Lançado em dezembro de 2021, o segundo título ficcional do escritor brasileiro dá sequência à saga sinistra do médico Octávio Albuquerque Júnior.
Hoje, vou comentar um romance que estava com uma vontade danada de ler (e discutir aqui no Bonas Histórias) há um tempinho. Desde que soube da publicação de “O Contra-ataque” (Valentina), o livro 2 da série “A Contrapartida”, tinha colocado esse título de Uranio Bonoldi na lista de análises da coluna Livros – Crítica Literária. Acho que expressei tal intenção quando apresentei os lançamentos do mercado editorial no primeiro bimestre de 2022. E falei sobre isso também quando explorei, em setembro do ano passado, os pormenores de “A Contrapartida” (Valentina), o volume de estreia da saga protagonizada pelo polêmico Doutor Octávio Albuquerque Júnior. A ideia era sim fazer um post de “O Contra-ataque” para o blog já no comecinho de 2022. Aí você sabe: leio um livro aqui, analiso outro acolá, leio mais um depois, avalio outro lá na frente... e nada de mergulhar nas páginas do novo romance de Bonoldi. Ai, ai, ai. Diante de tanta novidade boa, é difícil ler tudo o que pretendo e na velocidade que gostaria.
A procrastinação (ou deveria usar o termo “adiamento consecutivo”?) só acabou quando fui surpreendido, em meados de maio, com o recebimento de “O Contra-ataque”. Para minha satisfação, o próprio autor gentilmente me presenteou com seu novo trabalho. Valeu, Uranio!!! Talvez ele tenha pressentido que eu precisasse mesmo de um empurrãozinho. Ou estivesse incomodado com a minha demora. Vai ver pensou: “Promessa de crítico literário é igual a de político em época de eleição – começa no primeiro soluço de empolgação e termina na primeira curva da vida”. Como não resisto a uma obra ficcional com uma carinhosa dedicatória que tanto me envaidece, aproveitei a friaca paulistana para resolver essa pendência que tinha feito comigo mesmo (e que já começava a me envergonhar perante o público do Bonas Histórias).
E que grata foi a minha surpresa com a leitura de “O Contra-ataque” no último final de semana. Esse título é ainda melhor e mais emocionante do que “A Contrapartida”. Se eu já tinha gostado muito do primeiro romance da série, agora estou definitivamente encantado com a qualidade absurda da literatura de Uranio Bonoldi e com a proposta dessa coleção ficcional. Para quem possa ter cogitado que o livro anterior da saga de Tavinho, rapaz que se aproveitou de um macabro ritual indígena para progredir nos estudos e na profissão de médico, saiu boa porque Uranio teve “sorte de principiante”, leia a nova publicação. Sorte quem teve fomos nós que assistimos à consolidação de um ótimo nome da nova safra da literatura brasileira. Mais à vontade no posto de autor ficcional, Uranio Bonoldi caminha a passos largos para entrar na primeira prateleira do suspense/terror nacional ocupada hoje por figuras como Raphael Montes, autor de “Suicidas” (Benvirá) e “O Vilarejo” (Suma das Letras), Daniel Galera, autor de “A Barba Ensopada de Sangue” (Companhia das Letras) e “Mãos de Cavalo” (Companhia das Letras), e Rô Mierling, autora de “Contos e Crônicas do Absurdo” (Multifoco) e “Diários de uma Escrava” (Darkside).
A série “A Contrapartida” começou com o romance homônimo, publicado em março de 2019. A obra de estreia de Uranio Bonoldi na ficção comercial se tornou rapidamente um grande sucesso na Loja Kindle com milhares de leitores. Depois de permanecer entre os livros mais vendidos do país na plataforma da Amazon na categoria thriller em 2019 e 2020, “A Contrapartida” foi traduzido para o inglês e o espanhol e lançado nesses idiomas no início de 2021 em edições digitais. A versão física e em português do livro foi desenvolvida pela Valentina, jovem e atuante editora carioca.
Essa história deverá chegar nos próximos anos aos cinemas brasileiros. Uranio não esconde de ninguém que sonha em ver a adaptação de seus livros para as telonas. O roteiro do longa-metragem “A Contrapartida” foi aprovado pela ANCINE (Agência Nacional do Cinema) em novembro de 2021 e está agora na fase de captação de recursos e de patrocinadores via leis de incentivo cultural. A direção do filme será de Lion Andreassa, o roteiro cinematográfico ficará com Xandy Novask e a produtora será a Lumix Art Films. O orçamento do longa é de aproximadamente R$ 8,5 milhões, um valor interessantíssimo que mostra as ambições dos produtores. Para os apaixonados pela sétima arte, há inclusive um teaser do filme “A Contrapartida” (uma espécie de pré-trailer) à disposição. Quem sabe não vejamos essa produção sendo analisada em breve na coluna Cinema do Bonas Histórias, hein?!
Empolgado com a enorme e positiva repercussão da obra inicial, Uranio Bonoldi lançou-se na tarefa de dar sequência à trama de “A Contrapartida”. Vale a pena esclarecer que desde o início a ideia do autor era produzir uma série literária sobre o “poder das decisões”. Prova disso são os vários elementos deixados propositadamente soltos no primeiro romance, algo que instiga a curiosidade dos leitores em prosseguir acompanhando a saga de Tavinho. Assim, surgiu “O Contra-ataque”, o segundo volume da coleção. Publicado em dezembro de 2021, o novo livro de Uranio foi escrito no primeiro semestre do ano passado e aborda o “poder da vingança”. Nele, o Doutor Octávio Albuquerque Júnior ganha um novo e temido adversário: o irmão de Iaúna. Iaruanã (agora chamado de Carlos Rodrigues) já havia aparecido em “A Contrapartida” e os leitores mais atentos se recordarão que havia indícios que o indígena não havia morrido durante a fuga desesperada da aldeia Moxiruna.
