudo, todas as noites, ela voltava para a cama do marido. Mesmo assim, Hieronimo Mansur ficava com ciúmes da relação da esposa com o tenor. Afinal, o que aqueles dois faziam por tantas horas enquanto ele estava longe trabalhando?! Na visão de Natalia, as suspeitas do Sr. Mansur eram totalmente infundáveis porque mesmo que quisesse ser infiel com o cantor lírico, a onipresença de Dato impediria qualquer segredo. O acompanhante parecia ter mais devoção ao vínculo profissional com o banqueiro do que a amizade com a moça. Se Natalia tivesse pulado a cerca ou quisesse por fim àquele matrimônio há muito tempo desgastado pela aparência e pela ausência de amor, certamente o Sr. Mansur já saberia.
“O Homem Sentimental” é um romance curto. Ele tem 144 páginas, que estão divididas em 15 capítulos. Levei aproximadamente 4 horas e meia para concluir seu conteúdo na última quarta-feira à noite. Esse é um ritmo mais lento do que normalmente emprego. O motivo é que a narrativa de Javier Marías exige bastante atenção do leitor, o que provoca automaticamente uma diminuição no ritmo de leitura. Tradicionalmente, levo pouco mais de 3 horas para devorar um título desse mesmo tamanho (mas sem a riqueza de detalhes e sem a overdose de nuances de uma literatura mais rebuscada e sinuosa como a praticada pelo escritor espanhol).
Por falar no texto, preciso alertar os leitores do Bonas Histórias que a versão do livro que li na semana passada foi lançada em janeiro de 2013 em Portugal pela Alfaguara, selo da Penguin Random House Grupo Editorial Portugal. A tradução foi feita por Salvato Teles de Menezes.
Juro que quando comprei o e-book na Loja Kindle não sabia que se tratava da edição lusitana. Admito que até gostei dessa surpresa na hora da leitura. Adoro acompanhar tramas ficcionais no português europeu (e no português africano). Aí dá-lhe variações da grafia de palavras conhecidas, como “facto”, “carácter”, “duche” e “oiça”, e termos pouco comuns para nós brasileiros, como “peúgas”, “languesce”, “montra”, “pecúlio”, “pequeno-almoço”, “comboio” e “chávena” (esses três últimos um pouco mais familiares, pelo menos para os descendentes de portugueses). É interessante notar que a narrativa de Marías combina perfeitamente com o formalismo e a elegância da versão clássica do nosso idioma.
Para os meus conterrâneos que não tiverem o hábito de ler obras no português de Portugal e/ou não gostarem de se embrenhar pelas variantes linguísticas do nosso idioma, tenho uma boa notícia. A Companhia das Letras lançou em dezembro de 2004 “O Homem Sentimental” no Brasil com o português brasileiro. Nesse caso, a tradução foi feita por Eduardo Brandão, e o romance possui 160 páginas.
Em relação à narrativa em si, o primeiro elemento que me chamou atenção nesta obra foi a mistura dos planos de realidade, conceito definido na Teoria Literária como realidade ficcional. Como o texto está em primeira pessoa, acompanhamos o relato nem um pouco confiável de Leão de Nápoles. E o narrador-protagonista não tem qualquer pudor em embaralhar sonhos com lembranças, desejos e divagações. Qual a barreira entre realidade ficcional e imaginação em “O Homem Sentimental”? Não sabemos. A graça do romance está justamente aí: será essa história real (real no sentido ficcional, tá?) ou é resultado das maluquices de um homem solitário que surtou depois de anos de uma rotina fria e impessoal?!
Veja nesses dois exemplos que a trama brinca o tempo inteiro com os múltiplos planos da realidade:
“Contudo, o que sonhei esta manhã, quando já era de dia, é uma coisa que de facto aconteceu e que me aconteceu quando era um pouco mais jovem, ou menos velho do que agora, embora ainda não tenha acabado. Há quatro anos, viajei, por causa de meu trabalho (sou cantor) e imediatamente antes de ultrapassar miraculosamente o medo que tenho de andar de avião, inúmeras vezes de comboio num período de tempo bastante curto, umas seis semanas no total. Estas deslocações breves e contínuas levaram-me à parte do nosso continente, e foi na penúltima série (de Edimburgo a Londres, de Londres a Paris e de Paris a Madrid num dia e numa noite) que vi pela primeira vez os três rostos sonhados esta manhã, que são também os que ocuparam parte da minha imaginação, muito das minhas recordações e da minha vida inteira (respectivamente) desde essa altura até agora, ou durante quatro anos”.
“E esta noite sonhei o que me aconteceu há quatro anos na realidade, se é que este termo serve de algo ou pode ser contraposto a nada. É claro que houve diferenças, pois embora os factos e a minha visão da história correspondam, sonhei o acontecido por outra ordem, com outro tempo e outras cortes ou divisões do tempo, concentradamente, seletivamente, e – isto é decisivo e incongruente – sabendo já o que se passara, conhecendo, por exemplo, o nome, o caráter e o comportamento de Dato antes de que no meu sonho tivesse ocorrido o nosso primeiro encontro”.
Por isso, durante essa leitura, me lembrei bastante dos melhores contos, novelas e romances de Juan Carlos Onetti. O escritor uruguaio era mestre em embaralhar os planos da realidade ficcional em suas narrativas. Como já falei, dá para vermos “O Homem Sentimental” também como uma versão moderna (menos erótica e mais existencialista) de “Breve Romance de Sonho”. Não por acaso, Leão de Nápoles possui características que me fizeram recordar do memorável Dr. Fridolin, melhor personagem de Arthur Schnitzler.
