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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural – literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura, gastronomia, turismo etc. –, o Blog Bonas Histórias analisa de maneira profunda e completa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Livros: O Construtor de Pontes – O mais recente romance de Markus Zusak

  • Foto do escritor: Ricardo Bonacorci
    Ricardo Bonacorci
  • há 2 dias
  • 26 min de leitura

Publicada em inglês em outubro de 2018 e lançada em português em fevereiro de 2019, esta obra ficcional encerrou o jejum literário de 13 anos de um dos best-sellers da literatura australiana. Conheça a análise da saga dramática de uma família habituada às tragédias, à violência e à solidão.

O livro O Construtor de Pontes é o sexto romance de Markus Zusak, um dos principais nomes da literatura australiana

No final de semana retrasado, li um livro que estava com vontade de conhecer há um tempão. E põe tempão nisso, senhoras e senhores! A obra em questão é “O Construtor de Pontes” (Intrínseca), a sexta publicação ficcional de Markus Zusak, um dos best-sellers da literatura australiana. Gosto tanto desse autor que, em setembro de 2017, analisei em detalhes o trabalho ficcional de Zusak na coluna Desafio Literário. Não apenas li e comentei seu portfólio completo como trouxe para o Bonas Histórias a crítica individualizada de seus cinco romances iniciais: “O Azarão” (Bertrand), de 1999, “Bom de Briga” (Bertrand), de 2000, “A Garota que Eu Quero” (Intrínseca), de 2001, “Eu Sou o Mensageiro” (Intrínseca), de 2002, e a “Menina que Roubava Livros” (Intrínseca), de 2005. Vamos combinar que não é qualquer escritor que posso dizer em alto e bom som que me aprofundei em todos os seus títulos, né?!


Para ser preciso com minhas palavras, tenho que reformular a última frase do parágrafo anterior. Em outubro de 2018, Markus Zusak lançou “O Construtor de Pontes”, sua mais nova publicação. Aí perdi a visão integral de sua coletânea ficcional. Por isso, tão logo a Editora Intrínseca publicou no Brasil esse livro, em fevereiro de 2019, corri para a livraria mais perto de casa e o adquiri. Contudo, confesso envergonhado (Raul Seixas cantaria: “Mas confesso abestalhado/Que eu estou decepcionado!”), que ele ficou fechado na minha estante por mais de seis anos. É isso mesmo o que você leu: SEIS INTERMINÁVEIS ANOS! Ai, ai, ai. Só quem é apaixonado pelos romances e pelo universo da literatura entenderá a dor que senti ao deixar adormecido um título de ficção que mexia com minha curiosidade e estimulava meu paladar narrativo.


Pensando bem (Vitor & Leo cantariam: “Pensando bem/Eu gosto mesmo de você/Pensando bem quero dizer/Que amo ter te conhecido”), talvez a descrição de uma obra largada e esquecida na minha biblioteca não seja a mais correta. Não posso dizer de maneira nenhuma que “O Construtor de Pontes” ficou adormecido na prateleira da minha biblioteca por tanto tempo. Porque o peguei SIM para ler por quatro ou cinco vezes. Em duas oportunidades, cheguei até a iniciar a leitura e concluir a primeira parte (a publicação tem oito partes). Porém, fui obrigado a interromper precocemente as sessões. Era só abrir as páginas do mais recente livro de Markus Zusak que pintava algo urgente no trabalho para ler, analisar e/ou editar. Ou simplesmente aparecia alguém ou algo no âmbito pessoal para me tirar das delícias desta leitura.


Incrível como o universo conspirou impecavelmente para que eu não pudesse conhecer “O Construtor de Pontes” por tanto tempo. Aposto que os bons leitores sabem do que estou falando. Todos temos um título que chamo de “atrai zica”. É só o abrir que o mundo se movimenta ao nosso redor para pôr fim ao sossego. Aí nossa imersão literária é exterminada ou se transforma em uma epopeia digna das maiores proezas de Homero. Às vezes, tenho a impressão de que é mais fácil nadar de Atenas a Esparta sob a ira dos Deuses do que concluir uma dúzia de páginas de uma leitura tão aguardada. 

Best-seller internacional desde o lançamento de A Menina que Roubava Livros, Markus Zusak é o romancista australiano que publicou, em outubro de 2018, O Construtor de Pontes, seu mais recente livro

A última vez que tal síndrome tinha se manifestado comigo foi com “Leite Derramado” (Companhia das Letras), o premiado romance de Chico Buarque. Juro que por muito e muito tempo não conseguia passar de suas primeiras páginas. Era só pegá-lo que algo de estranho acontecia: meu cachorro morreu, a ex telefonou depois de vários anos de ausência silenciosa, a pizzaria da minha mãe pegou fogo e uma proposta de emprego muuuuuito inusitada pintou tarde da noite. Cogitei até levar a obra do Chico numa viagem de avião de São Paulo a Teresina com escala em Brasília. Pensei com minha habitual inocência: “Lá no alto, ninguém conseguirá atrapalhar minha leitura”. Aí calculei as possibilidades trágicas da ideia e achei por bem aos demais passageiros e à tripulação não percorrer aquelas páginas tão longe do solo. Assim, só consegui concluir “Leite Derramado” depois de vários e vários anos, quando o mundo à minha volta já tinha se acalmado (e aparentemente se esquecido daquele “atrai zica”).


Prova maior da brincadeira (nem um pouco engraçada!) dos Deuses da Literatura é que bastava trocar de livro que a tranquilidade voltava a reinar nas minhas sessões de leitura. É bom dizer que não consigo ficar uma semana sem devorar algo novo. Não por acaso, abrir uma obra e não conseguir percorrê-la até o fim me deixa BASTANTE angustiado. Dessa maneira, tão logo abandonava quem estava trazendo má sorte, conseguia percorrer tranquilamente as páginas dos novos exemplares da ficção. Ufa! Não há zica que sempre dure, já diriam os poetas gregos aos pés do Monte Olimpo (em ótimo português brasileiro e com gíria mesmo).


