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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorRicardo Bonacorci

Livros: O Homem que Sabia Javanês - O conto mais famoso de Lima Barreto

Publicada no jornal Gazeta da Tarde em 1911, esta narrativa clássica da literatura nacional faz uma crítica ácida ao Brasil e aos brasileiros.

O Homem que Sabia Javanês é o conto de Lima Barreto

Lima Barreto foi um dos grandes escritores brasileiros do século XX. Seu trabalho literário mais conhecido é “Triste Fim de Policarpo Quaresma” (Paulus), romance satírico lançado em folhetins em 1911 e em livro em 1915. Nesse clássico da literatura nacional, o autor carioca zomba da classe política, dos funcionários públicos federais, da sociedade burguesa, do espírito patriota dos brasileiros e da ignorância cultural do nosso povo. Ler essa obra em pleno século XXI é notar que, infelizmente, o Brasil não mudou quase nada nos últimos cem anos. Afinal, continuamos (des)governados por militares boçais para alegria de uma parcela da população que não tem vergonha nenhuma de escancarar suas parvoíces e seus preconceitos.


Contudo, a proposta deste post da coluna Livros – Crítica Literária não é falar de “Triste Fim de Policarpo Quaresma” (muito menos dos insistentes equívocos político-intelectuais dos meus compatriotas). Até porque já analisamos esse romance no Bonas Histórias há cerca de quatro anos e meio (e este é um blog de literatura, cultura e entretenimento e não de política, certo?). A ideia agora é comentarmos outra narrativa satírica de Lima Barreto que apresenta as mesmas características de seu título mais celebrado. Estou me referindo a “O Homem que Sabia Javanês” (Editora Itapuca), um dos contos clássicos da literatura brasileira.


Nesta trama satírica, o escritor pré-modernista/modernista apresenta um trambiqueiro ao melhor estilo malandro carioca. O protagonista de “O Homem que Sabia Javanês” consegue ascender social e profissionalmente na recém-proclamada República ao mentir dizendo que dominava uma língua estrangeira. Diante da ignorância de seus compatriotas, que ao menos sabiam valorizar alguém com capacidade intelectual para aprender mais de um idioma, a personagem principal do conto torna-se do dia para a noite um figurão da sociedade burguesa do Rio de Janeiro e do corpo diplomático brasileiro. Sua fama se espalha rapidamente de boca em boca. Todos admiram o rapaz que sabe falar a tal língua javanesa.

Lima Barreto

Reli esta obra nesta semana e fiquei boquiaberto com o talento e a versatilidade de seu autor. Se você pensa que Lima Barreto foi apenas um exímio romancista, saiba que ele também se destacou nos contos, nas crônicas e nos artigos jornalísticos. Esse material textual foi publicado nos principais periódicos do Rio de Janeiro nas duas primeiras décadas do século XX. Lima Barreto foi colaborador das revistas Fon-Fon, Floreal e ABC e dos jornais Gazeta da Tarde e Jornal do Commercio.


Curiosamente, “O Homem que Sabia Javanês” foi publicado no mesmo ano que “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. Não conheço outro escritor brasileiro que tenha apresentado ao público dois clássicos literários em um intervalo de poucos meses! Enquanto o conto foi lançado em abril de 1911 na Gazeta da Tarde, o romance ganhou as páginas do Jornal do Commercio entre agosto e outubro de 1911.


Somente após a morte de Lima Barreto, quando se passou a valorizar sua literatura (algo que não tinha acontecido enquanto ele estava vivo), “O Homem que Sabia Javanês” foi publicado em uma coletânea de contos. Chamado de “O Homem que Sabia Javanês e Outros Contos”, este livro traz outras dezesseis pequenas narrativas de Lima Barreto: “Três Gênios de Secretaria”; “O Único Assassinato de Cazuza”; “O Número da Sepultura”; “Manuel Capineiro”; “Milagre do Natal”; “Quase Ela Deu o Sim, Mas...”, “Foi Buscar lã...”; “O Falso Dom Henrique V”; “Eficiência Militar”; “O Pecado”; “Um que Vendeu Sua Alma”; “Carta de Um Defunto Rico”; “Um Especialista”; “O Filho da Gabriela”; “A Mulher do Anacleto”; e “O Caçador Doméstico”.