Se você embarcar na proposta maluca de Javier Marías desde o começo do livro, certamente curtirá esse romance (que pela extensão reduzida, até poderia ser chamado de novela) em sua totalidade. Mas lembre-se: ao invés de buscar respostas concretas para tudo, surfa sem constrangimento nas dúvidas e nas inquietudes dos relatos do tenor espanhol.
Outras características marcantes de “O Homem Sentimental” são: a falta de uma trama linear, cenas construídas de maneira pouco tradicional e frases gigantescas que emulam o fluxo de consciência. O que assistimos nesta publicação são longas descrições das personagens (principalmente no início do romance), divagações intermináveis (durante todo o livro) e ausência de ação (tudo é muito parado e melancólico, como se a expressão dos sentimentos das personagens fosse mais importante do que o próprio relato do que está acontecendo). Por mais que eu tenha adorado este drama sentimental de Javier Marías pela sua estética dramática, sei que não é todo mundo que curte esse tipo de texto ficcional. Tenho certeza de que ele irá incomodar os leitores mais ansiosos e com paladar literário menos apurado, que anseiam por tramas mais ágeis e por conflitos escancarados.
As reflexões que o narrador-protagonista se propõe a fazer possuem pegada filosófico-existencialista. Leão de Nápoles discute com os leitores questões como morte versus vida, solidão, rotina tediosa, frieza das relações humanas modernas, inconformismo, melancolia da vida artística, aridez da convivência conjugal, inveja, amor, aparências sociais, níveis de fidelidade, mercantilização da sociedade contemporânea, escapismo, força do dinheiro etc. Suas inquietações, pensamentos e crenças mais íntimas sobre essas temáticas parecem um desabafo de um homem que há muito tempo está desesperado e que ambiciona por uma existência realmente emocionante.
Se formos analisar o perfil das personagens, iremos notar muitas semelhanças entre os quatro protagonistas (enxergo tanto Leão de Nápolis quanto Natalia, Sr. Mansur e Dato como figuras centrais de “O Homem Sentimental”). Repare no quanto eles são pessoas tristes, amarguradas, incompletas e desesperadas. É verdade que o que causa maior perplexidade no narrador é a condição da esposa do banqueiro: uma mulher jovem, bonita e cheia de dinheiro, mas oprimida pelo tédio e pela prostração. Na visão do herói do romance, ela não poderia ser infeliz uma vez que tem enorme fartura material.
Contudo, o paradoxo pode ser estendido às figuras masculinas. Eles têm tudo o que desejam na vida (ou quase tudo, para ser mais exato na descrição). Mesmo assim, estão mergulhados na melancolia (e a um passo da depressão crônica). Exatamente por isso, é difícil apontar quem seria o homem sentimental do título do livro de Marías (muitas vezes, achei que fosse mais o Sr. Mansur do que o próprio Leão de Nápoles).
E o que seria esse elemento incomum que falta para a plena felicidade do quarteto?! A resposta surge fácil: (como diria Zezé de Camargo e Luciano) é o amor. São poucos livros que apresentam histórias amorosas sem o seu componente mais importante: a paixão. Uma boa referência que me vem à cabeça agora é "Primeiro Amor" (Nova Fronteira), conto de Samuel Beckett que dá uma pancada no estômago dos leitores. Em termos de incômodo gerado e de intensidade das figuras antiamorosas, creio que "Primeiro Amor" seja até mesmo mais potente do que “O Homem Sentimental”.
Olhando exclusivamente para o romance de Javier Marías, o Sr. Mansur não parece amar realmente Natalia – o que ele sente é uma obsessão possessiva pela mulher. Na outra ponta do triângulo amoroso, o que constitui a atração entre Natalia e Leão de Nápolis é mais a curiosidade pelo desconhecido e a necessidade de fugir da rotina enfadonha do que um sentimento bonito e nobre de dois amantes convencionais.
Quem for um(a) romântico(a) inveterado(a), saiba que talvez a narrativa de “O Homem Sentimental” cause mais controvérsia do que satisfação. Considerando que ela apresenta uma paródia ácida e contemporânea dos romances românticos do século XVIII (com direito a amor à primeira vista, disputas pelo coração da mocinha, atos passionais e inconsequentes, mortes trágicas e imposições sociais), não é todo mundo que irá apreciar esse tipo de inventividade ficcional.
Por fim, achei espetacular o desfecho do livro. Aqui vale uma consideração. Diante da criatividade do enredo e da desconstrução sagaz das tramas românticas, o desenlace de “O Homem Insensível” vem com cheirinho de clichê literário. E nesse caso em particular, o texto do romance nos surpreende – jamais suporíamos que Javier Marías escolheria o caminho mais óbvio para encerrar a trama, não depois de ter trilhado rotas alternativas desde o início. Por isso, a grande reviravolta da história está nas páginas derradeiras. Além do mais, o final da obra faz referência direta ao estilo melodramático dos títulos românticos do século XVIII.
Por tudo isso, admiro cada vez mais a literatura de Marías. Agora só falta encarar a Trilogia de “Teu Rosto Amanhã” para eu ter uma visão mais completa do seu portfólio. Porém, para isso, precisarei mais do que uma noite de calor insuportável em Buenos Aires. E pode apostar que se voltar com o Desafio Literário, não titubearei em colocar o trabalho de Javier Marías na lista de autores avaliados (se bem que já disse isso para uma série tão grande de artistas que me sinto como um político em véspera de eleição – prometemos mundos e fundos sem nos preocuparmos com o amanhã).
Gostou deste post e do conteúdo do Blog Bonas Histórias? Se você é fã de literatura, deixe seu comentário aqui. Para acessar as demais análises literárias, clique em Livros – Crítica Literária. E aproveite para nos acompanhar nas redes sociais – Facebook, Instagram, Twitter e LinkedIn.