No caso de “O Construtor de Pontes”, a dificuldade para a realização da leitura se deu, além da conspiração dos Deuses da Literatura, pela sua grande extensão. Para percorrer o tijolão de quase 600 páginas, precisava de doses mínimas de calma e fôlego, elementos raros na minha rotina dos últimos anos. Sabendo disso, tive que me fechar em casa no primeiro final de semana de abril para concluir o que chamei de “missão do primeiro semestre de 2025”. Ou concluía essa publicação de Markus Zusak AGORA ou NUNCA mais tentaria lê-la. Exagero? Talvez.


Para minha felicidade, consegui cumprir o desafio autoimposto com relativa facilidade. Ufa! Pelo visto o “atrai zica” tinha perdido o efeito. Será que o clima de Páscoa que já contagia Mi Buenos Aires Querido ajudou? Pode ser. Só sei que fiquei tão alegre com o cumprimento da tarefa que decidi escrever este post para a coluna Livros – Crítica Literária. Mesmo com a ligeira decepção pelo conteúdo deste romance de Markus Zusak (talvez tenha criado expectativas exageradas – acreditei que “O Construtor de Pontes” pudesse ser melhor que “A Menina que Roubava Livros” ou que estivesse no mesmo patamar de excelência narrativa do best-seller), ainda assim acho válido discuti-lo com vocês no blog.


Caso alguém tenha se surpreendido por eu analisar um título que não tenha me agradado (algo que não faço habitualmente no Bonas Histórias por princípio e por linha editorial), acho bom reformular outra vez minhas frases. Não é que não tenha gostado de “O Construtor de Pontes”. Eu curti a leitura, tá? Juro! Nos capítulos finais, cheguei a me emocionar mais do que imaginava. Não tenho vergonha de relatar que derramei algumas lágrimas com o desfecho. Trata-se, portanto, de uma narrativa acima da média. Só disse que fiquei “ligeiramente decepcionado” pois esperava que a literatura de Markus Zusak tivesse permanecido pelo menos no mesmo nível de qualidade e inovação do que fora apresentado em seu mais famoso trabalho. E, para ser bem franco, o romancista que encantou o mundo há exatamente 20 anos não chegou dessa vez nem perto disso. Ele regrediu muitas casas no primor do ofício ficcional.

Publicado originalmente em outubro de 2018 e lançado no Brasil em fevereiro de 2019, O Construtor de Pontes é o mais recente romance de Markus Zusak

Ainda assim, é bom dizer, “O Construtor de Pontes” figura no top 5 das melhores obras que li neste ano. Mesmo derrapando e não encantando o público, Zusak está muito longe de ser um fracasso ou um autor a ser ignorado pela plateia internacional. Daí a iniciativa de analisá-lo nesta página. Por enquanto, o mais recente romance do best-seller australiano só perde em excelência narrativa para: “1+1=2 2-1=0” (CEPE Editora), magistral drama histórico da brasileira Fernanda Caleffi Barbetta (1º lugar em meu ranking de obras-primas de 2025); “Nós que Vivemos” (Minotauro), clássico da russa Ayn Rand (2º lugar); “Un Dia” (sem edição no Brasil), novela deliciosa do argentino Cabezon Gustavo (3º lugar); e “Ainda Estou Aqui” (Alfaguara), biografia do meu conterrâneo Marcelo Rubens Paiva que deu origem ao filme homônimo de Walter Salles (4º lugar).


Pera lá, Ricardinho!!! Você realmente imaginou que “O Construtor de Pontes” pudesse superar “A Menina que Roubava Livros”, um dos mais brilhantes, criativos e sensíveis romances do século XXI, em qualidade e em impacto literário junto aos leitores?!!! Ou, vá lá, que conseguisse ficar em pé de igualdade com esta que é uma das obras-primas da literatura contemporânea!? É sério isso o que você escreveu acima? Ou se trata de mera miragem dos meus olhinhos já fatigados de tanto aguardarem pela análise crítica que nunca chega, hein?!


É, meu(minha) amigo(a) imaginário(a) – e deveras impaciente – que dialoga comigo enquanto escrevo os textos da coluna Livros – Crítica Literária. Eu pensei SIM nessa possibilidade. Inocência, né? Sei disso. Juro que as vezes escuto a voz de Compadre Washington cantando em minha consciência: “Sabe de nada, inocente!”. Porém, tenho uma justificativa justificável (adoro essa redundância tanto quanto “verdade verdadeira”) para o erro crasso que cometi. A culpa não deve ser atirada apenas à minha já conhecida ingenuidade. Markus Zusak também teve sua parcela de responsabilidade em meus devaneios, senhoras e senhores. Afinal, ele criou enorme expectativa no público por quase uma década e meia. Fui uma das vítimas dessa onda.


Na minha visão, o australiano queria evitar a todo custo cair no que chamo de “Complexo de Gabriel García Márquez” – ser autor de uma obra magistral dentro de um portfólio medíocre. Medíocre significa mediano e não ruim, POR FAVOR! Fazendo um paralelo com a música, é o famoso caso do cantor ou do compositor de uma só canção, algo que incomoda bastante aqueles que não ultrapassaram o primeiro e efêmero êxito (mas posição que muitos outros músicos que não têm nenhum sucesso sonham em atingir).


