Publicado em setembro de 2022, o thriller fantástico do escritor mineiro apresenta a amizade de um universitário e um morador de rua na Belo Horizonte dos anos 1970.
Na semana passada, li “O Homem que Ria Demais” (Páginas Editora), o segundo romance de Magela de Faria. Recebi esse livro no final do ano passado e só agora consegui lê-lo com a atenção merecida. Quem me enviou a nova obra ficcional de Magela foi Admilson Resende, diretor da Multi Comunicar. A Multi Comunicar é uma assessoria de imprensa de Belo Horizonte que trabalha, entre outros projetos de Comunicação, Marketing Digital e Produção Editorial, na divulgação de autores mineiros. Da última leva de publicações que Admilson me encaminhou, os títulos que mais gostei foram justamente “O Homem que Ria Demais” – nosso assunto de hoje na coluna Livros – Crítica Literária – e “O Coração do Imperador” (Gulliver) – romance policial de Guilherme Santos que rendeu uma análise detalhada no Bonas Histórias em janeiro. Parodiando o clássico dos Novos Baianos, chegou a hora dessa gente da literatura mineira mostrar o seu valor!
Se eu já tinha achado “O Coração do Imperador” uma obra muito boa, confesso que considerei agora “O Homem que Ria Demais” uma publicação excelente. Adorei principalmente a originalidade da trama de Magela de Faria. Eita história gostosa de ler!!! E olha que não sou normalmente muito fã da literatura fantástica, gênero que o autor vem explorando. O novo romance de Magela é encantador por unir texto impecável com enredo perspicaz e personagens muitíssimo carismáticas. É até difícil olharmos o escritor como um novato no universo do fazer literário. Pelo que demonstrou nas páginas de “O Homem que Ria Demais” e “A Orquestra das Almas” (Literando Editora), seu título anterior, Magela de Faria se mostra um autor ficcional maduro, sagaz e com enorme repertório narrativo. Quem gosta das boas novidades da literatura brasileira precisa ficar de olho nos próximos lançamentos deste mineiro. Eu (e, como consequência, o Bonas Histórias) ficarei atento.
“O Homem que Ria Demais” aborda a amizade sincera e bonita de um universitário com um morador de rua de traços indígenas. O cenário inicial do livro é a capital de Minas Gerais na segunda metade da década de 1970. Em troca de eventuais lanches e salgados, o mendigo do Centrão de Belo Horizonte parece proteger seu jovem amigo com dicas premonitórias. Guiado por uma forte intuição (ou seriam visões sobrenaturais?!), o velho índio não deixa que nada de mal ocorra ao estudante. Grato por tanta atenção, o rapaz faz uma promessa aparentemente banal ao morador de rua. Contudo, quase quarenta anos mais tarde, aquele compromisso levará o não-mais-garoto-universitário a uma aventura de tirar o fôlego pelo interior mineiro. Inicia-se, assim, um thriller emocionante com muito mistério, reviravoltas, ação, perigo e surpresas.
Lançado em 24 de setembro de 2022, na Livraria Jenipapo, na Savassi, em BH, “O Homem que Ria Demais” é uma autopublicação de Magela de Faria. Para viabilizar o novo projeto editorial, o autor escolheu a Páginas Editora como parceira. Acho que já falei sobre essa editora belo-horizontina aqui no Bonas Histórias quando comentei “Andante das Gerais” (Páginas Editora), a primeira coletânea não ficcional de Roberto Marcio que foi publicada no finalzinho de 2020 (e analisada na coluna Livros – Crítica Literária em junho de 2021).
Vale a pena dizer que Magela de Faria estreou na literatura comercial no ano retrasado com bastante brilho. Sua primeira obra foi o já citado “A Orquestra das Almas”, romance histórico ambientado na Romênia comunista da segunda metade da década de 1980. Ao longo de mais de 800 páginas, acompanhamos a saga de Iannus Maltiescu, um médico perseguido pelo governo ditatorial de Nicolae Ceauşescu. E qual teria sido o crime do doutor, hein? Ele só queria ter melhores condições de trabalho em seu hospital. Como punição pela ousadia de criticar a política de saúde pública de Ceauşescu, Iannus foi enviado para uma prisão agrícola no interior da Romênia. Uma vez atrás das grades, o protagonista sofre contra as perseguições e as injustiças perpetradas pelo comandante da penitenciária. Li esse livro no ano passado e o achei simplesmente espetacular. Até agora estou em dúvida qual título é melhor: se “O Homem que Ria Demais” ou “A Orquestra das Almas”.