Curiosamente, “O Contra-ataque” só não começou a ser desenvolvido antes por causa da pandemia do novo coronavírus. Se o distanciamento social obrigatório (no caso brasileiro, o correto seria dizer “quase obrigatório”) foi positivo para muitos escritores que enfim encontraram tempo para produzir projetos editoriais há tanto tempo adiados, no caso de Uranio Bonoldi ocorreu exatamente o inverso. Como consultor em processos de tomada de decisão, estratégias empresariais e governança corporativa (além de ser palestrante e professor da Fundação Dom Cabral), ele se viu mergulhado como nunca no trabalho empresarial. Tão logo foi decretado no país o confinamento/distanciamento social, as operações das empresas-clientes de Uranio entraram em colapso. O segundo e terceiro trimestres de 2020 foram terríveis para as companhias nacionais e internacionais. Diante das incertezas sanitárias, sociais, políticas e econômicas, elas foram obrigadas a rever completamente seus negócios. Aí o trabalho do consultor atropelou o trabalho do escritor. Depois de longas e estressantes jornadas na frente do computador, em intermináveis reuniões por videoconferência, quem se atreveria a iniciar um novo romance, né?
Tão logo as coisas melhoraram no universo corporativo (pelo menos no ponto de vista da estratégia e do foco empresarial) no final de 2020, Uranio Bonoldi pôde voltar à atividade que para nós é a principal: a escrita ficcional. Em pouco mais de um ano, ele não só desenvolveu a parte 2 da série “A Contrapartida” como também fechou o texto da parte 3, que nesse momento se encontra em fase de revisão na Editora Valentina. O terceiro título da coletânea deverá chegar às livrarias brasileiras no final de 2022 e tratará do “poder do não”. Desconfio (é só desconfiança mesmo; não tenho essa informação, tá?) que o próximo romance, que tem o nome provisório de “O Outro Lado da História”, abordará a trama pela perspectiva de Iaúna. Atualmente, Uranio já trabalha no texto do quarto volume da saga, que será sobre “o poder do perdão”. O quinto e último título da pentalogia de “A Contrapartida” será sobre o “poder da redenção” e deverá estar disponível aos leitores nacionais entre 2024 e 2025.
“O Contra-ataque” começa exatamente no ponto em que “A Contrapartida” se encerrou. Diria mais: a segunda parte da série literária de Uranio Bonoldi dá prosseguimento à cena final do romance anterior. Para quem não estiver lembrado de como “A Contrapartida” terminou, vou recordar. Com isso, obviamente, precisarei revelar o spoiler do primeiro título da saga – não há alternativa. Se você ainda não o leu, meu conselho é pular esse e os próximos três (ou quatro!) parágrafos desse post. Na certa, minhas linhas estragarão grande parte das surpresas que os novos leitores de “A Contrapartida” terão. Se você já leu o primeiro volume da coleção, siga em frente numa boa. Não irei revelar o spoiler de “O Contra-ataque”. Não apresentamos os desfechos das obras analisadas no Bonas Histórias. Só estou contando como acabou o romance anterior aqui na coluna Livros – Crítica Literária porque tal desenlace é exatamente o pontapé inicial da nova publicação.
O enredo da nova narrativa de Uranio abre-se com o fatídico acontecimento de 21 de abril de 2016. Às 15h15, Tavinho caminha pelas ruas de Santa Cecília a passos largos e com as mãos trêmulas. O bem-sucedido médico está desesperado, em choque. O Doutor Octávio Albuquerque Júnior acaba de descobrir que sua mãe, Cristina Costa Albuquerque, estava na casa de Iaúna que ele recém-incendiou. Pelo menos é o que diz uma mensagem antiga que ele vê no celular somente nesse momento. A mãe informa que iria, naquele dia e horário, visitar a velha índia para um chá com bolo de fubá. Muito ocupado com os preparativos do assassinato da antiga governanta da família, o filho não pôde ver o recado deixado por Cristina na véspera. Agora, todavia, Inês está morta. Ou melhor, tanto Cristina quanto Iaúna foram incendiadas pelo protagonista.
Tavinho queria se vingar de Iaúna por causa das mentiras que ela sempre lhe contou. Entre os segredos dela estavam: o envolvimento da indígena na morte do Prof. Albuquerque, pai de Tavinho; os efeitos colaterais do consumo do elixir da tribo Moxiruna, algo jamais mencionado por Iaúna e que estariam roubando a juventude do médico; e a intromissão desmedida da índia nos relacionamentos amorosos do filho de Cristina, o que invariavelmente terminava mal para ele e para as suas namoradas. Na cabeça da personagem principal da série “A Contrapartida”, nada melhor do que tacar fogo na residência da antiga governanta e matar sua grande inimiga de uma vez por todas. Dessa maneira, Doutor Octávio ficaria livre das maldades da velha governanta, poderia se vingar do assassinato do pai e, acima de tudo, deixaria ocultos os rituais macabros do povo Moxiruna que ele vinha participando nos últimos anos. Vale a pena esclarecer que graças a esses rituais ele conseguira uma inteligência prodigiosa.
A sensação de alívio de assassinar Iaúna é, contudo, interrompida imediatamente com a notícia de que Dona Cristina também estava naquele endereço. Tavinho não se perdoa e cai no choro. Saber que matou a própria mãe, uma pessoa boníssima que sempre o amou incondicionalmente e se dedicou a caridade ao próximo, é demais para ele. Sem se preocupar em ocultar sua presença no bairro, algo necessário para alguém que acabou de cometer um (ou seriam alguns?!) crime(s), o médico grita e xinga pelo trágico destino da família. Não por acaso, ele se torna alvo dos olhares acusadores da vizinhança, enquanto os carros de polícia e os caminhões do corpo de bombeiro chegam ao imóvel consumido pelas chamas.