Para entender o “Complexo de Gabriel García Márquez”, tire “Cem Anos de Solidão” (Record) da coletânea de trabalhos ficcionais do Nobel de Literatura de 1982.  Feito isso, me diga agora qual é o outro título memorável do maior escritor colombiano? Talvez “O Amor nos Tempos do Cólera” (Record)... Eu adoro este livro, mas não dá para decretarmos que ele seja fenomenal. Qual mais? Aposto que você não conseguiu pensar em mais nenhuma leitura marcante, certo? Porque não há mais nada muito eloquente. Sem a saga dos Buendía, sinto em dizer que Gabo seria um romancista regular na Colômbia. E jamais se tornaria um nome de destaque da literatura sul-americana e da ficção internacional.

Depois do sucesso estrondoso de A Menina que Roubava Livros, Markus Zusak interrompeu o jejum de 13 anos sem novas publicações com o lançamento de O Construtor de Pontes

Sinceramente, acho que Markus Zusak, consciente ou inconscientemente, queria fugir dessa sina. Recordemos que até "A Menina que Roubava Livros" (o “Cem Anos de Solidão” do australiano), seu portfólio era beeeeem mediano. Nascido em Sidney, em 1975, em uma família de emigrantes europeus (o pai é austríaco e a mãe alemã), Markus estudou História e Língua Inglesa na faculdade e se formou em Artes e Educação. Sua trajetória profissional começou como professor do ensino básico. Contudo, vale dizer, que desde a adolescência, ele produzia tramas ficcionais, sua grande paixão.


Seus três primeiros livros, “O Azarão”, “Bom de Briga” e “A Garota que Eu Quero”, integram a trilogia infantojuvenil intitulada “O Azarão”. Essa série literária foi publicada entre 1999 e 2001, quando o autor tinha por volta dos 25 anos. Por mais encantador que seja o drama sobre a infância e a adolescência dos irmãos Wolfe, vamos combinar que esta coletânea de romances está muuuuuito longe de ser uma pérola da literatura em língua inglesa.


Na sequência, em 2002, Zusak publicou “Eu Sou o Mensageiro”, seu primeiro romance um pouco mais maduro (detalhe para o termo “um pouco mais” da frase anterior). Ainda que tenha sido classificada como título infantojuvenil, entendo que essa obra possa ser lida (com alguma boa vontade) também pelo público adulto. O thriller é inusitado, mas não empolga. Seu maior problema é flertar o tempo inteiro com aspectos poético-filosóficos para lá de rasos – ao melhor estilo de Paulo Coelho, autor de “O Diário de Um Mago” (Rocco) e “O Alquimista” (Planeta), e de Jostein Gaarder, autor de “O Mundo de Sofia” (Companhia das Letras) e "Através do Espelho" (Companhia das Letras). Esse tipo de texto narrativo até pode agradar aos adolescentes e ao público com paladar literário menos rebuscado, mas está longe de ser objeto de desejo dos leitores mais qualificados.


Não à toa, até a metade da primeira década do século XXI, a literatura de Markus Zusak apresentava um destaque relativo e estava limitada à Austrália. E olhe lá. A conquista de alguns prêmios literários nacionais no segmento infantojuvenil motivava o autor a se lançar em voos maiores. Porém, não dava para ninguém falar que ele tinha alcançado o status de best-seller ou mesmo que figurava no posto de autor conhecido em seu país natal. Prova disso é que ele se mantinha trabalhando como professor escolar, onde tirava o ganha pão. A produção dos livros era feita à noite e aos finais de semana. Isso até o vendaval chamado "A Menina que Roubava Livros" varrer as livrarias australianas e mundiais a partir de 2005 (e os cinemas dos quatro cantos do globo na década seguinte).


Para termos uma dimensão exata do sucesso editorial do quinto romance de Markus Zusak, "A Menina que Roubava Livros" aparece como uma das obras ficcionais mais comercializadas deste século. É amigo(a), não é pouca coisa, não! Publicado em mais de 60 idiomas e com venda na casa dos 18 milhões de exemplares, esse romance ficou por dez anos seguidos no ranking dos mais vendidos do New York Times, um dos principais parâmetros do sucesso da indústria editorial internacional. A encantadora história da menina Liesel Meminger que foi narrada de maneira sublime pela Morte chegou às telonas em 2013 e se tornou uma das maiores bilheterias do cinema na temporada 2013/2014.

Mais recente livro de Markus Zusak, O Construtor de Pontes é um drama histórico sobre uma família habituada às tragédias, à violência e à solidão no Oeste da Austrália

Pronto! Com um dos livros mais brilhantes da literatura contemporânea (se você ainda não o leu, leia – ele é realmente brilhante!), Zusak se tornava um dos grandes nomes da ficção internacional. Com o bolso abarrotado de dólares, ele largou definitivamente o ofício nas escolas de Sydney e passou a se dedicar exclusivamente à produção de suas histórias. Paralelamente, os leitores de fora da Oceania queriam conhecer mais títulos do autor de "A Menina que Roubava Livros". Assim, as editoras internacionais traduziram e/ou lançaram às pressas “O Azarão”, “Bom de Briga”, “A Garota que Eu Quero” e “Eu Sou o Mensageiro” para aplacar a curiosidade do público nos quatro cantos do mundo. Ainda assim, a pergunta que todos se faziam era: “Qual será o próximo trabalho ficcional deste talentosíssimo romancista australiano, hein?!”.


Contudo, os anos foram se acumulando e NADA de Markus Zusak lançar algo novo. Ele passou um ano em jejum. Depois vieram mais dois, três, quatro e cinco anos sem novidade. E o autor só informava que estava desenvolvendo um romance que se chamaria “O Construtor de Pontes” (“Bridge of Clay” no original em inglês). Seis, sete, oito, nove e dez anos se foram e NADINHA. Novo anúncio: o novo livro está quase pronto. Agora vai! Onze, doze e, enfim, treze anos foram necessários até que a obra chegasse às livrarias. Saravá, bradaria Vinicius de Moraes no meio de “Samba da Benção”.