Se a narrativa de “A Orquestra das Almas” levou seis anos para ser concluída, a trama de “O Homem que Ria Demais” levou apenas um ano. Para produzir o novo romance, Magela de Faria utilizou como base uma crônica homônima que fora publicada em suas redes sociais há alguns anos. Ao lê-la depois de um tempinho, o autor achou que valeria a pena transformar a narrativa curta em romance. E não é que ele tinha razão! Curiosamente, o início do livro é idêntico ao começo da crônica:
“Solitário, ele andava o dia todo pelas ruas do Centro de Belo Horizonte. Era enorme em altura e peso, de pele morena e cabelo liso e oleoso. Sempre que eu passava pela Avenida Paraná para pegar meu ônibus de volta para casa, já tarde da noite, ele estava lá conversando com uma daquelas garotas que ficavam encostadas na parede à espera de companhia. Naquela época, eu ainda não sabia o nome dele, mas como ele me chamava de Moleque, eu passei a chamá-lo de Pede. E não foi porque ele estivesse sempre me pedindo algo, mas tão somente porque eu queria dar sentido ao meu apelido e, juntos, nós passamos a ser o Pede e o Moleque (...)”.
Nascido em Itaúna, em 1953, Geraldo Magela de Faria sempre morou em Minas Gerais. A infância e parte da adolescência foram vividas em Divinópolis. Para cursar o seminário, ele se mudou para Juiz de Fora. E a faculdade de Engenharia Metalúrgica foi realizada na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) em Belo Horizonte. Desde então, ele reside na capital mineira. Por várias décadas, Magela trabalhou na Acesita (atualmente chamada de Aperam), empresa especializada na produção de aço. Foi na siderúrgica que o engenheiro se aposentou em 2011. Mesmo assim, ele não parou de trabalhar no universo empresarial tão imediatamente. Mal deixou a Acesita/Aperam, o executivo foi atuar na Gerdau Açominas, em Ouro Branco. Só em 2014, a engenharia foi deixada definitivamente de lado em sua rotina.
Apaixonado pelos livros, Magela sempre foi um leitor contumaz. Na época do seminário, ele devorava os clássicos da literatura brasileira e da literatura estrangeira. Seus escritores favoritos eram Fiódor Dostoiévski, Machado de Assis e João Guimarães Rosa. Nada bobo ele, né? Entretanto, Magela de Faria só embarcou pra valer no ofício do fazer literário em 2015, após a conclusão da carreira de executivo na Acesita/Aperam e na Gerdau Açominas. Aí saiu de cena o experiente engenheiro metalúrgico e entrou no palco ficcional o promissor romancista. Com um pé na literatura fantástica e o outro no realismo fantástico, o mineiro de Itaúna já merecia ter recebido uma atenção maior das principais editoras do país. Olha a dica aí, editores do meu Brasil!
“O Homem que Ria Demais” é narrado prioritariamente em primeira pessoa. O narrador central da trama é um universitário de Belo Horizonte que não tem o nome revelado em nenhum momento do livro. Em meados da década de 1970, ele faz faculdade de Engenharia. De manhã, o rapaz assiste às aulas na universidade e à noite ministra aulas em um cursinho para pré-vestibulandos. Ou seja, sua rotina é ficar correndo de um lado para outro na cidade. Como o cursinho fica no centro de BH, o jovem precisa caminhar invariavelmente por ruas escuras, sujas e perigosas.
No ir-e-vir do trabalho, o narrador faz amizade com um mendigo com feições indígenas que vive pelas ruas rindo. Por não saber o nome um do outro, a dupla logo cria apelidos mútuos: o universitário chama o morador de rua de Pede por causa, obviamente, de viver solicitando comida; e o pedinte chama o rapaz de Moleque devido à juventude – tem vinte e poucos anos. Inicia-se, dessa maneira, uma bonita e sincera amizade entre os dois.
O curioso da relação entre Pede e Moleque é que o universitário tem a impressão de estar sendo protegido pelo morador de rua. Além de ser extremamente generoso (está sempre ajudando as pessoas ao seu redor) e de rir com enorme facilidade (uma de suas características mais marcantes), Pede parece ter o dom da premonição. Sabendo exatamente o que vai acontecer na capital mineira, o índio orienta o jovem amigo de quais ruas evitar e o que não fazer em determinados dias e noites.