Vale a pena dizer que a Principis, selo da Editora Ciranda Cultural, lançou no ano passado “O Homem que Sabia Javanês e Outros Contos” em uma edição com um belíssimo projeto gráfico. Sou suspeito para falar, mas adoro a linha editorial da Principis. Entretanto, desta vez, preferi ler apenas a narrativa de “O Homem que Sabia Javanês” (o conto e não a sua coletânea). Por isso, optei pela versão digital deste título que foi lançada em julho de 2020 pela Editora Itapuca (em ebook Kindle).

Livro O Homem que Sabia Javanês de Lima Barreto

“O Homem que Sabia Javanês” foi adaptado várias vezes para a televisão, o cinema e o teatro durante a segunda metade do século XX. De suas versões audiovisuais mais famosas, temos um episódio da Terça Nobre, programa da Rede Globo, de 1994, e um curta-metragem de 1988. Produzido por Guel Arraes, Jorge Furtado e João Falcão, o programa global foi apenas inspirado no conto de Lima Barreto (possuía várias diferenças em relação à trama original). Já a versão cinematográfica dirigida e roteirizada por Maurício Buffa é um pouco mais fiel ao texto de Lima Barreto.


Narrado em primeira pessoa por seu protagonista, “O Homem que Sabia Javanês” é uma conversa de bar (na verdade, a história se passa em uma confeitaria) entre dois amigos. Entre uma cervejinha e outra, Castelo, um vigarista de mão-cheia, conta para Castro, um velho conhecido, as maracutaias que o fizeram progredir na vida. Em uma época em que não tinha um tostão furado no bolso e já estava devendo o aluguel do quarto de pensão, o narrador do conto viu um anúncio no jornal em que se contratava um professor de javanês. Sem ter qualquer conhecimento do idioma requerido, Castelo apresentou-se na Rua Conde do Bonfim para a vaga.


O contratante era Manuel Feliciano Soares Albernaz, o Barão de Jacuecanga. Já idoso, o português queria aprender a língua javanesa para ler um livro deixado por seu avô, o Conselheiro Albernaz. Segundo a crença da família, aquela obra trazia sorte para seus proprietários. Por isso, o interesse de conhecer o conteúdo daquela publicação. Aproveitando-se que o prefácio do livro estava em inglês, Castelo, com toda a cara de pau que Deus lhe deu, diz ao Barão de Jacuecanga que aquela história fora escrita pelo Príncipe Kulanga, um escritor javanês de muitos méritos. Encantado com os conhecimentos idiomáticos do jovem professor, o Barão de Jacuecanga o contrata imediatamente.

Livro O Homem que Sabia Javanês de Lima Barreto

Para surpresa de Castelo, ele se torna, de uma hora para outra, bem-quisto pela sociedade carioca. Todos na Capital Federal ficam encantados com o rapaz que sabe falar javanês. Um dos mais entusiasmados com as habilidades do professor é o genro do Barão de Jacuecanga, um importante desembargador. Foi ele quem indicou o nome de Castelo para o corpo diplomático brasileiro. Inicia-se, assim, a trajetória ascendente do jovem professor no funcionalismo público nacional e nas palestras internacionais de linguística.


“O Homem que Sabia Javanês” tem apenas 24 páginas. É possível ler esta história em pouco mais de meia hora. Foi o que fiz na última quinta-feira à noite. A edição da Itapuca ainda traz, no início do livro, uma pequena apresentação sobre Lima Barreto e seu trabalho literário.


O ponto alto deste conto está na divertida sátira social que o autor carioca faz de seu país e de seus conterrâneos. Logo de cara, nota-se em “O Homem que Sabia Javanês” uma forte crítica à burocracia do Estado tupiniquim, à falta de inteligência do brasileiro médio, ao pseudopatriotismo nacional e à mentira como estilo de vida. Castro diz logo nas primeiras linhas: “O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras aqui nesse Brasil imbecil e burocrático”. Aí Castelo responde: “Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês!”. Em outras palavras, o que o narrador-protagonista quis dizer é: “Nesse nosso país, é possível se sair muito bem se você não fizer as coisas certas. Eu nunca fiz e cheguei aonde cheguei”.