A longa espera tem algumas explicações. Markus Zusak sempre foi um escritor conhecido pela morosidade na confecção de suas histórias. Seus cinco primeiros livros foram produzidos ao longo de vários anos. Alguns chegaram a demandar até sete anos para serem entregues às editoras. Se eu não estiver enganado, "A Menina que Roubava Livros" levou mais ou menos cinco anos para ser concluído. Confesso que gosto de artistas que prezam pela qualidade ao invés da celeridade. É preferível os leitores esperarem bastante tempo e receberem textos impactantes e inovadores do que terem prontamente materiais pouco relevantes e pobres de conteúdo. Nesse sentido, ponto positivo para Zusak.


Contudo, treze anos me pareceu excessivo. TREZE ANOS!!! E olha que, conforme expliquei, o romancista australiano passou a se dedicar exclusivamente a esse ofício. Quem está por trás da produção dessa obra: uma empreiteira brasileira?! Brincadeirinha... Aí entra, na minha humilde visão, não apenas o cuidado com a excelência literária, mas um pouco do receio do autor com a avaliação do mercado editorial. Ele sabia que a comparação seria com o genial "A Menina que Roubava Livros". Uma vez que o sarrafo tinha sido colocado quase no céu, o que entregar de impactante para os ávidos leitores do mundo inteiro, hein? Nessa hora, creio que bateu forte o temor do "Complexo de Gabriel García Márquez".


Prova da ansiedade do mercado editorial pelo lançamento de “O Construtor de Pontes” está na rapidez com que o livro foi publicado nos países de língua não inglesa. Geralmente, as editoras levam pelo menos um ano para adaptar os títulos gringos. Esse é o período necessário para se comprar os direitos autorais, traduzir o texto, desenvolver o projeto gráfico, fazer a diagramação, imprimir na gráfica e enviar o livro para as livrarias. Entretanto, em algumas nações, o sexto romance de Markus Zusak chegou com um intervalo de poucas semanas. Incrível, né? Foi o que ocorreu, por exemplo, no Brasil. Em apenas quatro meses, a Editora Intrínseca o entregou aos leitores brasileiros. Juro que fico imaginando o trabalhão que deu para antecipar todos os prazos. A tradução da edição nacional foi feita pela dupla Stephanie Fernandes e Thaís Paiva.

Envolto em grandes expectativas do público e da crítica literária internacional, O Construtor de Pontes é o sexto romance de Markus Zusak, um dos principais best-sellers australianos da atualidade

Ao invés de empolgar, a longa distância temporal entre a publicação de "A Menina que Roubava Livros" e o lançamento de “O Construtor de Pontes” parece que anestesiou o público. É como se os consumidores das livrarias estivessem se esquecido de quem era Markus Zusak. Markus o quê?! Por mais que as capas do novo romance estampassem a mensagem “do autor do best-seller A Menina que Roubava Livros”, o apelo pelo nome do escritor australiano tinha se esfriado. É, amigo(a), timing é tudo nessa vida. Em quase todos os mercados internacionais, as vendas de “O Construtor de Pontes” foram tímidas (para não escrever decepcionante). Para completar a maré desfavorável, a avaliação da crítica na América do Norte e na Europa foi prioritariamente pouco elogiosa (para não dizer negativa). Não apenas não encantou como, dessa vez, Zusak frustrou os críticos e os leitores internacionais.


Afinal, “O Construtor de Pontes” é uma obra ficcional subestimada ou mesmo injustiçada?! As vendas decepcionantes seriam reflexo do esquecimento do público da grandeza de “A Menina que Roubava Livros” ou os números comerciais seriam resultado exclusivamente da qualidade narrativa inferior do novo trabalho de Markus Zusak? É isso o que trataremos nesta detalhada investigação da coluna Livros – Crítica Literária. Porém, antes de iniciarmos o debate propriamente dito sobre os principais pontos do romance do best-seller australiano, quero apresentar o enredo deste título para os leitores do Bonas Histórias. Aqui vou eu, senhoras e senhores!


“O Construtor de Pontes” é narrado por Matthew Dunbar, rapaz de 31 anos que mora em uma cidade quente e seca do Oeste da Austrália. Ele é casado com Cláudia Kirkby, professora do ensino básico e três anos mais velha. O casal tem duas filhas. A trama começa com Matthew teclando a história de sua família na cozinha residencial. Enquanto a esposa e as meninas dormem, ele aproveita o silêncio noturno para bater as teclas da velha Remington cinza-chumbo. Como a máquina de escrever foi parar ali é justamente o mote para a primeira cena do romance, ainda na parte introdutória do livro.


O narrador conta que há algumas semanas viajou de carro até Featherton, a cidade natal de seu pai. Chegando ao endereço marcado em um velho papel, Matthew pediu autorização para os proprietários da casa para desenterrar a máquina de escrever que tinha sido de sua avó, que ali viveu por muitos anos. Com a permissão concedida, ele pegou a pá e retirou da terra do quintal o antigo equipamento. Porém, acabou trazendo junto os ossos de um cachorro e o esqueleto de uma cobra, que também haviam sido enterrados naquele local. O rapaz não se surpreendeu com o achado. Assim, ele retornou para seu lar com a Remington e a ossada dos bichos no banco de trás do veículo.


Com a posse da máquina de escrever da avó materna, Matthew decidiu escrever a saga dos garotos Dunbar, como ele e seus quatro irmãos ficaram conhecidos desde sempre na cidade. Esta é a proposta da publicação que temos em mãos e, obviamente, a explicação para o trabalho narrativo de Matthew Dunbar. Conforme nos adianta o narrador na seção de abertura da obra, aquela é “uma família destroçada pela tragédia. Uma história em quadrinhos explosiva sobre meninos e sangue e bichos” (página 18).

