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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Livros: Nós Que Vivemos – O impecável romance histórico de Ayn Rand

Foto do escritor: Ricardo BonacorciRicardo Bonacorci

Publicada em 1936 e relançada em 1958, a narrativa ficcional de estreia da escritora russa tem tintas autobiográficas e apresenta o drama de uma jovem burguesa de São Petersburgo logo após a Revolução de 1917. A protagonista desta obra encara o totalitarismo, as privações, a violência e as injustiças do regime comunista da recém-implementada União Soviética, enquanto faz as descobertas das incongruências do primeiro amor.

O livro Nós Que Vivemos é o primeiro romance de Ayn Rand, escritora e filósofa russa naturalizada norte-americana

Neste começo de 2025, li um romance histórico que me deixou encantado. Para ser sincero com os leitores do Bonas Histórias que não me abandonam nem mesmo às vésperas do atrasado Carnaval (Tem alguém aí? Alguém? Alguéeeeeem?!), esta obra é uma das melhores ficções literárias que tive a oportunidade de degustar nos últimos anos. Juro que fiquei embasbacado (para mim, embasbacado é um baita elogio, tá?) com a qualidade narrativa, a força da trama, a riqueza das personagens e as reviravoltas deste drama sentimental e filosófico. Para completar a pegada charmosa da publicação, o enredo é ambientado na fase inicial da Revolução Russa


Mas de que livro mesmo estou comentando?! Obviamente, me refiro (conforme você, tal qual um Sherlock Holmes ou uma Miss Marple, já notou pelo título e subtítulo do post) nessas intermináveis linhas a “Nós Que Vivemos” (Minotauro), o título ficcional de estreia de Ayn Rand. Infelizmente, em tempos de ditadura dos algoritmos e dos SEOs, é impossível fazer pequenas surpresas aos leitores nem um pouco desavisados desse mundão selvagem e arruaceiro chamado Internet. Foi mal!


Gostei tanto do romance de Rand que o escolhi para abrir os trabalhos da coluna Livros – Crítica Literária nesta novíssima temporada do blog. Portanto, aí vai a análise completa desta obra que me lembrou bastante “Orgulho e Preconceito” (Penguin-Companhia), o clássico de Jane Austen que figura na lista das minhas melhores leituras. Também me recordei de outras três belíssimas publicações: “A Bicicleta Azul” (BestBolso), o maior sucesso de Régine Deforges, “Gina” (Ática), a mais polêmica narrativa de Maria José Dupré, e “Amor em São Petersburgo” (BestBolso), um dos principais trabalhos ficcionais de Heinz G. Konsalik.


Se não antecipo os motivos dessas associações aparentemente absurdas (um pouco de suspense não faz mal e, siiiiiiim, ainda é possível de ser empregado num texto analítico!), posso adiantar para quem acompanha a lista das melhores manifestações artísticas de cada ano da coluna Recomendações que certamente encontraremos “Nós Que Vivemos” no topo do ranking das leituras mais impactantes de 2025. Já consigo fazer esse tipo de previsão em fevereiro mesmo. Só não dá para definir a posição exata que a trama de Ayn Rand ficará no pódio. Ainda assim, não me surpreenderia se ela ficar nas três primeiras colocações.


Ganhei essa obra de presente em setembro de 2024, em minha última (e brevíssima) visita à São Paulo. A passagem pela Terra da Garoa foi tão rápida que minha família nem soube. No encontro com a dupla de meus melhores amigos (abraços, Paulinho e Dudu) na Casa Capim Santo, restaurante dentro do Instituto Tomie Ohtake – a família não soube da viagem, mas os amigos souberam –, Eduardo Villela (amigo de infância e agora parceiro profissional na EV Publicações – ele não gosta que o chamemos de chefe) apareceu com uma sacola com vários livros. Eram regalos tanto para mim quanto para o Paulo.

Com fortes tintas autobiográficas, Nós Que Vivemos é o romance romântico de Ayn Rand, escritora russo-norte-americana que criou a corrente filosófica chamada Objetivismo

O velho colega de tempos de Colégio Rio Branco tem essa mania de surgir com um monte de publicações embaixo do braço, algo que a Adriana não conseguiu corrigir após oito anos de matrimônio (beijinho, Dri!). Aposto que você também deve ter amigos, colegas, parentes e conhecidos com esse vício. Como sabe que leio com empolgação tudo o que cai em minhas mãos, Eduardo parece se assanhar ainda mais na arte de propiciar presentes literários com enorme qualidade estética e narrativa.


Naquele dia à mesa do restaurante da Chef Morena Leite (que saudades eu estava da comidinha tipicamente brasileira!!!), ganhei “A História da Cachorra que Mudou a Minha Vida e Vai Mudar a Sua Também” (EV Publicações), a divertida não ficção de Leandro Sosi sobre sua experiência com a Golden Retriever Julieta, e “A Escrita Criativa – Pensar e Escrever Literatura” (EdiPUCRS), a belíssima coletânea de ensaios sobre o fazer literário organizada por Camila Canali Doval, Camila Gonzatto da Silva e Gabriela Silva. E saiba que não usei a palavra “belíssima” na frase anterior à toa. Esse último título entrou na lista de melhores leituras de 2024. Além de “A História da Cachorra que Mudou a Minha Vida e Vai Mudar a Sua Também” e “A Escrita Criativa – Pensar e Escrever Literatura”, ganhei, por supuesto, “Nós Que Vivemos”, um tijolão de quase 600 páginas.


Confesso que li os dois títulos menores antes mesmo de chegar à minha casa em Buenos Aires. Devorei-os nos saguões dos aeroportos de Guarulhos e de Ezeiza e dentro do avião da Aerolineas Argentinas. Pelo volume enorme de páginas, senti que o romance de Ayn Rand exigia uma atenção especial da minha parte. Não dava para lê-lo de bate-pronto nem conseguiria apreciá-lo no vai-e-vem de metrô, trem, ônibus, avião e colectivo. A jornada entre o Jardim São Paulo (minha parada estratégica na capital paulista) e Saavedra (meu cada vez mais querido lugarzinho no mundo) demandava, acredite se quiser, em torno de 12 horas.