Com as preciosas dicas e orientações do mendigo, Moleque sempre escapa de acidentes (enchente, queda de árvore, desabamento de viaduto), tiroteios (o centro de Belo Horizonte nos anos 1970 não era um dos lugares mais tranquilos do mundo, ainda mais à noite ou de madrugada), ações violentas de policiais e militares (era tempo da Ditadura Militar!) e pequenos inconvenientes da rotina urbana (chuva, trânsito, perda do último ônibus para casa, nota ruim na faculdade). Paradoxalmente, é o universitário que se sente mais acolhido por Pede e não o contrário. Em troca da proteção concedida, o morador de rua só solicita um pouco de comida. Isso é, quando o amigo mais jovem pode pagar um salgado ou um lanche. Se Moleque não está em condições financeiras para tal, tudo bem. Ainda há muitos motivos para o indígena passar o dia rindo, rindo e rindo.
Certo dia, Pede faz um pedido inusitado para Moleque. Após dizer uma sequência de frases em seu idioma materno (“Tacuín-êré maludá tacón potaca-êré tétê. Bambuská-aré taquim gotétê”), o morador de rua quer que, no tempo certo, o rapaz procure a única pessoa no mundo capaz de traduzir aquelas palavras. Aquele é o pedido mais importante que ele poderia fazer e, portanto, está sendo direcionado para quem ele mais confia. Para não esquecer o que ouviu, o narrador anota a fala do amigo indígena em um caderno. E Pede complementa:
– Na hora certa, de alguma forma, você vai chegar a essa pessoa. Mas não se apavore porque falta muito tempo. Antes você precisa acertar a sua vida, Moleque. Antes você vai se casar, vai ter suas filhas e trabalhar. Depois você faz isso por mim. Tacuín-êré maludá potacá-erê tacón tétê... Faça por mim! Por favor, Moleque...
É claro que o narrador concorda. O problema é que, pouco tempo depois dessa inusitada conversa, Pede some das ruas de BH. Moleque nunca mais o encontra nem é encontrado pelo amigo. Querendo saber o que aconteceu com o mendigo que tinha poderes premonitórios, o jovem professor de cursinho passa a questionar os frequentadores habituais do Centrão da capital mineira. Ninguém parece saber o paradeiro de Pede. Somente uma prostituta informou que aquele morador de rua tão querido por todos morreu há pouco tempo. Ele foi encontrado, certo dia, inerte na sarjeta. Pede tinha os olhos esbugalhados de um jeito estranho e a boca um pouco aberta. O mais esquisito é que o pessoal do socorro, enviado para cuidar do caso, não conseguiu fechar os olhos do índio, que tinha uma cor diferente, meio esbranquiçada.
Mesmo ficando muitíssimo triste com o fim melancólico do amigo, Moleque segue sua vida. Ele se forma, começa a trabalhar em Engenharia, se casa e tem filhas. Trinta e seis anos depois da morte de Pede, o narrador do romance encontra o velho caderno enquanto remexe em coisas antigas. E lá está a frase no idioma indígena: “Tacuín-êré maludá tacón potaca-êré gotétê. Bambuská-aré taquim tétê”.
Comovido com as lembranças da época de juventude, Moleque resolve passear, como nos velhos tempos, pelas ruas do Centro de Belo Horizonte. E na caminhada pelas vias que tanto frequentou no passado, ele parece ouvir vozes em uma língua diferente: “Tacuín-êré maludá tacón tétê...”. Assustado e, depois, emocionado com a inexplicável voz que o acompanha pelo trajeto urbano, o agora senhor decide cumprir a promessa feita há pouco mais de três décadas e meia para o amigo indígena. Moleque irá atrás da pessoa que poderá traduzir a enigmática mensagem deixada nas folhas amareladas do caderno universitário.
Assim, começa a investigação do narrador. Em primeiro lugar, Moleque descobre, através da ficha do amigo na prefeitura, que o nome de Pede é Horácio Taíurú. Ele nasceu em 1901 em Corungaguá e faleceu em Belo Horizonte em 1980. Contudo, não há qualquer referência na Internet e nos registros municipais de uma localidade cujo nome seja Corungaguá. Depois de bater muita perna perguntando para Deus e o mundo sobre o misterioso local, Moleque encontra Antônio Curió, um caminhoneiro acostumado a rodar pelo Brasil e por Minas. É ele quem revela que Corungaguá é uma fazenda no interior de Minas Gerais. O proprietário se chama Anastácio Virgilino e vive em São José do Esquecido, uma pequena cidade mineira próxima à fazenda Corungaguá.