Não é preciso dizer que os dias seguintes à morte de Cristina e Iaúna são envoltos em uma grande tristeza para Tavinho. O protagonista enterra as duas mães, como as mulheres falecidas eram vistas por ele, e recebe a solidariedade de amigos e colegas. Paralelamente, o doutor precisa se explicar para a polícia que investiga os motivos do incêndio na residência de Santa Cecília. A única nota feliz desse período trágico é o reencontro com Martha Moss, a ex-noiva e antiga paixão de Tavinho. Após uma conversa franca com a moça, o médico chega à conclusão que o relacionamento deles fracassou por causa da inveja de Iaúna. A velha índia, apaixonada pelo rapaz, fez tudo o que podia (e não podia!) para melar o amor do jovem casal. Agora cientes disso, Octávio Albuquerque Júnior e Martha Moss se reconciliam. Outra vez juntos, eles sonham novamente em subir ao altar e reconstruir a vida depois de tantos dissabores.
Então, está tudo bem e tranquilo agora, certo? Nananinanão! Sem saber, Tavinho ganha um oponente ainda mais cruel e perigoso. Estamos falando de Carlos “Pajé” Rodrigues. Quem? Carlos Rodrigues! E quem seria Carlos Rodrigues, ô pai? Ele é o irmão de Iaúna e já havia aparecido pontualmente em “A Contrapartida”. Inclusive, no primeiro romance da série, havia indícios de que Iaruanã (nome indígena de Carlos) não tinha morrido na fuga da aldeia Moxiruna. Quem teve essa percepção (admito que estou nesse grupo de leitores) descobrirá que o homem está mesmo vivinho da Silva e fará de tudo para se vingar de Octávio Albuquerque Júnior. Atualmente, Carlos “Pajé” Rodrigues (Pajé é o apelido pela origem indígena – ele não gosta de ser chamado de Iaruanã) é deputado federal e chefão de uma das principais madeireiras clandestinas do país.
E por que Carlos/Iaruanã quer ver a caveira do doutorzinho, hein? Além de ter atentado contra a vida de Iaúna, algo que um irmão sanguinolento não deixará barato, Tavinho matou dois funcionários do deputado-empresário. Lembremos que nos capítulos derradeiros de “A Contrapartida”, o médico viajou para Nova Andradina, no Mato Grosso do Sul, para dar cabo de Cleverson e Joilson. A dupla que trabalhava na madeireira ilegal de Carlos Rodrigues estava envolvida com a morte do pai de Tavinho. Ao descobrir o paradeiro dos responsáveis pelo assassinato do Professor Albuquerque, Octávio não titubeou: partiu para o Centro-Oeste para se vingar de Cleverson e Joilson. Por tudo isso (e por outras coisas mais que não podem ser ditas para não estragar as surpresas do novo romance), o protagonista da série de Uranio Bonoldi se tornou alvo da ira de Carlos/Iaruanã, um dos sujeitos mais perigosos do Brasil. O irmão de Iaúna não irá descansar enquanto o filho de Dona Cristina não tiver arruinado e virado comida de minhoca.
É importante salientar que além da maldade imensurável e do poder político, Carlos Rodrigues ainda tem a seu lado a força, a juventude e a inteligência provenientes do elixir da tribo Moxiruna. Sim, ele segue praticando o ritual indígena que lhe confere poderes muito especiais. Em seu caso, Carlos não carrega nenhuma culpa pelas mortes ocasionadas para a obtenção das matérias-primas do elixir. Tavinho conseguirá evitar as investidas do temido rival? Descobrirá o médico os planos criminosos de Carlos Rodrigues a ponto de montar um plano de contragolpe? Esses são os novos mistérios que o segundo volume da série “A Contrapartida” nos reserva.
“O Contra-ataque” é um romance mais volumoso do que “A Contrapartida”. O segundo título ficcional de Uranio Bonoldi possui 400 páginas (o anterior tinha 336 páginas) e está dividido em quatro partes: I – “O Passado Pode Ser Enterrado?”; II – “Quanto Tempo Pode Durar a Felicidade?”; III – “O Poder das Consequências”; e IV – “O Poder Pelo Poder”. Levei pouco mais de nove horas para percorrer integralmente os 53 capítulos desse livro no último final de semana. Obviamente, não li tudo ininterruptamente. Precisei de dois dias (sábado e domingo) para concluir a leitura. Cheguei à metade da obra no final da manhã do primeiro dia (partes I e II) e avancei à outra metade (partes III e IV) na tarde do segundo dia. Para quem curte longuíssimas sessões de leitura, é até possível ler esse título em um único dia (início de manhãzinha e término à noite).
O primeiro aspecto que precisa ser comentado sobre “O Contra-ataque” é o começo do livro. Desde que soube da continuação de “A Contrapartida”, estava curioso para ver como Uranio Bonoldi iria retomar a história do Doutor Octávio Albuquerque Júnior. Nem sempre a escolha de como reiniciar uma série narrativa é tão óbvia como as pessoas pensam. Será que o autor faria um resumo dos acontecimentos do volume anterior para os leitores se recordarem das principais passagens? Afinal, há quem tenha lido “A Contrapartida” há mais de três anos. E seria possível ler “O Contra-ataque” sem ter lido “A Contrapartida”? Se você acha estranha essa possibilidade, acredite em mim: sempre há quem leia a segunda parte de uma série literária sem ter lido a primeira!