Por isso, guardei o presentão (literalmente falando) com carinho. A ideia era só abrir suas páginas na calmaria do janeiro portenho. E foi exatamente isso o que aconteceu. No primeiro momento de tranquilidade após o Réveillon no pequeno apê ao lado do Parque Saavedra (que enfim voltou a ficar vazio – saravá!), corri até a estante e apanhei “Nós Que Vivemos” para efetuar a tão aguardada leitura. Como é bom conhecer os melhores títulos da literatura clássica, né?! No caso, esse é um exemplar tanto da literatura russa (país natal de Rand) quanto da literatura norte-americana (nação em que ela se naturalizou).  


A história por trás da produção e da publicação de “Nós Que Vivemos” é bem interessante e vale o detalhamento neste post da coluna Livros – Crítica Literária. Ayn Rand é o nome artístico de Alisa Zinov'yevna Rozenbaum. Agora você entendeu o porquê da necessidade do nome artístico, né? Escritora, dramaturga, roteirista e filósofa nascida em São Petersburgo em fevereiro de 1905, Ayn vivenciou a Revolução Russa de perto, um dos momentos mais emblemáticos do século XX. Ela tinha 12 anos quando o czar foi deposto pelos bolcheviques liderados por Vladimir Lenin.

Nascida em São Petersburgo em 1905, Ayn Rand é o nome artístico de Alisa Zinov'yevna Rozenbaum, romancista de sucessos como A Revolta de Atlas e Nós que Vivemos

Por ser de uma família burguesa, a menina assistiu ao confisco dos negócios paternos e à perseguição à antiga elite por parte das autoridades comunistas. Em meio as carências financeiras, Ayn Rand (então Alisa Rozenbaum) cresceu e se formou em Pedagogia Social. Fã de filosofia, devorava os livros dos principais pensadores russos e europeus da época. Seu sonho desde a infância era se tornar escritora.


Em fevereiro de 1926, Ayn/Alisa viajou para Chicago com a justificativa de visitar parentes que imigraram para os Estados Unidos antes da Revolução Russa. Contudo, sua intenção desde o início era ficar na América do Norte e trabalhar como roteirista de cinema. Assim, nunca mais voltou para a União Soviética/Rússia. Almejando uma carreira em Hollywood, se mudou para Los Angeles. O único problema da agora cidadã norte-americana era a distância da família. Os pais e as duas irmãs mais novas jamais conseguiram a permissão para emigrar ou viajar para o exterior. Assim, o restante do clã permaneceu a vida inteira em São Petersburgo.


No novo país, Ayn Rand se casou com um norte-americano e começou, conforme seu plano, a atuar como roteirista. Em 1930, então com 25 anos, ela alimentava o sonho de escrever um romance. A ideia inicial era produzir uma ficção científica. Entretanto, o marido e a família dele incentivaram a jovem escritora a contar uma história que se passasse em sua terra natal. Por mais que os ocidentais imaginassem como era a vida na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e os dramas vivenciados pela classe burguesa russa com a mudança de sistema político em 1917, ainda assim havia muito o que ser contado.


Se sentindo à vontade com a narrativa que lhe foi sugerida, Ayn escreveu entre 1930 e 1933 seu primeiro livro ficcional, uma trama dramática protagonizada por Kira Argounova, uma jovem burguesa que era extremamente pragmática e pouquíssimo sentimental. Ainda que nada emotiva e achando-se com repulsão ao romantismo, a moça precisou encarar incontáveis desafios para sobreviver na São Petersburgo recém-transformada em comunista. Esse é o enredo de, voilà, “Nós Que Vivemos”, um romance romântico extremamente original. Pode um título romântico ter como protagonista uma figura antirromântica, Arnaldo? Independentemente da resposta do ex-juiz de futebol, já deu para sentirmos o nível de criatividade desta narrativa. Quando falei que o livro é excelente, não exagerei!


Usando as lembranças da infância e da adolescência para criar o cenário da obra, aproveitando-se das histórias reais da família para montar o enredo e se inspirando em pessoas reais para compor as personagens fictícias, Ayn Rand fez de “Nós Que Vivemos” seu trabalho literário mais autobiográfico. Por mais que ela sempre tenha negado que ela fosse Kira, as semelhanças das trajetórias das duas dão margens a comparações. Uma das raras diferenças era que a russa verdadeira queria contar histórias e a russa de mentirinha queria construir edifícios. Até o mesmo namorado elas compartilharam. Leo, o primeiro amor da protagonista ficcional, foi baseado em um homem real com quem Ayn/Alisa se apaixonou em São Petersburgo. Incrível a união de realidade e invenção literária, né?

Nós Que Vivemos é a ficção de estreia de Ayn Rand, autora russo-norte-americana que se destacou em meados do século XX com a publicação de romances e livros filosóficos

Concluída a narrativa do romance, a escritora precisou de mais três anos para achar uma editora norte-americana que quisesse publicar sua história. As recusas se avolumavam. Em um setor dominado por profissionais de esquerda (até hoje o mercado editorial é assim em boa parte do mundo, e não era diferente nos Estados Unidos Pré-Guerra Fria), ninguém queria criticar a União Soviética e o sistema socialista, visto como uma inovação social encantadora. Naquele momento, os inimigos aparentemente mais cruéis e temidos dos capitalistas norte-americanos eram os nazistas e os fascistas.


Apenas em 1936, a Macmillan, um dos mais tradicionais selos editoriais da Inglaterra que montou escritório na América do Norte, aceitou lançar “Nós Que Vivemos”. Ainda assim, os editores e os sócios brigaram feio. Algumas lideranças da empresa não queriam publicar um romance com tal linha editorial e cujo trabalho era de uma jovem autora estrangeira. Apesar das desavenças internas, o livro chegou, enfim, às livrarias. Aí surgiu um novo problema. Ele não caiu no gosto dos leitores e as vendas permaneceram tímidas por meses e meses.


Nem mesmo a tentativa de transformar a história de Kira Argounova em peça teatral deu certo. Após algumas pouquíssimas apresentações, a produção cênica criada diretamente por Rand foi cancelada. Motivo: boicote do elenco. Pelo visto, não foram apenas os leitores que se sentiram incomodados com aquela história. Os atores e as atrizes, receosos da receptividade do público e da opinião pública, preferiram não se envolver com uma trama tão política.