De posse de tal informação, Moleque larga a rotina na capital mineira e parte em viagem para São José do Esquecido. Chegando à casa de Anastácio Virgilino, o narrador é levado pelo proprietário da fazenda para Corungaguá. Lá, ele conhece Bambuská, a mãe de Pede (ou melhor, a mãe de Horácio). Aos 130 anos, a velha indígena é a última integrante da tribo taíurú. E ela é também a única pessoa que sabe o significado das palavras misteriosas do amigo falecido do Moleque. O problema é que a mãe de Pede/Horácio não fala nenhuma palavra de português. Para conversar com a índia, o narrador precisa da ajuda de Janaína, a filha de um funcionário de Anastácio. A moça tem algum conhecimento da língua taíurú e pode ajudar o forasteiro. O problema é que Janaína é aparentemente medrosa e Bambuská é considerada bruxa pelos moradores de Corungaguá e de São José do Esquecido.
Mesmo com todas as adversidades idiomáticas, Moleque e Bambuská conseguem conversar. E aí surgem as revelações bombásticas sobre a vida de Pede/Horácio e a trajetória da tribo taíurú. De repente, o engenheiro se vê metido em uma trama perigosa que exige a produção de um livro que narra a história do povo indígena. Sem saber, existem inimigos sorrateiros que vão fazer de tudo para impedi-lo a escrever a saga do povo taíurú. Será que o narrador conseguirá superar os incontáveis desafios que vão aparecer no caminho? Ele cumprirá integralmente a velha promessa dos tempos de faculdade?! A sorte está lançada!
“O Homem que Ria Demais” é um romance parrudo. Ele possui 360 páginas e está dividido em 31 capítulos. Na semana passada, levei cerca de sete horas e meia para concluir sua leitura. Para tal, precisei de três noites: terça, quarta e quinta-feira. Investi praticamente duas horas e meia em cada sessão noturna. Se você achou volumoso esse livro de Magela de Faria é porque não viu a publicação ficcional anterior do autor. “A Orquestra das Almas” tem 848 páginas. Está certo sim o que você leu – eu disse 848 páginas!!! É mais do que o dobro de “O Homem que Ria Demais”.
Li a versão em ebook (Kindle) de “A Orquestra das Almas” no final do ano passado, mas não fiz um post sobre essa obra na coluna Livros – Crítica Literária. Se bem que pela qualidade absurda da narrativa, o título de estreia de Magela merecia com certeza uma análise pormenorizada aqui no Bonas Histórias. Acho que levei mais de uma semana para concluir a leitura de “A Orquestra das Almas” em dezembro (e olha que eu leio muito rápido). Por essa perspectiva, achei “O Homem que Ria Demais” um romance mais enxuto, quase uma novela (brincadeirinha!!!).
Deixemos um pouco de lado “A Orquestra das Almas” e voltemos à análise propriamente dita de “O Homem que Ria Demais”. Para começo do nosso debate, preciso destacar a originalidade do enredo do novo romance de Magela de Faria. Se você gosta de tentar adivinhar para onde a história da obra ficcional vai caminhar (admito que eu sempre faço isso...), esqueça! O escritor mineiro nos surpreende a cada página. Eu fico encantado quando os autores brasileiros trazem tramas singulares e com as cores do nosso país. É o que encontramos nesse livro do início ao fim.
Um dos elementos mais interessantes dessa leitura foi a mistura de gêneros narrativos. É verdade que “O Homem que Ria Demais” deve ser classificado como romance fantástico. Até aí beleza. Contudo, ele tem também características de trama investigativa, thriller dramático, narrativa indianista contemporânea, saga histórica, drama familiar, ação ao melhor estilo bang bang, pegada de road story e elementos de lenda folclórica. Impossível não curtirmos tal miscelânia literária. Curiosamente, por qualquer perspectiva que você olhe “O Homem que Ria Demais”, ele ainda sim é um excelente livro – ótimo romance fantástico, bela trama investigativa, impecável thriller dramático, muito boa narrativa indianista contemporânea, excelente saga histórica, memorável drama familiar, ótima história de ação bang bang, inusitado road story e maravilhosa lenda folclórica.
Entre os principais destaques positivos de “O Homem que Ria Demais”, posso citar o ótimo primeiro capítulo, a belíssima ambientação, o excelente ritmo narrativo e a impecável construção das personagens.