E qual foi a decisão de Uranio, hein?! Ele simplesmente abre a nova obra no exato ponto em que terminou o romance anterior. Ou seja, não temos enrolação nem recapitulação. O leitor já cai no meio da cena mais emblemática e desesperadora de “A Contrapartida”. Achei espetacular essa alternativa. As lembranças dos acontecimentos passados e do enredo da coletânea vem naturalmente à nossa mente, sem que seja preciso gastar novos capítulos para isso. Para quem aprecia séries literárias, esse expediente narrativo (emendar um livro no outro sem respiro, muitas vezes usando uma mesma cena como trampolim dramático) vem sendo usado pelos principais ficcionistas internacionais.
De cabeça, posso citar a “Tetralogia Napolitana” de Elena Ferrante – “A Amiga Genial” (Biblioteca Azul), “História do Novo Sobrenome” (Biblioteca Azul), “História de Quem Foge e de Quem Fica” (Biblioteca Azul) e “História da Menina Perdida” (Biblioteca Azul) –, a série “1Q84” (Alfaguara) de Haruki Murakami, a “Trilogia da Bicicleta Azul” de Régine Deforges – “A Bicicleta Azul” (BestBolso), “Vontade de Viver” (BestBolso) e “O Sorriso do Diabo” (BestBolso) –, a série infantojuvenil de estreia de Markus Zusak – “O Azarão” (Bertrand Brasil), “Bom de Briga” (Bertrand Brasil) e “A Garota que Eu Quero” (Intrínseca) – e a coleção Millennium de Stieg Larsson – “Os Homens que Não Amavam as Mulheres” (Companhia das Letras), “A Menina que Brincava com Fogo” (Companhia das Letras) e “A Rainha do Castelo de Ar” (Companhia das Letras). Essas coletâneas literárias têm obras que começam e terminam em sequências lineares e possuem cenas quebradas ao meio (uma parte fica em uma obra e outra parte vai para o volume seguinte).
Então quer dizer que a iniciativa de Uranio não é tão válida assim, né?! Não foi isso o que eu quis dizer. O uso de algo bem-sucedido no mercado editorial é sempre interessante e uma estratégia de autores atentos às melhores práticas do fazer literário (no mundo corporativo, os profissionais chamam tal conceito de benchmarking). O mais legal é que o escritor brasileiro foi além e fez algo que não encontrei nas outras séries literárias. Além de começar o segundo título onde o primeiro terminou, Uranio Bonoldi construiu seu novo romance de um jeito que, acredito eu, dê para lermos “O Contra-ataque” independentemente da leitura de “A Contrapartida”. Será uma viagem da minha parte?! Até pode ser. Afinal, não tenho certeza dessa afirmação que acabei de fazer. Como li “A Contrapartida” duas vezes (uma no ano passado e outra agora, um dia antes de mergulhar nas páginas de “O Contra-ataque”), não sei exatamente se entenderia a continuação da história sem ter conhecido a primeira parte. Porém, confesso que fiquei com a sensação de que a experiência de leitura individual também seja possível (mesmo assim, não custa nada ler a primeira obra – até porque ela é ótima!).
Ainda falando do primeiro capítulo de “O Contra-ataque”, temos aqui algo que Uranio Bonoldi já tinha feito em “A Contrapartida”: a abertura do romance está primorosa. O escritor sabe como começar suas tramas ficcionais, o que deixa os leitores curiosos e ávidos por entender o que está acontecendo. As cenas iniciais de “A Contrapartida” e “O Contra-ataque” são recheadas de desespero, violência, mistério, sinestesia, recordação e inquietação do protagonista. Nesse sentido, Uranio pode ser comparado a Harlan Coben, norte-americano autor de best-sellers como “Quebra de Confiança” (Arqueiro), “Não Conte a Ninguém” (Arqueiro), “Confie em Mim” (Arqueiro) e “Seis Anos Depois” (Arqueiro).
Em relação à estrutura narrativa, o novo romance é idêntico à obra anterior da série “A Contrapartida”. Temos aqui um narrador em terceira pessoa que não fica colado a nenhuma personagem especificamente e que revela os acontecimentos com verbos no presente. O narrador de “O Contra-ataque” flutua livremente pelos cenários e pelos espaços temporais em busca dos instantes mais emblemáticos e emocionantes da trama. Por falar em espaço temporal, o dinamismo do livro é conseguido exatamente pelo constante salto para frente (flashforward) e pulos para trás (flashback). Em alguns capítulos, a história avança (horas, dias, semanas, meses ou anos). Em outros capítulos, a trama regride (dias, semanas, meses, anos ou décadas).
Quase sempre que se volta para o passado, “O Contra-ataque” retrata a vida de Carlos Rodrigues/Iaruanã. Acompanhamos sua trajetória da infância e adolescência na Floresta Amazônica até chegar à posição de deputado em Brasília e de poderoso empresário da região Centro-Norte. Não por acaso, essa linha narrativa é um dos aspectos mais deliciosos da obra. O antagonista do novo título de Uranio Bonoldi aparece mais do que o próprio protagonista da série – temos aqui quase que um romance de formação do grande vilão da saga. Essa mistura de presente (confronto entre Tavinho e Carlos) e passado (detalhamento da ascensão financeira, profissional e social de Carlos “Pajé” Rodrigues) exige certa atenção por parte dos leitores e é a chave para o suspense do enredo. A maioria das surpresas dessa publicação está exatamente nesse esconde-revela entre os elementos antigos e os componentes contemporâneos das personagens principais.
Por falar em surpresas, as maiores reviravoltas de “O Contra-ataque” são reservadas para o passado de Carlos e não tanto para o presente/futuro de Tavinho. Se você se ativer exclusivamente aos desdobramentos da vida do protagonista, na certa achará “A Contrapartida” uma obra com muito mais mudanças do que o segundo romance da série. Porém, se você olhar especificamente para a construção da figura do antagonista, talvez decrete o jogo empatado entre o primeiro e o segundo título da série “A Contrapartida” quando o quesito é emoção e reviravoltas dos enredos.