Para piorar ainda mais o quadro, a Macmillan alegou que perdeu os tipos utilizados na primeira impressão do livro. É bom dizer que, naquela época, não se usava placas e sim tipos nas gráficas. Sem os tipos (que se extraviaram ou foram extraviados), não era possível fazer uma segunda edição do romance. Isso é, se algum dia a primeira leva de unidades produzidas fossem desovadas das lojas, o que parecia difícil.


Enquanto os norte-americanos desprezavam sem piedade “Nós Que Vivemos”, os europeus se apaixonaram pelo drama histórico concebido por Ayn Rand. Na virada dos anos 1930 para os anos 1940, a obra se tornou best-seller na Inglaterra, Dinamarca e Itália. No Velho Continente, o livro não era visto apenas como uma crítica contumaz à URSS e ao modelo socialista e sim como uma alegoria fidedigna às mazelas dos sistemas ditatoriais como um todo, inclusive aqueles comandados pela extrema-direita.


A prova maior do êxito europeu do romance russo-norte-americano foi a adaptação ilegal de “Nós Que Vivemos” para as telonas. Um diretor italiano roteirizou a trama inaugural de Rand sem a aprovação da autora e o lançou de maneira pirata nas salas de cinema. A produção ficou tão volumosa que foi preciso dividi-la em dois filmes: “Nós Que Vivemos” (Noi Vivi: 1942) e “Adeus Kira” (Addio Kira: 1942). O sucesso da versão cinematográfica foi enorme, principalmente na Itália e na Alemanha. Cinco meses após o lançamento nas telas, o longa-metragem foi banido pelos governos da Bota e do Terceiro Reich. O motivo?! Caso você tenha pensado que foi por causa da pirataria, se enganou. Os fascistas e os nazistas viram que a história ambientada em São Petersburgo era na verdade uma crítica nem um pouco velada aos sistemas políticos implementados por Mussolini e Hitler. Falar mal do Duce e Führer?! Aí não pode, não!

Publicado em 1936 e relançado em 1958 nos Estados Unidos, Nós Que Vivemos é o romance histórico de Ayn Rand, escritora e filósofa russa naturalizada norte-americana

“Nós Que Vivemos” só se tornaria bastante procurado nas livrarias dos Estados Unidos após o êxito comercial de “A Revolta de Atlas” (Arqueiro), a principal publicação de Ayn Rand. Best-seller desde o seu lançamento em 1957, esse livro sim catapultou a carreira da romancista russa para um novo patamar. O frenesi gerado pela crítica elogiosa e pela avidez do público leitor foi realmente impressionante. “A Revolta de Atlas” é um dos mais importantes títulos literários de meados do século XX e elevou naturalmente a demanda pelas demais obras da autora. Dessa maneira, foi realizada, no final de 1958, uma segunda edição de “Nós Que Vivemos”. Lembremos que a editora tinha “perdido” os tipos gráficos da primeira edição do romance histórico ambientado na URSS.


Aproveitando a nova publicação de sua narrativa de estreia, Ayn Rand revisou todo o texto de “Nós Que Vivemos”. Segundo relatou mais tarde, essa foi a primeira vez que ela releu seu trabalho inaugural. Apesar de não ter alterado nada significativo da estrutura da história, a russa mexeu bastante no texto com a proposta de deixar a narrativa mais fluída. A justificativa é que quando escreveu a trama na primeira metade da década de 1930, ela ainda não dominava o inglês. A versão brasileira, cuja tradução foi feita por Matheus Pacini, é baseada na edição de 1958 e não na de 1936.


Atualmente, o primeiro romance de Rand contabiliza alguns milhões de exemplares vendidos só na América do Norte. Há quem ache este livro melhor do que “A Revolta de Atlas” – eu estou nesse grupo! Falo, obviamente, do ponto de vista literário (não sou filósofo para analisar os conceitos do Objetivismo, corrente que explicarei mais à frente). Pelo menos considero essa narrativa mais acessível, carismática e surpreendente do que a do grande best-seller da autora. Em suma, vejo “Nós Que Vivemos” como uma obra mais bem estruturada, mais bem acabada e agradável ao paladar dos fãs da boa ficção. Apesar do volume elevado de páginas (são mais de meio milhar), o li de maneira fluida, rápida e gostosa. Algo que, preciso informar, não aconteceu com “A Revolta de Atlas”, que é ainda mais volumoso (são mais de 1.200 páginas). Achei o quarto romance de Ayn Rand mal editado: com alguns péssimos diálogos e partes desconectadas.


Para não ficarmos em um Fla-Flu de preferências literárias subjetivas (gosto mais desse título e menos daquele...), o correto, conforme a própria autora russa sempre alertou, seria ver os dois títulos como complementares. Se em “Nós Que Vivemos”, conhecemos de perto o problema do totalitarismo na vida das pessoas comuns, em “A Revolta de Atlas” recebemos algumas respostas do ponto de vista filosófico e moral para superar tal questão. Além disso, dá para fazermos intrincadas associações. Seria Leo (o namorado de Kira) a versão russa e malsucedida de Francisco D´Anconia, personagem do grande best-seller de Rand que, enfim, conseguiu prosperar sob o código ético e social do capitalismo?! Há muita gente que balança a cabeça para cima e para baixo quando ouve essa pergunta – também estou nesse grupo!


Por falar em filosofia, Ayn Rand é mais conhecida como filósofa do que como escritora ficcional. Pudera: ela é a fundadora do Objetivismo, corrente que discute a realidade pelo ponto de vista da lógica, da percepção sinestésica, da moral, da metafísica e da política. Curiosamente, os principais pontos do Objetivismo foram lançados em alguns dos mais famosos romances da autora: “A Nascente” (Arqueiro), outro tijolão de 800 páginas publicado em 1943, e “A Revolta de Atlas”. Só mais tarde, Rand organizou os princípios da nova corrente filosófica em vários ensaios. Quando ela morreu em 1982, Leonard Peikoff, visto desde sempre como seu herdeiro intelectual, tratou de seguir explanando a teoria e a estrutura lógica do Objetivismo.