A qualidade do capítulo inicial é algo fundamental para qualquer publicação ficcional que possua maiores ambições literárias. E Magela de Faria vai direto ao ponto e nos entrega uma narrativa ao mesmo tempo gostosa e veloz desde as primeiras páginas. Além do texto muitíssimo bem escrito, a abertura do romance tem vários componentes que intrigam os leitores: suspense, drama, figuras peculiares e muita ação. Para completar, há eventos (até então) inexplicáveis que atiçam nossa curiosidade.
O resultado concreto da excelência das 21 primeiras páginas (ou das 44 páginas iniciais se você considerar os dois primeiros capítulos como sendo a abertura da trama) é que o texto de “O Homem que Ria Demais” nos prende de um jeito que não queremos mais parar de lê-lo. Isso aconteceu comigo. Enfeitiçado que fiquei pelo enredo, comecei a ler sem parar a obra. Como li o livro à noite (em três noites consecutivas), só interrompi a leitura porque precisava acordar cedo nos dias seguintes (era meio de semana). Se não fosse por isso, acho que tentaria lê-lo em duas sessões ou mesmo em um único dia (se tivesse iniciado a leitura de manhãzinha).
Gostei também da ambientação do romance. A obra ficcional caminha muitíssimo bem por diferentes regiões do país (interior de Goiás, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e interior de Minas Gerais) e por diferentes épocas (do início do século XX aos dias de hoje). Nem sempre é fácil dar o tom correto para o clima de um romance histórico e de um road story. Para isso, o escritor precisa de repertório. Afinal, construir ambientações fidedignas e convidativas é uma das peças-chaves da boa ficção. E Magela de Faria entrega (1) ótimos cenários (espaço narrativo), (2) clima certeiro das diferentes épocas e lugares retratados e (3) atmosfera por vezes árida, sombria, violenta e injusta (com a cara do Brasil). Misture esses três componentes (espaço narrativo, clima da história e atmosfera narrativa) e temos a ambientação.
Por falar nisso, o interior de Minas Gerais de “O Homem que Ria Demais” se parece bastante com a ambientação dos melhores livros de Graciliano Ramos: uma localidade recheada de pobreza, opressão, violência, injustiças, desigualdade econômica e traições de todos os tipos. Seria Pede/Horácio uma versão indígena de Fabiano, protagonista de “Vidas Secas” (Record)? Seria Anastácio Virgilino uma espécie de Paulo Honório, narrador de “São Bernardo” (Martins)? E Moleque seria a reencarnação literária de João Valério, personagem central de “Caetés” (BestBolso)? Para quem se amarra em comparações intertextuais, a resposta pode ser positiva.
Quando elogio o ritmo narrativo de “O Homem que Ria Demais”, preciso destacar que não é fácil acertar a mão quando o assunto é velocidade do romance. Somente escritores realmente talentosos conseguem unir tramas com grande riqueza literária e histórias ágeis. O mais comum é termos: livros com muitas descrições, mas de dinâmica mais lenta; e obras velozes, mas pobres literariamente. Estou falando isso porque achei “O Homem que Ria Demais” um romance perfeito em relação ao ritmo narrativo (principalmente na primeira metade). A agilidade da trama vem junto com a descrição inteligente de personagens, cenários, cenas e situações. Como Magela de Faria conseguiu tal (e)feito? Se eu soubesse como fazer, eu seria autor ficcional e não crítico literário, né? O que posso dizer é que “O Homem que Ria Demais” tem um ritmo narrativo invejável na maior parte do tempo.
Uma das características do dinamismo do romance (usei o termo “característica” porque fiquei na dúvida se o dinamismo seria causa ou consequência da alta velocidade do ritmo narrativo) é a alteração do conflito à medida que as páginas avançam. É como se tivéssemos mais de um livro na mesma publicação.
Note que, no início de “O Homem que Ria Demais”, o que move o narrador principal (há mais de um narrador, tá?) é descobrir a tradução para as palavras inexplicáveis de Pede, o mendigo simpático e altruísta que habitava as ruas do Centro de BH no final da década de 1970. Uma vez descoberto o significado da fala misteriosa do amigo falecido, o narrador mergulha nos dramas e nos segredos sombrios dos moradores da fazenda Corungaguá. Depois, ele precisará escrever o livro definitivo sobre os taíurús, conforme pedido de Bambuská, a mãe de Pede. E, por fim, como se fosse pouco, terá que sobreviver às investidas dos inimigos de Bambuská e Anastácio Virgilino, proprietário das terras de Corungaguá. Adoro quando o romance apresenta várias camadas narrativas e possui distintos (e complementares) conflitos ao longo dos capítulos.