Lima Barreto é famoso pelos seus textos críticos. Ele debochava principalmente da corrupção dos governantes, da forte presença dos militares na cúpula do Estado nacional, da burocracia do serviço público, dos modelos econômicos esdrúxulos aplicados por aqui, da ignorância, da falta de cultura e da incivilidade da maioria dos brasileiros, do papel pouco plural da imprensa e da crítica literária e do racismo em nossa sociedade.

Livro O Homem que Sabia Javanês de Lima Barreto

Se em “Triste Fim de Policarpo Quaresma” Lima Barreto escancarou as mazelas políticas do Brasil da República Velha (corrupção, militarismo, burocracia, perseguição política e modelos econômicos anacrônicos), em “O Homem que Sabia Javanês” ele preferiu focar nas críticas sociais (falta de cultura do povo, uso de manhas e artimanhas para subir na vida e importância maior da imagem do que do conteúdo). De certa forma, os dois livros (romance e conto) se complementam.


Castelo é uma ótima personagem. Trambiqueiro de marca maior, ele não se envergonha de mentir e de trapacear para subir na vida. O narrador-protagonista conta sua trajetória em tom de deboche na mesa da confeitaria. Na certa, a ingestão de uma cervejinha aqui e outra ali ajudaram-no a soltar a língua. O ouvinte é seu amigo Castro, que parece não se surpreender com o que lhe chega aos ouvidos. A impressão que temos é que o Rio de Janeiro é um antro de picaretagem e que nenhuma maracutaia é capaz de assustar seus habitantes. No caso de Castelo, ele é uma das primeiras personagens literárias a falsificar seu currículo (uma prática que, infelizmente, não é tão rara assim em nosso país hoje em dia – até os candidatos a Ministro da Educação se valem desse artifício).


Repare no texto elegante e dinâmico de “O Homem que Sabia Javanês”. Gostei de todas as estratégias narrativas utilizadas por Lima Barreto neste conto: história ancorada em cima de um diálogo; flashbacks do narrador; ritmo impecável do início ao fim do livro; retrato ácido e verdadeiro da sociedade brasileira; e uso do humor ao mesmo tempo escrachado e inteligente. De maneira geral, “O Homem que Sabia Javanês” chega a ser uma história mais forte, melhor desenvolvida e mais engraçada do que “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. Enquanto o romance tem vários altos e baixos, o conto permanece em alto nível o tempo inteiro.

Lima Barreto

A única coisa que destoa um pouco em “O Homem que Sabia Javanês”, ao menos do ponto de vista do leitor contemporâneo, é a construção de algumas frases. As opções por algumas vírgulas me pareceram muito estranhas. Confesso que fiquei irritado com o excesso delas (e em locais em que são totalmente desnecessárias). Mas quem sou eu para questionar o texto de Lima Barreto, hein? O que os grandes nomes da literatura fizeram lá atrás (isso se aplica também a João Guimarães Rosa) precisa ser contextualizado (a forma de escrever há cem anos era outra).


Não posso deixar de comentar a lindíssima capa desta versão do livro da Editora Itapuca. A ilustração é digna de prêmio na área do design gráfico. Ela é simples e encantadora, além de dialogar intimamente com o conteúdo do conto. Vale a pena ressaltar que a capa foi uma criação de Juliana Possas.


A única nota realmente ruim deste livro de Lima Barreto é que ele continua extremamente atual. Se pensarmos bem, toda a literatura de Barreto – “O Homem que Sabia Javanês”, “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, “Eficiência Militar” (narrativa curta de “O Homem que Sabia Javanês e Outros Contos”, “Clara dos Anjos” (Penguin e Companhia das Letras), “Os Bruzundangas” (Ática) e “Numa e a Ninfa” (Penguin e Companhia das Letras) – retrata uma nação que ainda hoje conhecemos bem. O Brasil dos primeiros anos do século XX é parecidíssimo com o Brasil dos primeiros anos do século XXI. Está duvidando de mim? Então leia Lima Barreto como se você estivesse acompanhando um autor contemporâneo. É assustador. Infelizmente, é muitíssimo assustador!


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