Primeiro romance de Ayn Rand, escritora ficcional e filósofa nascida em São Petersburgo, Nós Que Vivemos é o drama histórico ambientado na União Soviética logo após a Revolução Russa de 1917

Nesse sentido, podemos enxergar Ayn Rand como uma pensadora privilegiada do seu tempo que soube unir arte ficcional da mais alta qualidade com reflexões filosóficas originais e sagazes. Em outras palavras, ela é do time de Albert Camus – “O Estrangeiro” (Record), “A Peste” (Record) e “O Homem Revoltado” (Record) –, Virginia Woolf “Orlando” (Penguin-Companhia), “Mrs. Dalloway” (L&PM Pocket) e “Passeio ao Farol” (Rio Gráfica) –, Jean-Paul Sartre – “A Idade da Razão” (Nova Fronteira) e “A Náusea” (Nova Fronteira) –, Simone de Beauvoir – “A convidada” (Nova Fronteira) e “Os Mandarins” (Nova Fronteira) –, e Italo Calvino – “O Visconde Partido ao Meio” (Companhia de Bolso) e “Se Um Viajante Numa Noite de Inverno” (Planeta DeAgostini). Pelo meu histórico de leituras, acho que não preciso dizer que adoro a mescla de tramas ficcionais com bons conceitos filosóficos, né?


O enredo de “Nós Que Vivemos” começa em 1922. Kira Alexandrovna Argounova, a jovem de 18 anos que protagoniza os principais dramas do romance, desembarca na estação de trem de Petrogrado (um dos vários nomes da cidade de São Petersburgo, que também se chamou Leningrado no período soviético). Ela vem da Crimeia. Está ao lado do pai, Alexander Dimitrievitch Argounov, da mãe, Galina Petrovna, e da irmã dez anos mais velha, Lydia. Depois de cinco anos distante da cidade natal, a família retorna unida. A ideia é reconstruir suas vidas na antiga capital do Império Russo.


Os Argounov precisaram deixar Petrogrado em 1917 (tenho vontade de dizer São Petersburgo, mas vou me ater à nomenclatura do romance) quando a Revolução Russa explodiu. Na disputa inicial entre o Exército Vermelho (comunista) e o Exército Branco (capitalista), uma parte da Rússia ficou com cada lado – Petrogrado, por exemplo, ficou com os vermelhos, enquanto a Crimeia com os brancos. Por ser empresário (era dono de uma fábrica têxtil), Alexander achou por bem imigrar com a família para o Sul até que a situação política se normalizasse no Norte. Ingenuamente, achou que era questão de meses para a empreitada socialista ser derrotada pela ação capitalista.


Entretanto, o efeito foi inverso. O Exército Vermelho avançou para o restante do país, destroçou o inimigo e venceu a Guerra Civil. E a União Soviética foi implementada, algo abominável para os burgueses russos e estrangeiros. Sem esperanças, os Argounov colocaram os rabinhos entre as pernas e fizeram o caminho de volta. A chegada à estação de trem de Petrogrado é marcada por muitas dúvidas e medos.


O recomeço não é fácil. Como todos os bens privados do país, a casa de Galina e a fábrica de Alexander foram nacionalizadas. Portanto, eles não têm nenhuma propriedade. Por sorte, lhes é concedido o direito de habitar uma pequena ala do antigo casarão em que viviam. Mobíliam a nova/velha morada com antigos móveis que não foram aproveitados pelos novos moradores dos demais cômodos. Lembremos: num país socialista, as casas são compartilhadas. Cada família tem direito ao número de cômodos compatível a quantidade de integrantes.


A maior complicação é, contudo, conseguir dinheiro. Acostumado a empreender, Alexander tenta abrir novas empresas, mas jamais tem êxito. O sistema socialista inviabiliza qualquer iniciativa privada (juro que me lembrei de um país atual...). Dessa maneira, a família tem que viver com as parcas economias geradas no período da bonança.

Com fortes tintas autobiográficas, Nós Que Vivemos é o romance romântico de Ayn Rand, escritora russo-norte-americana que criou a corrente filosófica chamada Objetivismo

A situação de carência material e a sensação de perseguição dos Argounov são idênticas às de todos os antigos burgueses de Petrogrado. Quem teve dinheiro e status social na época do Império Russo, é malquisto pelas autoridades soviéticas após a Guerra Civil. Os neolíderes só se “preocupam” (o entre aspas não é por acaso, tá?) com o bem-estar e o progresso dos trabalhadores do campo e das fábricas. Não à toa, o regime é chamado de Ditadura do Proletariado.


Na residência de Maria Petrovna, a irmã de Galina (e tia de Kira), as dificuldades também são evidentes. Vasili Ivanovitch, marido de Maria, era dono de um comércio de peles que também foi desapropriado pelo governo. Sem como ganhar dinheiro, ele se mantém minimamente vendendo de tempos em tempos as antigas posses da família – mobília da casa, roupas de luxo e joias. Maria e Ivanovitch tiveram três filhos: Victor Duvaev, já no período final da faculdade de Engenharia Elétrica no Instituto Tecnológico, Irina, de 18 anos, e Acia, uma garotinha de 8 anos. Como é aluno universitário e demonstra simpatia pelos ideais socialistas, Victor ganha cupons de racionamento de comida para serem trocados nos postos públicos de abastecimento. Como eram cinco bocas em casa, a cota alimentícia não dava para quase nada.


Vendo a trajetória do primo no Instituto Tecnológico e sonhando em construir pontes e edifícios, Kira também se matricula no curso de Engenharia. Na universidade, a moça conhece vários jovens integrantes do Partido Comunista: Andrei Federovitch, antigo soldado do Exército Vermelho que é tido como herói na Guerra Civil, tem uma cicatriz no rosto e faz parte da GPU, a temida polícia secreta soviética; Sonia Presniakova, uma empolgada militante política que parece gostar da protagonista de “Nós Que Vivemos”; e Pavel Syerov, um importante e ambicioso integrante da Célula Comunista. Pelo passado burguês de Kira e pelos ideais pouco socialistas da moça, que ela faz questão de expressar em alto e bom som para todos a sua volta, o trio vermelho fica desconfiado e passa a supervisionar os passos da novata do Instituto Tecnológico.