Publicado em inglês em outubro de 2018 e lançado em português no Brasil quatro meses mais tarde, O Construtor de Pontes é o primeiro livro de Markus Zusak desde o best-seller A Menina que Roubava Livros

Por mais que saiba que o relato envolva todo o clã, algo parece evidente desde o princípio para o homem por trás do texto datilografado: a trama que irá produzir será fundamentalmente de Clay, o quarto e penúltimo filho de Michael e Penélope Dunbar. Aos 11 anos, o menino foi o grande responsável pelo destino dos parentes. Conforme está apresentado nas páginas iniciais de “O Construtor de Pontes”: “tudo aconteceu com ele. Todos nós mudamos por causa dele” (página 19). Portanto, Matthew até pode ser o narrador do livro de Markus Zusak, mas o protagonista é Clayton Dunbar, o nome completo de Clay.


Assim, somos levados ao primeiro capítulo da primeira parte da obra. A história regride 11 anos. Matthew, o mais velho do quinteto de irmãos, tinha 20 anos de idade. Ele trabalhava como instalador de pisos e carpetes. E carregava a responsabilidade de sustentar a casa e de manter a ordem no lar. Na prática, assumiu o comando da família, mas não conseguiu pôr regras em casa. Isso ocorreu porque a mãe dos garotos Dunbar morreu havia alguns anos e o pai os tinha abandonado. Sem a supervisão de um adulto, coube aos rapazes se virarem como podiam. Matthew e Rory, o segundo mais velho e então com 18 anos, deixaram prontamente a escola e passaram a trabalhar. Enquanto o primogênito fazia o tipo certinho e trabalhador, Rory Dunbar era o revoltado, mal-humorado e brigão.   


Os irmãos menores, Henry, 17 anos, Clayton, 16 anos, e Tommy, 13 anos, seguiam estudando e tinham características mais parecidas a de Rory do que as de Matthew. O trio vivia de maneira caótica. Eles estavam sempre sujos, machucados e aprontando alguma. A diversão deles era brigar entre si ou com a molecada da cidade. Se na rua viviam de apostas e pequenas badernas, na escola estavam sempre metidos em confusão com a professora e com a diretora. Por mais que fossem gente boa, os garotos Dunbar, principalmente os mais novos, eram vistos como incorrigíveis e arruaceiros.


Por mais que a visão inicial de Henry, Clayton e Tommy não fosse aquela que esperamos dos jovens protagonistas de uma saga histórica, a rotina deles tinha alguns componentes líricos. Por mais que vivessem se batendo e aprontando, os irmãos se apoiavam e se amavam (do jeito deles!). Isso fica bem claro na mania de paparicar o caçulinha. Como Tommy gostava de animais, a residência dos Dunbar se tornou um zoológico ou uma fazenda, algo que seria improvável se aquele lar tivesse um adulto minimamente responsável para dizer (parodiando Marisa Monte) “três letrinhas (...) que representam não, que não fica bem no seu coração”. Havia um burro no quintal (Aquiles) que adorava entrar na cozinha, uma cachorra (Aurora) que acompanhava os garotos em todos os lugares, um gato (Hector) que dormia roncando, um pombo (Telêmaco) para lá de esperto e um peixe-dourado (Agamenon) bastante charmoso. Não é preciso dizer que, num lugar habitado por cinco jovens, vários animais e nenhum adulto, a bagunça reinava soberana, né?    


Como a história é de Clay, o narrador passa a acompanhá-lo mais de perto. O garoto gostava de correr na pista de atletismo da cidade e era incentivado pelos familiares a treinar. No início, Matthew e Rory se encarregaram de ser seus treinadores. Quando os irmãos mais velhos passaram a trabalhar em tempo integral, a função foi delegada para Henry. Com Henry, as sessões de treinamento de Clay se transformaram em eventos sádicos. A meninada mais barra-pesada da região se reunia para apostar em quanto tempo o rapaz conseguiria completar a volta na pista de corrida. Para dificultar a vida do jovem atleta, tal qual uma arena romana da Antiguidade, a molecada se espalhava pelo caminho. A tarefa deles era bater no corredor o máximo que conseguissem. Sem se importar com socos, chutes e cacos de vidro atirados ao chão (ele treinava descalço), Clay corria desviando dos oponentes. Ele sempre completava o trajeto, mesmo que saísse quebrado.

Obra mais desafiadora de Markus Zusak, O Construtor de Pontes é o sexto livro ficcional do famoso escritor australiano

Clay era um garoto calado que vivia sorrindo. Mesmo sendo vítima da violência dos irmãos e dos outros rapazes do município, ele parecia estar sempre sereno e calmo. Basicamente, se acostumou com as rotineiras agressões como se essa fosse mais uma característica do seu dia a dia, como acordar, dormir, se hidratar, se alimentar e correr. Sua mania era ficar em cima do telhado observando a cidade. E Clayton adorava se encontrar com Carey Novac, uma vizinha de sua idade. A menina era apaixonada por turfe e se preparava para ser jóquei. A amizade deles foi crescendo, crescendo e crescendo ao ponto de se transformar em uma paixão casta.


Certa tarde, os garotos Dunbar foram surpreendidos por uma visita que os abalou profundamente. Depois de vários anos ausente, Michael, o pai da galerinha, retornou com uma proposta inusitada: ele estava construindo uma ponte em outra cidade e gostaria de saber se algum dos filhos queria acompanhá-lo na empreitada. A sensação era de que a resposta negativa seria unânime. Porém, Clay chocou os irmãos ao aceitar o convite. A decepção entre os rapazes foi geral. Além de se sentir traído pelo menino número 4 da casa, Matthew queria entender o motivo que levou Clayton a ir com o pai depois de tantos anos de inexplicável abandono. Será que ele se esquecera de que fora impiedosamente desprezado por quem deveria zelar pelo bem-estar de um quinteto de crianças órfãs de mãe?!