Em relação à qualidade em si da narrativa, posso dizer que “O Contra-ataque” é até melhor do que “A Contrapartida”. Se você gostou do livro de abertura da coletânea, na certa adorará o segundo romance. “O Contra-ataque” consegue ser, acredite em mim, mais dinâmico, violento e contundente. Ele expõe as chagas sociais brasileiras com uma intensidade e uma clareza superiores ao que encontramos em “A Contrapartida”. Adorei isso! A impressão que tive é que Uranio Bonoldi estava apenas esquentando os motores de sua habilidade ficcional na obra anterior. E aqui, com as engrenagens devidamente funcionando a todo vapor, ele deu um show. Não há passagens desnecessárias, cenas arrastadas nem momentos pouco emocionantes em “O Contra-ataque” – algo que aconteceu, preciso ser honesto, em um ou outro capítulo de “A Contrapartida”.
A grande diferença entre os dois volumes da série é que, no livro anterior, o autor precisou apresentar as personagens e o enredo dramático, o que normalmente acaba penalizando as cenas de ação. Sem essa necessidade agora, Uranio colocou o pé no acelerador e imprimiu grande velocidade à narrativa. Até mesmo quando somos apresentados ao passado de Carlos Rodrigues, assistimos a um thriller forte, sinistro, escatológico e surpreendente. As páginas de “O Contra-ataque” são para leitores de estômago forte. Não há pudores na hora de expor os comportamentos violentos, antiéticos, corruptos e indecorosos das personagens. Se você já tinha achado “A Contrapartida” uma obra corajosa e realista, saiba que, então, você não viu nada. Diria mais: sabe de nada, inocente! Aqui sim temos a potencialização da proposta ácida da série e um dos textos mais corrosivos da literatura brasileira contemporânea.
Em muitos momentos, os livros de “A Contrapartida” me lembraram as séries “Millennium” e “Outlander” (Saída de Emergência) pela exposição da violência nua e crua e pelas fortes cenas de sexo. Se os romances de Stieg Larsson retratam o lado obscuro da Suécia no final do século XX (um dos países com melhor IDH) e as obras de Diana Gabaldon mostram os perrengues históricos da constituição da Escócia no século XVIII (hoje em dia é uma das nações mais tranquilas e pacíficas da Europa), os títulos de Uranio Bonoldi apresentam a faceta menos digna do Brasil (uma região com um povo cada vez mais mergulhado no obscurantismo, na limitação intelectual e nas práticas predatórias).
A criminalidade nacional é farta e variada em “O Contra-ataque”: estupro, exploração sexual de menores de idade, prostituição, violência policial, evasão fiscal, sequestro, machismo, racismo, corrupção governamental e empresarial, chantagem, extração ilegal de madeira, genocídio indígena, assassinatos não investigados pela polícia, Justiça tendenciosa, invasão de terra, contrabando, tráfico de drogas, desvio de recursos públicos, intimidação e sumiço de jornalistas, desprezo pela ecologia e pela pobreza de grande parte da população, conchavos políticos... Se eu fosse relatar todos os crimes praticados pelas personagens desse romance, acho que ficaria um dia inteiro citando-os. Se você for um(a) estudante de direito e estiver interessado(a) em virar advogado(a) criminalista, um bom tema para um trabalho de conclusão de curso é listar tudo o que os protagonistas de “O Contra-ataque” fazem de errado segundo as leis do nosso país.
Não à toa, a brasilidade é um dos principais pontos fortes da série “A Contrapartida”. Eu já tinha comentado sobre isso quando analisei o primeiro volume da saga de Tavinho, mas em “O Contra-ataque” temos essa característica ainda mais acentuada. Há algum tempo eu não lia uma obra ficcional que conseguisse retratar tão bem as mazelas, as chagas e os problemas nacionais com tamanha excelência. Uranio Bonoldi é implacável como cronista social de uma nação capturada pela corrupção sistêmica, pela insensibilidade humana, pela exploração predatória da natureza, pela opressão das camadas mais humildes, pela ganância desmedida, pela ação do poder paralelo nos rincões do país e pela limitação cognitiva-intelectual-cultural da classe dominante (elite). E o autor faz isso naturalmente, sem ser panfletário e sem cair em ideologismos baratos. A atroz realidade brasileira é o pano de fundo dos enredos dos romances de “A Contrapartida”. Pela perspectiva de uma trama de terror e suspense, talvez não haja cenário melhor do que o Brasil atual como espaço narrativo para um bom romance sanguinolento, né?
Paradoxalmente, não é apenas Carlos “Pajé” Rodrigues/Iaruanã que se vale de subterfúgios pouco elogiáveis para alcançar o que deseja. Praticamente todos os indivíduos retratados no livro, inclusive o casal de protagonistas (Octávio Albuquerque Júnior e Martha Moss), são personagens redondas e com uma camada substancial de vilania. Ninguém escapa de cometer ações questionáveis. No Brasil de “O Contra-ataque”, o que impera são as leis do mais forte, do mais esperto e do “Dente por Dente, Olho por Olho”. Até o “policial gente-boa” esconde provas da investigação criminal; o “indígena bonzinho” quer uma vingança manchada de sangue; a “jornalista inteligente e atuante” entrega os pontos diante do bem-bom oferecido pelo dinheiro do criminoso que ela deveria denunciar; e a “moça mais virtuosa” sucumbe à primeira oportunidade de infidelidade. É como se ninguém se salvasse nessa história. Por mais que torçamos por essa ou por aquela pessoa, ainda sim vislumbramos que elas não são lá tão certinhas assim, né?