No começo, esse olhar inquisitivo e atento dos colegas sobre sua rotina não é um problema muito grande para Kira. Entretanto, quando ela começa a namorar às escondidas Lev Sergeievitch Kovalensky, um contrarrevolucionário procurado pela GPU, o panorama muda. Leo, como o rapaz é chamado carinhosamente, é perseguido porque seu pai, um famoso tenente da Marinha, ousou desafiar o sistema. Assim, o rapaz não pode aparecer em público (o pai já foi assassinado). Apaixonada pelo contrarrevolucionário de beleza genuína, Kira não pode vacilar. Qualquer escorregada da sua parte, a vida de Leo será colocada em perigo.


Paradoxalmente, enquanto a paixão por Leo cresce, a protagonista assiste à amizade com Andrei se consolidar. Mesmo com todas as diferenças de pensamentos e crenças políticas (ela é de direita e capitalista, ele é de esquerda e comunista), Kira e o policial da GPU se tornam, surpreendentemente, próximos e íntimos. Até quando a filha de Alexander Dimitrievitch Argounov e Galina Petrovna conseguirá equilibrar os dois lados tão antagônicos de sua nada fácil vida: o amor inquestionável por um homem que está sempre metido em atividades subversivas e a amizade verdadeira por um idealista do Comunismo? Esse é o mistério que move a trama ficcional de Ayn Rand.

Protagonizado por Kira Argounova, uma jovem burguesa de São Petersburgo, Nós Que Vivemos é o romance histórico de Ayn Rand, escritora e filósofa nascida na Rússia que se naturalizou norte-americana

Como falei no início deste post do Bonas Histórias, “Nós Que Vivemos” é um tijolão. Suas 570 páginas estão divididas em duas partes, cada uma contendo 17 capítulos. Há ainda um prefácio da autora que foi produzido especialmente para a segunda edição do livro (aquela de 1958). E temos uma introdução e um posfácio de Leonard Peikoff, renomado filósofo e historiador canadense considerado pela própria Rand como o principal discípulo do Objetivismo. Precisei de cinco noites para concluir essa leitura no finalzinho de janeiro. Acredito que cada sessão diária de leitura tenha me demandado entre quatro e cinco horas. Ou seja, concluí o conteúdo integral deste romance em mais ou menos 22 ou 23 horas. Juro que não marquei. De qualquer maneira, a somatória de tempo deve ter se aproximado de um dia inteiro.


Feita a contextualização da minha leitura, apresentado o panorama geral da obra e da carreira da autora e explicado sucintamente o enredo do romance, podemos entrar agora na análise literária propriamente dita, o cerne dos posts da coluna Livros – Crítica Literária. Aí vamos nós, senhoras e senhores!


Dos elementos da narrativa ficcional, aquele que mais gostei de “Nós Que Vivemos” foi a ambientação. Acompanhar a realidade da URSS a partir da visão de uma família burguesa é uma experiência sensacional. O leitor se sente realmente vivenciando o dia a dia de Kira e a rotina dos familiares, amigos e inimigos da protagonista. A riqueza de detalhes dos cenários, do cotidiano, do clima e da cultura russa/soviética é impressionante. Dá para citar alguns componentes: a mastigação interminável de sementes de girassol, as horas e horas passadas na fila do pão, a alegria de receber cupons de racionamento, o desconforto por dividir a casa com várias famílias, o medo da polícia política, o funcionamento do aquecimento doméstico, o machismo da época etc. Só mesmo uma autora que tenha passado por tudo aquilo que suas personagens sofrem poderia descrever com tanta fidedignidade o espaço narrativo, os eventos históricos, a rotina da população e os dramas humanos.


É bom dizer que por mais que imaginemos os perrengues dos cidadãos soviéticos com a dinâmica de um país moldado pelo sistema socialista (não é diferente, por exemplo, ao que passam hoje cubanos e norte-coreanos, em maior escala, e moçambicanos e venezuelanos, em menor escala), ainda assim ver de perto cenas, conflitos e injustiças é muito mais potente. Muuuuuuuuuuuuito mais! Uma coisa é você supor como era a vida há cem anos no primeiro país a abraçar as ideias de Karl Marx e o modelo de Estado de Vladimir Lenin. Outra totalmente diferente é acompanhar de pertinho as personagens ficcionais que têm cara, jeito, crenças, pensamentos e comportamentos de pessoas reais. Portanto, como romance histórico, “Nós Que Vivemos” é um livrão!  


É interessante notar que o drama do totalitarismo fica em segundo plano, por mais complicações que a tirania e sua violência trazem a reboque. Pelo menos foi essa a minha interpretação – a de um leitor que vive na metade da terceira década do século XXI. Por mais que Ayn Rand sempre tenha dito e repetido que sua obra de estreia era um panfleto contra as ditaduras de qualquer espectro ideológico (direita ou esquerda), não foi essa a leitura que fiz. Para ser bem sincero, achei essa história uma crítica contundente, sincera e definitiva ao Sistema Socialista. Na história de Kira Argounova, conseguimos ver o quanto as molas da engrenagem social e econômica se travam e se atrofiam sem os incentivos do capital privado, sem a força da economia de mercado e sem o dinamismo trazido pelo empreendedorismo. E olha que quem está falando isso é uma pessoa que tem incontáveis críticas ao capitalismo selvagem – do contrário, eu não seria um insistente pobretão até agora. Se o capitalismo agressivo tem vários senões, o comunismo também tem seus problemas gravíssimos. Portanto, um não é a melhor alternativa ao outro. Felizmente ou infelizmente, o mundo e a realidade não são dicotômicos nem bicolores, como muita gente insiste em crer ainda hoje.    

Nós Que Vivemos é o drama histórico de Ayn Rand que foi ambientado em São Petersburgo/Petrogrado após o fim da Guerra Civil Russa e a implantação da União Soviética

Outro elogio que tenho a obrigação de fazer a “Nós Que Vivemos” é sobre a excelência da construção de suas personagens. Quase todas as pessoas retratadas na obra são figuras redondas, inclusive os heróis – alguns com características de anti-heróis – e os coadjuvantes. A própria Kira é um exemplo perfeito de alguém que tem muitas características positivas e muitas características negativas. Talvez as exceções (que confirmem à regra geral) ficam com alguns vilões que possuem tintas bastante caricatas. Pavel Syerov e Victor Duvaev são as melhores exemplificações de personagens planas. Eles não têm nuances e possuem apenas perfis com elementos negativos.   