Outra questão que preciso comentar mais a fundo sobre esse romance é a belíssima construção das personagens. Quase todas as principais figuras retratadas na trama são redondas. Apenas uma ou outra pessoa (o protagonista e a vilã, no caso) são planas. A maior complexidade da psicologia e da moral das personagens de “O Homem que Ria Demais” confere nuances saborosos à história e dá margens para as incontáveis surpresas da narrativa. Afinal, ninguém (salvo a antagonista) é totalmente ruim e ninguém (salvo o herói) é totalmente bonzinho aqui.
No caso de Pede/Horácio, ele é sim uma personagem plana (quase caricata). Entretanto, o protagonista (para mim, o protagonista é Pede e não Moleque) possui características tão peculiares e tão sensacionais que é difícil criticar sua construção ficcional. Curiosamente, esse mesmo efeito já tinha aparecido em “A Orquestra das Almas”. Iannus Maltiescu é uma figura extremamente plana. Ele não faz nadinha de errado ao longo de quase mil páginas. Mesmo assim, é uma personagem adorável e cativante, além de extremamente verossímil.
Aproveitando que estou comparando “O Homem que Ria Demais” com “A Orquestra das Almas”, é legal comentar a diferença de gênero narrativo entre os dois romances. Na minha visão, a primeira obra de Magela de Faria deve ser classificada como um título do realismo fantástico. Já a segunda pode ser encarada como uma publicação fantástica. Digo isso porque temos, em “A Orquestra das Almas”, uma trama real com apenas um elemento fantástico – as conversas dos seres humanos com Sangue Bom e Sister, respectivamente, um morcego e uma ratazana. Portanto, é realismo fantástico (como o próprio nome já diz, algo real com uma pitadinha de sobrenatural). No caso de “O Homem que Ria Demais”, todo o enredo está ancorado em características sobrenaturais do protagonista e de sua família indígena. Ou seja, é uma história fantástica na sua essência (não tem o componente real enraizado na base da narrativa como lá no realismo fantástico).
Em relação ao título de “O Homem que Ria Demais”, ele é uma mistura intertextual de “O Homem que Sabia Demais” (The Man Who Knew Too Much: 1956), filme memorável de Alfred Hitchcock, e “O Homem que Ri” (Amarilys), clássico de Victor Hugo. Pelo menos eu sempre me lembro dessas obras quando falo/ouço/escrevo o nome do novo livro de Magela de Faria. Só não sei se o autor fez isso de maneira proposital ou involuntária. O que sei é que, por várias vezes, enquanto produzia este post para a coluna Livros – Crítica Literária, escrevi “O Homem que Sabia Demais” e “O Homem que Ri” quando me referia a “O Homem que Ria Demais”. Ainda bem que faço uma rápida revisão textual antes de publicar os posts no Bonas Histórias (acho que tirei todas as menções equivocadas ao nome do segundo romance de Magela).
O projeto gráfico dessa publicação ficcional é extremamente caprichoso. “O Homem que Ria Demais” possui uma capa bonita (adorei a ilustração de Délcio Almeida!!!) e uma diagramação interna sensível e impactante (resultado do belo trabalho de Letícia Ribeiro Ianhez). O visual do livro tornou sua leitura ainda mais gostosa. Repare que a ilustração na capa de “O Homem que Ria Demais” lembra bastante as ilustrações das capas dos títulos espíritas – em uma associação direta ao conteúdo fantástico do romance (com muitas passagens de cunho espiritual).
Já que estamos falando da equipe que deu apoio ao novo romance de Magela de Faria, preciso elogiar a revisão de Tulio Costa, da Versão Final. Não encontrei nenhum errinho nem qualquer equívoco textual em mais de três centenas de páginas, algo que normalmente surge em romances longos. Se a narrativa do livro já é naturalmente gostosa e encantadora, a revisão impecável do texto dá maior valor às páginas de “O Homem que Ria Demais”. Infelizmente, esse esmero não foi visto em “A Orquestra das Almas”. Pelo menos não considerei o texto da versão em ebook da obra de estreia de Magela tão caprichado. Ele continha muitos errinhos: de palavras repetidas e problemas de digitação até erros gramaticais.