Em busca de respostas para esse enigma, o narrador reconstrói a história da família inteira. Matthew Dunbar relata o drama dos pais antes mesmo de eles se casarem. Penny, como Penélope Lescuiszko era chamada carinhosamente, era uma pianista que fugiu do Leste da Europa aos 18 anos. O pai dela não queria que a filha única vivesse em um regime comunista em franca decadência e a incentivou a partir para o exterior. Dessa forma, a jovem foi morar sozinha no interior da Austrália. Lá conheceu por acaso Michael Dunbar, um homem devastado pelo abandono da primeira esposa. A união de Penny e Michael se mostrou feliz e frutífera. Até a família ser vítima de uma tragédia, que abalaria a todos para sempre. Entender as nuances do período mais difícil dos Dunbar é essencial para compreendermos o comportamento e as atitudes mais polêmicas de Clayton. É esse o desafio que Matthew se propõe a colocar no papel.   


“O Construtor de Pontes” é um livro parrudão. Ele tem 528 páginas, o que exigiu de mim cerca de 11 horas de leitura no total. Praticamente, li metade do romance no sábado (em três sessões – manhã, tarde e noite) e a outra metade no domingo (em outras três sessões – manhã, tarde e noite). As sentadas de leitura variavam de uma hora e meia a duas horas e meia. Não é errado dizer que passei o final de semana quase todo lendo.


A mais recente obra de Markus Zusak está dividida em oito partes, que totalizam exatamente 100 capítulos. Há ainda uma introdução/abertura (o trecho em que Matthew explica como obteve a máquina de escrever e o porquê está escrevendo sobre Clay) e um epílogo/conclusão (na qual o narrador volta ao presente, depois do longo e profundo mergulho no passado, e explica como está sua família no exato momento em que datilografa aquelas páginas na velha Remington cinza-chumbo).

Publicado originalmente em outubro de 2018 e lançado no Brasil em fevereiro de 2019, O Construtor de Pontes é o mais recente romance de Markus Zusak

Falando na estrutura de “O Construtor de Pontes”, uma curiosidade é o nome de suas partes. A parte I desta publicação se chama “Cidades”. A segunda tem o título de “Cidade + Águas”. Enquanto a parte III é denominada de “Cidade + Águas + Criminosos”, a parte IV é “Cidade + Águas + Criminosos + Arcos”. Note que os nomes vão se acumulando. Assim, a parte V, a parte VI, a parte VII e a parte VIII têm como títulos, respectivamente, “Cidade + Águas + Criminosos + Arcos + Histórias”, “Cidade + Águas + Criminosos + Arcos + Histórias + Sobreviventes”, “Cidade + Águas + Criminosos + Arcos + Histórias + Sobreviventes + Pontes” e “Cidade + Águas + Criminosos + Arcos + Histórias + Sobreviventes + Pontes + Fogo”.


Além disso, existe uma preocupação matemática na formulação da narrativa de “O Construtor de Pontes”. Cada parte possui exatamente 12 capítulos. As exceções são as partes II e VII, que têm 14 capítulos cada. Ou seja, o conjunto da obra totaliza exatamente 100 capítulos. A introdução/abertura e o epílogo/conclusão não entram nessa conta. Seria mera coincidência, senhoras e senhores, o número redondinho? Nananinanão!


A sensação que temos quando nos deparamos com essa estrutura rígida e harmônica é de estarmos diante – tal qual o nome do livro indica (não nos esquecemos que o título original em inglês é “Bridge of Clay”) e a história do romance nos mostra (pai e filho erguendo uma ponte) – de um desenho arquitetônico de uma construção real. Seria essa a planta da narrativa de a “Ponte de Clay” (em uma tradução direta)? Acho que sim. Viu como não existe coincidência nem acaso na boa literatura! Em outras palavras, cada parte do romance se liga intimamente às outras partes e todas estão perfeitamente alinhadas às proporções de rigor matemático. Do contrário, a edificação não ficaria em pé. Achei SENSACIONAL essa interatividade intertextual entre a estrutura do livro e o conteúdo da leitura.


Outro elemento elogioso de “O Construtor de Pontes” é a configuração das personagens. Os tipos retratados neste romance são quase sempre figuras redondas, inclusive as peças centrais da narrativa – leia-se o herói, o vilão e o narrador. Aqui não há indivíduos totalmente bonzinhos nem pessoas exclusivamente más. Esqueça as personagens planas! Entre o claro e o escuro, há infinitas tonalidades de cinza. Essa constatação vale tanto para os protagonistas quanto para os coadjuvantes. Markus Zusak também é mestre em criar personagens simples e carismáticas, principalmente dentro dos universos infantis e infantojuvenis. É uma delícia acompanhar suas criações ficcionais pelo processo de amadurecimento. A prova maior do que estou falando é a sensação permanente de que estamos lendo uma biografia e não um livro de ficção.  


Dos elementos da narrativa ficcional, também gostei bastante do espaço narrativo e da ambientação. De certa maneira, esses dois componentes caminham lado a lado. Em “O Construtor de Pontes”, sabemos o nome de vários lugares da trama, mas em nenhum momento recebemos a identificação precisa da cidade em que a maior parte do enredo se sucede. Sabemos apenas que se trata de um município no Oeste da Austrália onde o calor e a secura são excessivos (ao melhor estilo Outback). Esse ar de mistério atiça a curiosidade dos leitores. Pelo menos em mim funcionou perfeitamente. Até a última página, mantinha a esperança de descobrir em qual cidade os garotos Dunbar viviam. Porém, adianto que a obra termina sem que tenhamos essa informação.