A única personagem realmente plana e figura 100% correta em suas ações e visões de mundo é Cristina Costa Albuquerque, a mãe de Tavinho. Exatamente por essa falta de nuances, ela é a pessoa mais pobre literariamente falando da série narrativa de Uranio. Se no mundo real gostamos de indivíduos com espírito nobre, altruístas, confiáveis e coerentes, na ficção (seja literária, cinematográfica ou cênica) a história é outra. O tipo muito certinho é quase sempre caricato e inverossímil. Pela perspectiva da constituição das personagens, temos em “A Contrapartida” e “O Contra-ataque” uma enxurrada de ótimas figuras (Dona Cristina é a exceção que comprova a regra). Até mesmo os mocinhos têm uma zona sombria e os vilões possuem uma camada graciosa (veja a maneira como Carlos trata a esposa, os filhos e a irmã).
Por falar nas personagens do segundo título da coletânea, é preciso destacar que assistimos à ascensão literária de várias figuras que eram até então secundárias no primeiro romance. A sensação que tive é que alguns coadjuvantes de “A Contrapartida” (como Iaruanã, Martha Moss, Oswaldo Roche e Renato Stein) ganharam mais importância na nova trama e chegaram até mesmo a alcançar, em alguns casos, o status de protagonistas em “O Contra-ataque”. Por outro lado, algumas pessoas até então centrais da saga (como Iaúna e Cristina) perderam força/relevância e apareceram pontualmente na segunda parte da série. O único que se manteve intocado na posição de destaque na história é, obviamente, Tavinho. A diferença é que, em “A Contrapartida”, ele era mais um anti-herói. E em “O Contra-ataque”, o médico adquiriu características mais próximas dos heróis tradicionais. Ou seja, o rapaz perdeu um pouco das camadas mais soturnas, que tão bem fizeram para ele como figura literária.
Ainda na seara da brasilidade, temos um belíssimo retrato da cultura indígena e da Amazônia nesse romance. Digo belíssimo porque o livro de Uranio Bonoldi consegue ser ao mesmo tempo preciso e profundo na apresentação dos costumes, dos hábitos, das crenças e dos dramas dos índios brasileiros sem cair no maniqueísmo muitas vezes reinante na literatura e no cinema. No universo ficcional, ou os indígenas são os grandes vilões das histórias (vide os clássicos do Western norte-americano) ou são os heróis (vide os clássicos do Romantismo). Para Uranio, não há maniqueísmos ou posições pré-definidas. Algo não precisa residir necessariamente nos extremos. Nas obras da série “A Contrapartida”, os integrantes da tribo Moxiruna podem figurar, dependendo da situação, como vítimas do homem branco ou como implacáveis canibais. Podem ser retratados como confiáveis e com espírito nobre ou podem ser pintados como interesseiros e desumanos.
Por falar no povo Moxiruna, a pesquisa que Uranio Bonoldi fez para a caracterização da tribo natal de Iaúna e Iaruanã foi profunda e impecável. A sensação como leitor do romance é que os Moxiruna realmente existem. Dessa maneira, presenciamos nas páginas de “O Contra-ataque” seus hábitos e sua cultura. Porém, será que eles são efetivamente reais?! Existem ou existiram uma tribo amazônica com tal denominação, hein? Aí vem a bomba: os Moxiruna são uma criação ficcional do autor. Para criá-los, Uranio se baseou em estudos sobre uma misteriosa tribo indígena amazonense conhecida pela ferocidade com que tratava os inimigos e pelos rituais xamânicos um tanto horripilantes. Na hora de colocar no papel as descobertas feitas na pesquisa, ao invés de chamar tal povo pela denominação correta, o escritor preferiu a utilização de um termo inventado – Moxiruna. Assim, Uranio Bonoldi não teria complicações com antropólogos de ocasião e com xiitas do politicamente correto (nem todo mundo compreende as distinções entre textos não ficcionais e textos ficcionais). Do ponto de vista literário, o perfil dos Moxiruna está riquíssimo e extremamente coerente com a realidade, mesmo não existindo uma tribo com essa denominação específica. Fantástico um tipo de construção narrativa como essa, né?
Outra questão que precisa ser comentada sobre “O Contra-ataque” é que o romance traz uma esplêndida mistura de gêneros narrativos. Em alguns capítulos é até difícil classificar essa obra de uma maneira única e definitiva. Estaríamos diante de um romance policial noir, de uma trama de espionagem, de um drama romântico, de um thriller aterrorizante, de uma saga de realismo fantástico, de uma aventura com muita ação e doses generosas de teoria da conspiração, de uma sátira político-social do Brasil atual ou de um romance indianista contemporâneo?! A resposta depende muito de onde o leitor estiver na leitura. O livro de Uranio é tudo isso junto e misturado. Adorei essa característica! Ao mesmo tempo em que nos deparamos com um enredo eletrizante e com muitas reviravoltas, a própria característica formal da narrativa de “O Contra-ataque” adquire tons meio que camaleônicos. Essa combinação estilístico-conceitual potencializa o charme e as surpresas da segunda parte da série “A Contrapartida”.
Um leitor mais atento encontrará ainda nas páginas dessa obra um tom de aventura de super-heróis. Afinal, o elixir dos Moxiruna confere poderes especiais. Sempre que tomam a poção mágica obtida no ritual indígena, as personagens se tornam mais inteligentes e fortes fisicamente. Esses benefícios serão decisivos para a ascensão profissional e financeira tanto do protagonista quanto do antagonista. Em um combate entre eles (mocinho versus vilão), a ausência ou o uso no momento certo do elixir pode pesar para o desfecho da trama.