Mesmo com vários aspectos elogiosos, “O Homem que Ria Demais” também tem alguns elementos negativos que precisam ser listados em uma análise crítica imparcial (algo que o Bonas Histórias faz sempre!). É verdade que a maioria desses pontos não atrapalha substancialmente a excelência da narrativa ficcional nem prejudica a experiência de leitura. Mesmo assim, teria sido legal se tais pontos tivessem sido trabalhados de um jeito diferente, né?
O primeiro componente negativo do livro surge na quarta-capa. No último parágrafo da apresentação de “O Homem que Ria Demais”, temos a seguinte frase: “Uma história inverossímil, mas tão sensível e dinâmica que parece ser baseada em fatos da vida de um de nós”. O problema, na minha opinião, está no uso do termo inverossímil. Por que acusar essa obra de Magela de Faria de atentar contra a realidade, hein?! Só porque se trata de um romance fantástico?!!! Acho isso um preconceito literário (para não dizer uma completa ignorância dos conceitos ficcionais). Do ponto de vista da Teoria Literária, uma narrativa fantástica não é necessariamente inverossímil. Ela só apresenta um tipo de realidade (a tão famosa realidade ficcional) diferente daquela que o leitor tem no dia a dia. Em nenhum momento, “O Homem que Ria Demais” quebra as regras propostas por seu pacto ficcional. Daí minha reticência quanto à expressão “uma história inverossímil”.
Se a história não é inverossímil (mesmo com a série de passagens fantásticas), o mesmo não pode ser dito dos discursos e da narrativa em si. Apesar de possuir excelente qualidade textual, os diálogos de “O Homem que Ria Demais” pecam às vezes pela contradição. Ora Bambúska diz que não se apega à cronologia dos virgilinos, ora expressa a passagem do tempo em anos com enorme facilidade. Como isso é possível?! Não sei. A mãe de Pede também conversa em sua língua natal e, pela magia, suas palavras são automaticamente traduzidas na mente do narrador. Até aí beleza. Porém, muitas vezes a indígena não consegue expressar um termo específico ou uma palavra determinada em português. Como isso ocorre se sua fala está sendo automaticamente traduzida, né?! Juro que não entendi.
Em alguns momentos específicos, os discursos se tornam ligeiramente artificiais. Tal fato ocorre geralmente quando as conversas ficam excessivamente didáticas e/ou muito descritivas (algo fundamental para a compreensão da trama pelo leitor, mas um aspecto totalmente incompatível com o diálogo normal das pessoas no dia a dia). Por exemplo, em cenas de altíssima tensão dramática ou de falta de tempo, as personagens proseiam com enorme didática e calma, como se fossem possíveis o controle emocional e a necessidade de explicações que elas já conhecem (mas os leitores não).
Se pudesse dar um único conselho para Magela de Faria (olha as dicas de melhoria que você pediu, Admilson!), diria para ele trabalhar melhor os diálogos em suas futuras publicações ficcionais. Em “A Orquestra das Almas”, também é possível encontrarmos alguns vacilos nas conversas das personagens, principalmente pela priorização do discurso direto quando o mais pertinente, em alguns casos, seria o uso do discurso indireto ou mesmo do discurso indireto livre. Quando o romance só tem discurso direto, o texto corre o risco de ficar gigantesco, ter passagens repetitivas e se tornar cansativo (ao estilo de “senta que lá vem a história...”).
Em relação à inverossimilhança da narrativa, ela se deve fundamentalmente às inovações trazidas por Magela de Faria. Aqui preciso fazer antes uma observação. A maioria dos capítulos de “O Homem que Ria Demais” é narrada em primeira pessoa pelo Moleque. Por isso, o chamei nesta análise crítica de narrador. Porém, há capítulos narrados em terceira pessoa (por um narrador onipresente e onisciente com liberdade para frequentar diferentes cenários e épocas e para acompanhar várias personagens) e em primeira pessoa por Janaína. Vale a pena dizer que essas partes mais alternativas (fora do padrão da narrativa em primeira pessoa feita pelo Moleque) são fundamentais para dar suspense e adrenalina à trama, apesar de prejudicar a qualidade do romance do ponto de vista do Foco Narrativo.