Depois do sucesso estrondoso de A Menina que Roubava Livros, Markus Zusak interrompeu o jejum de 13 anos sem novas publicações com o lançamento de O Construtor de Pontes

A ambientação surge acompanhada de mãos dadas pela descrição do espaço narrativo. O público mais atento irá reparar no tom determinista do cenário. Em uma localidade onde a quentura excessiva, a seca extrema e a desertificação da paisagem castigam os corpos das pessoas, não dá para imaginarmos relações humanas que não sejam violentas, áridas e um tanto vazias. Quem nos ensinou esse tipo de vínculo foi o genial Graciliano Ramos. De certa maneira, dá para pensarmos que “O Construtor de Pontes” é a versão contemporânea e australiana de “Vidas Secas” (Record). Uma vez que o leitor compreende essa associação, há várias relações divertidíssimas que podemos fazer: Outback versus Sertão; Michael versus Fabiano; Penélope versus Dona Vitória; garotos Dunbar versus o menino mais velho e o menino mais novo; Aurora e Aquiles versus Baleia; e até Telêmaco, Hector e Agamenon versus papagaio.


Então você está dizendo, Ricardo, que Markus Zusak imitou Graciliano Ramos?! Não, querido(a) leitor(a) do Bonas Histórias. Não foi isso o que quis expressar. Se foi essa a ideia que passei, lhe devo perdão. Me desculpe, por favor! Muito provavelmente, o best-seller australiano nunca leu e não conhece a fundo o clássico da literatura brasileira. Só estou apontando as semelhanças entre as duas histórias e o forte paralelo entre a ambientação e o espaço narrativo. Não à toa, este é um recurso narrativo interessantíssimo que é usado por muitos bons escritores no mundo inteiro e em várias épocas.


Outro aspecto charmoso de “O Construtor de Pontes” é as fortes intertextualidades literária, mitológica e cinematográfica. Dessa trinca, a que mais gostei foi da referência constante às produções do cinema. Os garotos Dunbar estavam sempre à frente da televisão assistindo aos filmes (prática comum nos anos 1980 e 1990) e não se furtavam em comentar suas experiências como cinéfilos. Confesso que me diverti com o relato sobre os longas-metragens que a galerinha conferia no livro. Quem acompanha com regularidade a coluna Cinema, se recordará que compartilho a mesma opinião das personagens de Zusak sobre “Cidade de Deus” (2002), o melhor filme já produzido no Brasil. Conforme explicitei no post de “Ainda Estou Aqui” (2024), a obra-prima dirigida por Fernando Meirelles e Kátia Lund e roteirizada por Braulio Mantovani merecia o Oscar de Melhor Filme em 2003 (na categoria Geral e não apenas entre os títulos que concorriam à estatueta na categoria Internacional). Adorei ler isso no romance.


Em relação ao estilo da narrativa, “O Construtor de Pontes” é uma típica obra de Markus Zusak. Basta a leitura de alguns capítulos para identificarmos o DNA da literatura do autor australiano. Ali estão o retrato ao mesmo tempo ácido e poético da infância e da adolescência das personagens centrais; as relações simultaneamente fortes e violentas entre os irmãos; a vida dura e quase sempre pautada por tragédias e por lances inexplicáveis do destino; e, como não poderia ser diferente, a linha tênue entre a moral e a ética. Saber diferenciar o certo do errado e o errado do certo depende do contexto e da realidade de cada um. Essa dicotomia é a base para as reflexões pretensamente filosóficas que o escritor nos traz.


De todas as partes deste romance, a que mais gostei foi do desfecho. Nesse ponto da leitura, admito que caí no choro. Sabe quando você debulha em lágrimas até o rosto ficar vermelho? Pois foi exatamente o que aconteceu comigo no domingo à noite! Ai, ai, ai. Sei que não é muito elegante (nem másculo) falar sobre isso, mas não escondo nada dos leitores da coluna Livros – Crítica Literária. Juro que não sei explicar o motivo do aguaceiro que me fez até soluçar. Seriam os méritos do desenlace sensível e bonito de “O Construtor de Pontes”? Pode ser. Ou seria o fato de eu viver há quase dois anos longe da minha família e, portanto, estar mais sensível aos dramas com essa temática? Também pode ser. Se não consigo explicar precisamente a causa do meu comportamento, posso garantir que o final do livro me emocionou bastante. Isso é indiscutível.

Mais recente livro de Markus Zusak, O Construtor de Pontes é um drama histórico sobre uma família habituada às tragédias, à violência e à solidão no Oeste da Austrália

Por mais méritos que o novo romance de Zusak tenha, também precisamos apontar para as suas graves falhas. Achei duas principais, que prejudicaram a experiência de leitura. A primeira é a narração inverossímil. Essa é justamente a maior diferença para “A Menina que Roubava Livros”. Se no romance anterior, o autor escolheu um dos mais surpreendentes e incríveis narradores da literatura contemporânea (a Morte), agora ele selecionou um horrível (o mais velho dos garotos Dunbar). E qual o problema nisso, senhoras e senhores? São vários. Não dava para Matthew ser onipresente e onisciente (como a Morte era) em relação às histórias de Michael, Penélope, Clay, Carey e tantas outras personagens. Dessa forma, a narrativa do romance se torna injustificável.


É possível perceber que Markus Zusak sabia dessa incongruência e fez um esforço gigantesco para dar credibilidade ao relato de Matthew Dunbar. Mesmo assim, preciso dizer que ele não nos convenceu. Há muitas passagens que Michael jamais contaria para Penélope ou para Clay. Ou você conta tudo para sua esposa/seu marido e para seu/sua filho(a), hein? Claro que não! Assim como há vários trechos da vida da mãe que ela nunca relataria em detalhes para o filho curioso. E tanto Clay não conseguiria pormenorizar alguns episódios de seu passado para o irmão mais velho como certamente Carey não iria se expor excessivamente ao amigo/namorado. Por mais que falemos bastante sobre nossas vidas para familiares e cônjuges, ainda assim guardamos muitas coisas conosco. Ou não?!