Por falar nesse embate de forças opostas, “O Contra-ataque” tem um conflito único da primeira à última página. Trata-se, portanto, de uma diferença substancial do que encontramos no romance anterior da saga. Lembremos que o conflito de “A Contrapartida” era mutável: à medida que a história evoluía, o drama de Tavinho também se alterava (mas o estilo narrativo não). Diante de tudo o que comentei nos últimos parágrafos sobre a estrutura da nova obra, achei essa opção válida. Do contrário, o texto de “O Contra-ataque” poderia ficar muito confuso (a mistura de enredo mutável e estilo de romance variável poderia ser catastrófico ou conferir uma pegada de forte experimentalismo à publicação!). A trama do segundo volume da série “A Contrapartida” gira sempre em torno do embate entre o Doutor Octávio Albuquerque Júnior e Carlos Rodrigues (o que muda é o estilo da narrativa, tá?). Até mesmo quando o livro mergulha em particularidades da vida e do passado do herói/anti-herói e do vilão, o conflito central segue o mesmo.
Ainda falando no enredo, algo que me surpreendeu positivamente em “O Contra-ataque” é que sua trama se encaixa perfeitamente com a de “A Contrapartida”. Aí alguém poderia me questionar: em se tratando de uma continuação ficcional, isso já não era esperado?! Sim, era esperado. Porém, muitas vezes temos vários errinhos de continuidade e de lógica narrativa em sagas literárias. Depois de centenas ou milhares de páginas produzidas, os autores acabam comendo bola. Os melhores exemplos disso são (volto a usá-las como comparação) as séries “Millennium”, “Outlander” e “A Bicicleta Azul”. Muitas vezes, os leitores não reparam nas incongruências do enredo da coleção, maravilhados que estão com o conteúdo das tramas. Entretanto, uma leitura mais atenta e pormenorizada acaba revelando os problemas na linha narrativa e de contextualização histórica.
Disse isso tudo para afirmar que não achei qualquer problema de continuidade e/ou lógica narrativa em “O Contra-ataque” e “A Contrapartida”. Se alguém descobrir, por favor me avise. A construção da saga de Tavinho contra os irmãos da tribo Moxiruna é tão impecável que pensei que ela tivesse sido escrita de uma vez só e estivesse sendo publicada agora aos poucos (algo feito, por exemplo, por Elena Ferrante com a “Tetralogia Napolitana”). Afinal, uma das maneiras para se ter controle maior de uma história muito longa é desenvolvê-la integralmente e só depois lançá-la a conta-gotas. Porém, Uranio Bonoldi não fez isso. Ele publicou primeiramente “A Contrapartida” e ao verificar o sucesso comercial do título de estreia deu sequência na criação dos outros volumes da coleção. Em outras palavras, além de ter um talento absurdo para o fazer literário, o escritor demonstra possuir mecanismos de trabalho que potencializam suas habilidades. Ou você acha que uma trama longa e de enorme qualidade é feita apenas com inspiração, hein?
Conversando rapidamente com o autor no começo dessa semana (além de talentoso, saiba que Uranio parece ser muito gente boa!), ele confidenciou que é fissurado pela lógica narrativa: datas, cenários e discursos precisam estar devidamente alinhados e em perfeita ordem. Durante a produção dos textos dos romances, ele vai e volta em cada parte da trama para ter a certeza de que a continuidade da história não foi prejudicada. Inclusive, o escritor mantém as principais informações e o planejamento do enredo em uma planilha de Excel. E eu achando, ingenuamente, que fosse só o Paulo Sousa, autor de “A Peste das Batatas” (Pomelo) e “Acinte 2020” (ebook independente) que fizesse isso. Uma vez empresário, administrador de empresas e executivo de negócios, sempre empresário, administrador de empresas e executivo de negócios, né? Não dá para não ser fã de um artista com essas qualidades: união de talento genuíno e dedicação/organização nos afazeres.
Para terminar a seção de elogios de “O Contra-ataque” (que está mais parecendo uma rasgação de seda danada do que uma análise imparcial e exigente – a proposta dos posts do Bonas Histórias e da coluna Livros – Crítica Literária não é passar o pano!), gostaria de comentar sobre o visual da capa e o tipo de linguagem usado por Uranio Bonoldi nessa série ficcional. A capa do novo romance segue a linha do título anterior e está lindíssima. Nota-se o cuidado da Editora Valetina com o projeto gráfico de suas publicações. O padrão visual, o acabamento do material e a revisão ortográfica beiram a perfeição. Em relação à linguagem da série “A Contrapartida”, gosto do estilo de Uranio. Ele tem um texto acessível e direto sem ser piegas ou banal. O domínio do autor na arte da contação da história fica evidente nos detalhes: na hora de colocar palavrões na boca dos criminosos, na descrição de cenas de grande violência, no detalhamento dos rituais indígenas e na inserção de passagens fantásticas. E tudo isso sem soar pedante, elitista ou doutrinador (equívocos que, infelizmente, alguns bons escritores cometem na hora de demonstrar seu talento narrativo).
“O Contra-ataque” é um romance excelente? Sim. Isso quer dizer, então, que ele é uma obra impecável, certo?! Hummm. Não diria isso. Diria que esse livro é quase impecável. A nova publicação de Uranio Bonoldi tem alguns probleminhas de ordem narrativa. É verdade que são muito menos tropeços do que os encontrados em “A Contrapartida”, mesmo assim eles aparecem aqui e ali. O principal deles é a forçação de barra em alguns capítulos. E o que é isso que chamo de forçação de barra, hein? Sabe quando você está assistindo a um filme de ação e o protagonista entra em um carro para fugir dos bandidos ou dos inimigos? Aí ele dirige como um louco até ser emparedado no estacionamento no alto de um prédio. Não há escapatória agora, pensam os espectadores. E de repente, não mais do que de repente, o carro com o mocinho pula de um prédio para o outro e ele foge tranquilamente. Pode um carro pular de um prédio para o outro, Arnaldo? Não sei, mas chamo isso de forçação de barra. Pode acontecer? Até pode. Mas é crível? Não!