Já que começamos a falar das personagens, é impossível não comentarmos a força literária de Kira Argounova e o choque antagônico da disputa entre Leo Kovalensky e Andrei Federovitch pelo coraçãozinho da destemida e charmosa protagonista.


Em relação à estudante de Engenharia de São Petersburgo/Petrogrado, ela é uma das figuras femininas mais fortes da literatura da primeira metade do século XX. Em muitos aspectos, Kira me lembrou bastante Léa Delmas, a heroína de “A Bicicleta Azul”, romance emblemático de Régine Deforges. Daí a comparação entre as duas publicações que fiz no início deste post da coluna Livros – Crítica Literária. Ambas as moças enfrentaram inimigos políticos poderosíssimos (a personagem russa encara os comunistas e a personagem francesa os nazistas), as maldades de sistemas ditatoriais (que foram contemporâneos, apesar de serem de polos ideológicos opostos) e os horrores dos conflitos armados (no caso de Kira, a Revolução Russa e a Guerra Civil Russa; e no caso de Léa, a Segunda Guerra Mundial). Tudo em nome do bem-estar da família e da sobrevivência dos homens que elas amavam. Não dá para não nos apaixonarmos por mulheres assim, né? Eu falo sem receio nenhum: sou gamado em Léa e, agora, em Kira.


Outra semelhança entre Kira Argounova e Léa Delmas é que as duas estavam a frente de seus tempos e estampavam com naturalidade muitos dos valores que as feministas atualmente bradam com orgulho. Recordemos as liberdades sexuais das protagonistas de “Nós Que Vivemos” e “A Bicicleta Azul”, que seriam vistas com normalidade hoje em lugares mais progressistas, mas que não eram na primeira metade do século passado, épocas em que as tramas se passavam. Suas atuações como chefes de família (em situação de completo caos político-econômico-social) e a interferência na realidade do país (tentativa de mudar as injustiças e a violência dos governos ditatoriais) também são marcantes. Em suma, elas são beeeeeeeeeeem diferentes das heroínas dos romances românticos clássicos.


Por falar na sexualidade de Kira, talvez o mais correto seria compará-la à Gina, personagem que mais gosto da literatura de Maria José Dupré. Pela perspectiva do enredo e do conflito dramático, “Nós Que Vivemos” se parece mais com “Gina”, um dos romances brasileiros mais polêmicos de todos os tempos, do que com “A Bicicleta Azul”. Essa diferença não é nada sutil para compreendermos o comportamento e a mentalidade da protagonista de Ayn Rand. Há momentos na vida que as pessoas precisam engolir o orgulho próprio e os velhos preconceitos para solucionar problemas complicados. Só quem não vivenciou aquela situação de perto consegue julgar as atitudes alheias com a bandeira da moralidade e da pseudo honradez. Kira e Gina arregaçaram as mangas e fizeram o que era preciso para não sucumbir à fome e à miséria. São figuras notáveis!

Nós Que Vivemos é a ficção de estreia de Ayn Rand, autora russo-norte-americana que se destacou em meados do século XX com a publicação de romances e livros filosóficos

Quanto à disputa de Leo Kovalensky e Andrei Federovitch pelo coração de Kira (na minha visão, este é o conflito principal do romance de Rand), o mais legal é notar a gigantesca reviravolta que a trama dá. Admito que sou fã de autores que conseguem mudar a percepção do leitor a conta-gotas. Em outras palavras, começamos torcendo por uma personagem e tendo antipatia pela outra. À medida que a história evolui e conseguimos ter o entendimento correto da realidade ficcional, mudamos a torcida e a antipatia. No caso de relacionamentos tóxicos, a ficha demora mesmo para cair. Mas quando cai, o impacto é de um terremoto emocional para a vítima (e para os leitores que a acompanham de perto). Ayn Rand fez esse movimento de quebra de expectativas com primor – quem faz isso com perfeição na ficção contemporânea é Elena Ferrante, como demonstrado na série literária “A Amiga Genial” (Biblioteca Azul). Só não entro em detalhes sobre os acontecimentos da obra russa e as características das duas personagens citadas para não estragar as incríveis surpresas da leitura e o impacto absurdo desta experiência literária. Afinal, podemos ter muita gente por aqui que ainda não percorreu as páginas de “Nós Que Vivemos”.


Quem melhor fez essa quebra de expectativa na literatura ficcional (escancarando relacionamentos tóxicos e invertendo a torcida romântica do leitor/protagonista) foi Jane Austen com “Orgulho e Preconceito”. Se você ainda não leu este livro, pare tudo o que estiver fazendo (inclusive esse passeio pelo Bonas Histórias) e o leia imediatamente! Entendeu agora à associação feita anteriormente entre as duas publicações?! Pelo viés romântico, “Nós Que Vivemos” é a versão russa e do século XX do clássico inglês do século XIX. Falo isso não como uma crítica negativa ou para desmerecer a originalidade do romance de Rand. Não! É exatamente o contrário. “Orgulho e Preconceito” é um dos cinco melhores livros que li e Jane Austen é um gênio da ficção. Ver alguém reproduzir com tanta maestria o efeito que sentimos com a história de Elizabeth Bennet é SENSACIONAL! Nesse sentido, a dupla Leo Kovalensky/Andrei Federovitch pode ser associada à dupla George Wickham/Fitzwilliam Darcy. Para os bons entendedores da literatura clássica, acho que já falei demais.


Para encerrar as correlações literárias, a comparação com “Amor em São Petersburgo”, romance de Heinz G. Konsalik, um dos mais populares escritores alemães da segunda metade do século XX, é mais trivial do que a maioria dos leitores do Bonas Histórias poderia supor. A semelhança é meramente pela coincidência do espaço narrativo. Tanto a trama de “Nós Que Vivemos” quanto o enredo da publicação de Konsalik se passam majoritariamente na charmosa capital do Império Russo situada às margens do Mar Báltico – hoje segunda mais populosa metrópole russa. Como gosto muito de São Petesburgo, e das minhas lindas vizinhas nascidas nesta cidade (a quantidade de russos e russas em Saavedra é enorme!), sempre lembro de “Amor em São Petersburgo” quando leio uma história ambientada nessa localidade.