Confesso que fiquei bastante frustrado com o erro de foco narrativo. É aquela velha discussão: o texto em primeira pessoa fica mais bonito e intensifica as emoções do livro? Siiiiiiiiiim. Então podemos usá-lo indiscriminadamente sem pensar nas consequências? Nãaaaaaao. Em “A Menina que Roubava Livros”, até fazia sentido a Morte saber tudo o que se passava com Liesel Meminger e com as demais personagens. Porque ela era a Morte, ora pá. Era alguém que tinha onipresença e onisciência do que ocorria no planeta inteirinho em todas as épocas. Transferir essa propriedade para Matthew Dunbar, um mero mortal, ou tentar justificar seu conhecimento aprofundado dos cenários narrados nas mais diferentes épocas (inclusive descrevendo em detalhes o que as pessoas pensavam e sentiam) me pareceu um absurdo. A-B-S-U-R-D-O.


O segundo grande incômodo teve como origem a forte sensação de déjà vu. “O Construtor de Pontes” é muito parecido à trilogia “O Azarão” e ao romance “Eu Sou o Mensageiro”. É até difícil apontar as diferenças entre os cinco livros (os quatro que citei agora e o novo). As personagens (jovens desajustados e/ou órfãos), os narradores (relato em primeira pessoa de alguém do clã de protagonistas), os conflitos (intrigas familiares, mortes e abandonos), os contextos temporais (adolescência), vários elementos narrativos (cachorro/animal de estimação, turfe/cavalo, boxe/esporte, amor platônico por uma garota/primeiro amor, violência doméstica/briga entre irmãos etc.) e os cenários (casa numa pequena/média cidade australiana e residência num bairro do subúrbio) não mudam nadinha de nada de um livro para outro. Juro que, no meio da leitura de “O Construtor de Pontes”, comecei a me lembrar automaticamente de várias personagens e passagens de “O Azarão”, “Bom de Briga”, “A Garota que Eu Quero” e “Eu Sou o Mensageiro”.


Ricardinho do meu coração, não seja tão injusto com sempre afável e carismático Markus Zusak. Todo autor acaba trabalhando sempre a mesma temática e utilizando a mesma composição narrativa. Veja atentamente o trabalho de figuras como Elena Ferrante, Orhan Pamuk, Rubem Fonseca, Haruki Murakami, Khaled Hosseini, Régine Deforges, Harlan Coben e Nick Hornby e você notará que eles não saem do mesmo receituário ficcional. Cada um deles tem seus próprios ingredientes textuais e seus temperos narrativos particulares que são usados em incontáveis títulos. Com o best-seller australiano não seria diferente, né?

Nascido em Sydney em junho de 1975, Markus Zusak é o escritor australiano que publicou títulos como A Menina de Roubava Livros, O Construtor de Pontes, O Azarão, Bom de Briga, A Garota que Eu Quero e Eu Sou o Mensageiro

Concordo em parte com essas afirmações, sempre lúcido(a) e participativo(a) leitor(a) imaginário(a) do Bonas Histórias. O que você disse é verdade – os grandes escritores versam (ou seria prosam?) quase sempre em cima de alguns assuntos e fórmulas pré-definidos. Entretanto, não encontramos livros tão iguais no portfólio ficcional desses romancistas de sucesso a ponto de nos decepcionarmos com suas leituras. Das seis obras de Zusak, cinco são quase idênticas. Aí não, camarão! A impressão de repetição cansa a nossa beleza.


Ainda mais porque, lembremos, o cara ficou TREZE ANOS formulando “O Construtor de Pontes”. TREZE ANOS! Fico repetindo propositadamente essa informação para dar a dimensão da expectativa criada nas mentes e nos corações do público consumidor. E seu último romance era totalmente diferente do que havia sido entregue no início da carreira. Portanto, não era um contrassenso esperarmos que Zusak fosse nos encantar com uma narrativa diferenciada e com um enredo inovador. Mas não! Ele correu para as velhas e manjadas fórmulas dos fracos livros anteriores. NÃAAAAAAAO!!!!


Tenho que dizer que “O Construtor de Pontes” tem também alguns pequenos erros de sequência narrativa e de lógica narrativa. Um leitor minimamente atento irá pegá-los com facilidade. Todavia, é importante ressaltar que esses tropeços não atrapalham a experiência de leitura, como os problemas do foco narrativo e da sensação de déjà vu fazem. Exatamente por isso, não vou apresentá-los. Se alguém quiser relatar os furos que achou na trama, fique à vontade para usar a caixa de comentários do fim do post. Garanto que há uma coletânea de pontos interessantes para ser debatida sobre esse assunto.


Em suma, temos aqui um belo livro, principalmente se você ainda não leu nada deste autor. Analisado isoladamente, “O Construtor de Pontes” até pode agradar uma boa parcela do público ávida por histórias fortes e diferenciadas (quase escrevi agradar a gregos e troianos). Reconheço que eu gostei bastante desse romance. Definitivamente, ele não é ruim. De forma nenhuma!


O problema surge quando efetuamos comparações – algo inerente aos seres humanos, né? Uma vez que colocamos a nova publicação lado a lado com “A Menina que Roubava Livros”, por exemplo, a vontade é de praticarmos suicídio (ou de espancarmos os irmãos menores, como a família Dunbar fazia).


É, senhoras e senhores, acho que o simpático e esforçado Markus Zusak não conseguirá tão cedo escapar do impiedoso e triste “Complexo de Gabriel García Márquez”. Será que teremos que esperar mais uma ou duas décadas para o australiano provar que é capaz de ao menos se aproximar do resultado de “A Menina que Roubava Livros”? É isso o que vamos aguardar. Esperemos. Esperemos...


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