Feita tal ressalva, voltemos à questão da inverossimilhança da narrativa. Achei pouco crível quando os narradores em primeira pessoa (Janaína e Moleque) descrevem em tempo real os fatos angustiantes vividos na fazenda Corungaguá. Por mais que esse recurso dê ação e emoção ao texto, nota-se um grande descompasso entre a realidade de testemunhar ao vivo os acontecimentos e o que eles expressam efetivamente na narrativa. Confesso que achei essas partes meio artificiais, meio forçadas. Como proposta experimental, esse expediente literário é válido e interessante. Porém, o resultado prático destoou do restante do livro quando o assunto é verossimilhança.
Há sim problemas de Foco Narrativo em “O Homem que Ria Demais” (como também havia em “A Orquestra das Almas”). E eles se devem também às inovações narrativas que comentei nos dois últimos parágrafos. Até entendo que o narrador tenha justificado, nos capítulos finais do romance, que os textos em terceira pessoa foram construídos a partir de conversas posteriores com as personagens que estiveram nas cenas em que ele não esteve presente. Até aí, tudo bem. Quem sou eu para questioná-lo?!
O que gera incômodo em quem conhece a Teoria Literária e os aspectos do Foco Narrativo é: e como Moleque teve acesso, então, aos pensamentos e aos sentimentos de personagens que ele não conversou depois, hein? É o caso de Dolores. Em várias passagens em terceira pessoa de “O Homem que Ria Demais”, o narrador tem acesso à mente e à emoção da vilã. E como foi possível isso se Moleque não conversou individualmente com ela?! Juro que não entendi. Além disso, há cenas em que só Dolores esteve presente. Como alguém saberia o que ela fez para contar para o Moleque, hein?
Essas inconsistências são sim um problemão de Foco Narrativo, algo que na certa não irá incomodar os leitores recreativos, mas que poderá causar arrepios naqueles que estudam os detalhes da produção literária. Se eu pudesse dar um novo conselho para Magela de Faria (olha a segunda dica aí, Admilson!), diria para ele se atentar aos aspectos técnicos do narrador.
A parte final do romance tem um caráter de dramalhão de telenovela mexicana ou de telenovela venezuelana. Também lembra um pouco os escândalos dos programas popularescos de TV, ao melhor estilo teste de DNA do Ratinho ou dos barracos ao vivo de Casos de Família. Em outras palavras, sabe aquela história em que os filhos descobrem paternidades e maternidades diferentes da que acreditavam, incontáveis casos amorosos ruidosos e segredos familiares inimagináveis?! Pois saiba que “O Homem que Ria Demais” tem tudo isso nos últimos capítulos. Se por um lado esse componente torna a trama surpreendente e imprevisível (uma qualidade indiscutível do romance de Magela de Faria), por outro lado tal característica confere tintas estereotipadas e exageradas ao enredo.
É preciso alertar que há alguns clichês narrativos em “O Homem que Ria Demais”: disparo de arma de fogo que não sabemos de onde veio (aspecto comum nos romances policiais); descobertas surpreendentes obtidas quase que por acaso (qual thriller investigativo não tem esse componente, né?); grau de parentesco alternativo (como já disse, um elemento fundamental em qualquer telenovela latino-americana); e cegueira surpreendente do protagonista (à lá “Demolidor – O Homem Sem Medo” e “O Livro de Eli”). Agora vem a grande questão: isso me incomodou? Confesso que não. Prefiro um ou outro clichezão dentro de uma história excelente e em um texto maravilhoso do que uma narrativa sem qualquer clichê, mas com uma trama fraca e sem originalidade.
Por tudo isso, admito que adorei a leitura de “O Homem que Ria Demais”. E, desde já, fiquei fã da literatura de Magela de Faria. Quando ele publicar os próximos romances, tenham certeza de que estarei na primeira fila da livraria para conhecer seus próximos passos na ficção comercial. Pelo que o autor me confidenciou há algumas semanas, ele está desenvolvendo neste momento sua terceira narrativa longa. O nome provisório do novo/futuro romance é “A Ressurreição dos Ossos”. A ideia de Magela é terminar o texto do livro até o final de 2024. Aí a publicação seria para o ano seguinte. Aguardemos, pessoal. Dessa cartola, tenho certeza de que ainda sairão muitos coelhos interessantes.
Gostou deste post e do conteúdo do Blog Bonas Histórias? Se você é fã de literatura, deixe seu comentário aqui. Para acessar as demais análises literárias, clique em Livros – Crítica Literária. E aproveite para nos acompanhar nas redes sociais – Facebook, Instagram, Twitter e LinkedIn.