O que posso garantir (sem medo de revelar o spoiler) é que o clímax deste livro é FENOMENAL. No caso, o momento-chave do drama histórico se dá no finalzinho do capítulo XIV da segunda parte. Nesse instante, a narrativa de Ayn Rand nos atinge com tudo e revela a maior prova do amor verdadeiro. Não por acaso, essa é a parte mais linda da trama! Até mesmo eu, que tenho o coração de pedra (desculpem-me, mas sou um antissentimental crônico e incorrigível), fui impactado com rara intensidade pela beleza desta história de amor. Agora imagine o que acontecerá com uma alma mais romântica e sensível ao ler o clímax de “Nós Que Vivemos”, hein?! Pensando melhor, nem quero imaginar.    


Já que estamos tratando das personagens, preciso relatar que, como a maioria dos romances históricos da literatura russa, os leitores brasileiros de “Nós Que Vivemos” terão alguma dificuldade com os nomes das figuras ficcionais de Ayn Rand. Às vezes, é complicado saber quem é quem no meio da trama, ainda mais quando as sessões literárias são divididas em vários dias. Além das nomeações longas e difíceis, muitas pessoas são chamadas pelos apelidos e/ou pelos nomes do meio. Juro que sempre passo por essa complicação com os tijolões russos. Uma dica que posso dar aos leitores da coluna Livros – Crítica Literária é que anotem durante a leitura quem é quem. Eu sempre faço uma espécie de glossário das personagens das publicações que analiso – sou péssimo para decorar nomes. Nesse caso, esse expediente é obrigatório. Admito que consultei várias vezes a minha cola. Vire e mexe, tinha dúvidas entre quem era Lygia (irmã de Kira) e Irina (prima) e quem era Alexander (pai) e Vasili (tio). Até Pavel, um dos principais vilões, tive que verificar quem era em determinado momento do romance.      

Publicado em 1936 e relançado em 1958 nos Estados Unidos, Nós Que Vivemos é o romance histórico de Ayn Rand, escritora e filósofa russa naturalizada norte-americana

Como é um drama histórico, “Nós Que Vivemos” tem, obviamente, passagens delicadas, fortes e tristes. Até aí não há nenhuma novidade – é essa a proposta deste gênero ficcional. As partes mais sensíveis e dolorosas do livro são o envio injusto de inimigos do Estado para os campos de trabalho forçado na Sibéria, a impossibilidade de ajuda médica para os burgueses adoentados, a falta de emprego para aqueles que não são comunistas, a perda das propriedades privadas para o governo corrupto, a fome e o frio que boa parte da população passa rotineiramente, a falta de privacidade proveniente de um regime que controla a vida privada dos cidadãos e a traição da família em nome do status entre os colegas do partido.


A surpresa é que, mesmo com tantas dificuldades diárias e maldades sistemáticas, o romance esconde instantes bem-humorados. É uma comicidade sutil e inteligente, nada escrachado ou vulgar. Por esse ponto de vista, não é errado dizer que a obra de Rand flerta, por vezes, com a tragicomédia. Está duvidando de minhas palavras?! Então veja com atenção a cena em que Kira e Leo se conhecem. É divertidíssima. E o que falar de quando a protagonista vai assistir a um filme norte-americano no cinema com Andrei? Os governantes soviéticos até liberaram a exibição do longa-metragem estrangeiro ao público, mas mexeram nas legendas. Assim, transformaram a história para que ela se encaixasse no seu ponto de vista ideológico. Hilário! Para completar, a saga de Leo em busca de um emprego é ao mesmo tempo comovente e cômica. Rir das desgraças vivenciadas pelos russos é uma das maneiras de sensibilizar as pessoas para os dramas retratados.


Na interminável seção de pontos elogiosos de “Nós Que Vivemos”, tenho que citar a qualidade de seus diálogos. Além de movimentar a trama, o discurso possui forte conotação filosófica e de crítica política. Se Ayn Rand ainda não era a respeitada filósofa que se tornaria mais tarde (o Objetivismo não tinha sido sequer concebido), já era possível notar a preocupação da romancista com os conceitos dessa área que ela tanto apreciava. O texto do livro ganha camadas extras de profundidade. O leitor menos atento poderá achar algumas falas enfadonhas e desnecessárias. Entretanto, aqueles que curtem o melhor dos subtextos literários irão pirar com a excelência das falas deste romance. Na minha visão, as partes mais reveladoras de “Nós Que Vivemos” estão no discurso e não na narração em si. Preste atenção nisso!


No quesito da crítica política (sempre uma areia movediça, mas que não vou me abster de entrar), confesso que fiz várias reflexões interessantes durante esta leitura. Logo de cara, acho que todos aqueles que pregam qualquer tipo de ditadura ou de governo impositivo (acredite se quiser, mas em pleno século XXI há ainda uma multidão que sai às ruas no Brasil e no mundo para pedir tirania...) deveriam conhecer essa história. Nenhum líder que precisa calar o povo e a imprensa tem boas atitudes. NENHUM! No polo ideológico oposto (que no fundo tem mais semelhanças do que diferenças de comportamento com os rivais), aqueles que ainda fantasiam a aventura socialista da URSS como um modelo de Estado e de bem-estar poderiam ler com atenção a narrativa de “Nós Que Vivemos”. Garanto que muitas “verdades” serão desfeitas.  


O livro também suscita questionamentos políticos bem atuais: a disputa de hoje pela Crimeia (atual Guerra Russo-Ucraniana) é algo que já ocorria há cem anos; a acirrada polarização contemporânea entre extrema-direita e extrema-esquerda é fichinha perto da polarização ideológica do século passado (aquela sim tinha potencial para explodir literalmente o planeta); a propagação de fake news e a manipulação de notícias não são novidades do nosso tempo (existem há um tempão); a ojeriza dos esquerdistas pelo capital privado, pelo empreendedorismo e pelo progresso material é algo muito antigo e chega a ser patético (ainda mais se repetido nos anos 2020); e a propaganda política calcada em factoides como “luta pela liberdade”, “preocupação com o povo” e “em nome da coletividade” é uma ferramenta de dominação manjada de governantes tiranos (que segue sendo usada e angariando incautos fãs).