E quais as forçações de barra em “O Contra-ataque”? A principal surge no desfecho. Não me parece natural que uma funcionária de uma gráfica guarde por duas décadas uma xerox de um cliente em sua casa. O estabelecimento comercial fechou há um tempão e a moça levou apenas aquele material para sua residência. E passados 20 anos do falecimento do tal cliente, a zelosa empregada procura desesperadamente o filho dele para devolver a cópia. Aí você pensa: mas ela deve ter visto ao menos o conteúdo do material para se imbuir de uma tarefa desse tipo, né? Obviamente, viu se tratar de algo importantíssimo para a família, certo? Nananinanão. Ela jamais abriu as folhas da espiral para ver o que tinha lá dentro. Ai, ai, ai. Pode isso, Arnaldo? Acho que o juiz marcaria pênalti pela forçação de barra do autor. O pior é que essa cena é decisiva para o desenlace do livro. Por tudo o que Uranio Bonoldi já nos mostrou até aqui, ele tem criatividade e talento literário de sobra para construir um arremate muito melhor do que esse.
Além de uma ou outra forçação de barra, algo natural em um thriller ficcional (o que seriam das boas histórias de ação, terror e suspense sem um exagero aqui e ali, né?), achei algumas passagens inverossímeis. Aí a coisa complica um pouco mais. Repare que já havia apontado algumas inverossimilhanças em “A Contrapartida”. Agora a questão não é mais o exagero propriamente dito (como no parágrafo anterior) e sim a inconsistência narrativa. Um bom exemplo disso acontece no encontro de Nathalia Gouveia com Carlos Rodrigues.
Uma jornalista super conceituada viaja para o interior do Pará para investigar uma quadrilha de madeireiros ilegais para um importante veículo de comunicação. Quem conhece minimamente o trabalho jornalístico sabe que um(a) bom(boa) profissional da área não perderia por nada nesse mundo a oportunidade de produzir uma matéria exclusiva e bombástica sobre o desmatamento na Amazônia e o comércio ilícito de madeira. E o que Nathalia faz? Ela simplesmente joga tudo para o alto em nome de uma aventura sexual e o conforto material oferecido por um parceiro milionário.
Confesso que não engoli essa opção da moça, que me sou um tanto machista e pueril. Ainda mais porque a jornalista corre para os braços de Carlos em meio a uma tentativa de estupro realizada pelos sócios do indígena na sede da madeireira. Vale a pena acrescentar que, minutos antes, Carlos havia algemado e ameaçado Nathalia de morte. Portanto, não dá nem para dizermos que ela estava sob o efeito da Síndrome de Estocolmo. Juro que não consigo conceber uma mulher ameaçada de morte e de estupro pular apaixonadamente nos braços do algoz, largando a profissão e as obrigações de trabalho em nome de um amor instantâneo (e bandido). Amor por alguém que queria matá-la e violentá-la? Ai, ai, ai. Essa não colou para mim.
Outra passagem determinante de “O Contra-ataque” que pode ser classificada como inverossímil ou mesmo sem lógica narrativa é o fato de Tavinho manter a inteligência e as habilidades médicas excepcionais sem o consumo do elixir dos Moxiruna. Mas como assim o doutor permaneceu sendo um profissional gabaritadíssimo e com competências raras após o fim dos rituais que praticava regularmente com Iaúna, hein? Lembremos que no primeiro romance da série, o desempenho escolar e esportivo do jovem Octávio caiu absurdamente quando ele não realizou as práticas ensinadas pela velha índia. Admito que não entendi essa mudança radical de contexto narrativo entre os livros – ela me soou um tanto incongruente. Sem tomar o elixir no novo romance, Tavinho manteve uma inteligência tão superior que, mesmo não sendo pesquisador e/ou químico, conseguiu desenvolver uma versão sintética do composto xamânico. Juro que não engoli essa quebra do pacto ficcional (que era um dos alicerces dramáticos de “A Contrapartida”).
Para ser sincero, não são muitas as cenas equivocadas do novo romance de Uranio. O problema é que as forçações de barra, as inverossimilhanças e a falta de lógica narrativa ocorrem justamente em momentos decisivos da trama e afetam, dessa forma, diretamente os acontecimentos do segundo volume da série “A Contrapartida”. Mesmo assim, “O Contra-ataque” é um romance tão bom, mas tão bom que nem mesmo esses tropeços estragam a experiência de leitura. Posso dizer sem medo de errar que esse é um dos melhores thrillers que li nesse ano – o novo romance de Uranio Bonoldi está lado a lado com “O Livro dos Baltimore” (Intrínseca) de Joël Dicker e “Refém da Memória” (Produção independente) de Helio Martins Jr. Diante de uma bem azeitada rede de adrenalina, sustos, horror, surpresas e reviravoltas, talvez você nem se incomode com as cenas que acabei de comentar. Na certa, você ficará tão envolvido(a) com o duelo entre Octávio Albuquerque Júnior e Carlos Rodrigues que comprará todas (ou a grande maioria) dos relatos trazidos pelas páginas de “O Contra-ataque”.
Reconheço que desde já estou aguardando o lançamento do terceiro volume da série “A Contrapartida”. A boa notícia é que não precisaremos esperar tanto tempo pela publicação da nova parte da saga de Tavinho – dois anos e meio entre o primeiro livro e o segundo da coletânea foi uma eternidade para os ávidos fãs da literatura de Uranio Bonoldi. “O Outro Lado da História” (Valentina) deve ser lançado no finalzinho de 2022. Portanto, apertem os cintos no sofá porque teremos mais emoções em pouco tempo. Vida longa e muito sucesso para essa saga literária que está conquistando os leitores brasileiros.
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