Primeiro romance de Ayn Rand, escritora ficcional e filósofa nascida em São Petersburgo, Nós Que Vivemos é o drama histórico ambientado na União Soviética logo após a Revolução Russa de 1917

Por mais que todos esses elementos do espaço narrativo e do tempo narrativo indiquem que a história possa ficar enfadonha ou com ritmo lento, asseguro que “Nós Que Vivemos” tem uma narrativa deliciosa e ágil. Inclusive, o romance acumula ótimas cenas. Algumas noites de leitura, tive vontade de seguir madrugada à dentro com o livro em mãos ao invés de dormir. Só não fiz isso porque tenho (algum) juízo. De qualquer forma, em nenhum instante a ambientação se torna um fardo para o leitor. Aí está o grande mérito de Rand. Ela consegue criar um universo ficcional riquíssimo em meio ao debate sobre questões fundamentais do seu tempo (e que dialogam com a nossa época).


Poderia ficar listando por horas e horas todos os elementos narrativos que adorei nesta publicação. Quando digo que foi uma das leituras mais interessantes que fiz nos últimos anos, não é à toa. Porém, não posso me esquecer de apontar alguns aspectos que não gostei de “Nós Que Vivemos”. É, senhoras e senhores, há alguns pontos que deixaram a desejar, o que demonstra que Ayn Rand já era uma excelente autora antes dos 30 anos, mas ainda tinha um chãozinho para se desenvolver. Algo normal em se tratando de uma jovem romancista.  


O principal problema do livro é o foco narrativo, algo que não era tão abordado pelos romancistas comerciais em meados do século XX (ainda hoje, muitos ignoram essa peça das engrenagens ficcionais), mas já era discutido com afinco pelos teóricos da literatura, principalmente pelos formalistas russos. Por isso, imaginei que Rand conhecesse essas discussões. Não nos esqueçamos que ela era uma leitora de alto nível tanto dos conceitos da Filosofia quanto dos conceitos da Teoria Literária. Certamente, conhecia o que era analisado por seus conterrâneos.


Afinal, qual é a deficiência do foco narrativo de “Nós Que Vivemos”? Talvez o mais correto não seria dizer “deficiência” e sim algo que me incomodou consideravelmente. O narrador do romance é do tipo observador onipresente e onisciente. Confesso que não vejo empecilho nenhum no fato do texto estar em terceira pessoa, ainda mais em um romance histórico, que combina perfeitamente com esse estilo de relato. O problema (aí sim é um problemão mesmo!) é que o narrador não fica próximo a ninguém especificamente. Ele flutua livremente pelos cenários e pelas personagens sem qualquer critério. Cogitei que ele acompanhasse de perto apenas Kira, a protagonista. Ou no máximo uma ou outra pessoa relevante da trama. Porém, ele larga a personagem principal por vários momentos e gruda em incontáveis figuras, até mesmo em coadjuvantes. O efeito disso no leitor recreativo não é ruim, mas para quem avalia a estrutura da história ficcional com o olhar técnico da Teoria Literária pode se incomodar bastante. Foi o meu caso.


Também não gostei do desfecho. Por mais que aprecie finais com sabores ácidos, amargos, incômodos e até mesmo trágicos (adoro a definição de uma amiga que diz: “nossa vida merece ser doce e agradável, mas filmes e livros têm que ter tramas incômodas e desagradáveis), achei que “Nós Que Vivemos” poderia ter ido pelo caminho do desenlace aberto e não pelo desenlace fechado. O que quero dizer com isso?! Com um clímax simplesmente genial (o capítulo XIV da parte II é um dos melhores textos românticos que conheço), Ayn Rand perdeu a chance de ouro de encerrar a história ali, em seu ponto mais alto. Aí sim o livro se tornaria realmente sublime. Entretanto, ela preferiu acrescentar mais três capítulos (pouco mais de 40 páginas), que no meu ponto de vista são completamente desnecessários. Muitas vezes, dar vazão à imaginação dos leitores (efeito indireto do final aberto) é mais potente do que materializar a criatividade do romancista (efeito concreto do final fechado).

Escritora e filósofa russa que se naturalizou norte-americana, Ayn Rand publicou romances de sucesso como Nós Que Vivemos, A Revolta de Atlas e A Nascente

Outra questão que senti falta em “Nós Que Vivemos” foi de um contraponto mais incisivo à visão negativa do Comunismo. Sei que a autora odiava o sistema político-econômico implementado em seu país natal em 1917 (por motivos óbvios!). Fica claro o quanto os burgueses sofreram perseguições desumanas e injustas na União Soviética (Rand precisou fugir para os Estados Unidos, algo que seus familiares mais próximos não conseguiram). A antiga elite do Império Russo se tornou quase que a casta mais inferior da sociedade na URSS. Quanto a isso, não tenho um A para comentar. As críticas do texto são justas e merecidas. Além disso, fica evidente o quão dura era a vida do restante da população que fora apartada das engrenagens capitalistas. Quem sou eu para contestar a realidade nua e crua. Juro que não queria viver em tais condições (nem sob qualquer tipo de ditadura, seja de direita, seja de esquerda).


O que poderia ter era uma personagem oriunda diretamente do proletariado que apresentasse sua visão das mudanças dos ventos políticos da Rússia após a Revolução Bolchevique. Será que para os trabalhadores das fábricas e da agricultura de São Petersburgo (ou Petrogrado, como queira) que padeciam durante o Império Russo as alterações foram positivas? Minha pergunta é espontânea. Me fiz esse questionamento durante a leitura. O que vemos em “Nós Que Vivemos” é a defesa do Socialismo apenas por membros caricatos do Partido Comunista, figuras geralmente corruptas, ambiciosas e interesseiras – Camarada Sonia, Victor Dunaev, Pavel Syerov e companhia ilimitada. O único defensor da União Soviética que não tinha características negativas era Andrei Federovitch. E ele se arrepende de tudo o que acreditou no final do romance. Por mais que eu não seja um fã da URSS (confesso que nunca fui um apaixonado pelo Comunismo, nem quando jovem e idealista), imagino que tivesse algum defensor mais imparcial dos ideais de Marx e Lenin no meio do povão. Não é?!     


Por fim, encontrei alguns errinhos de pontuação, principalmente sinalizações equivocadas do discurso. Em um ou outro parágrafo, onde era para ter aspas de diálogo (Ayn Rand é da escola norte-americana de literatura, que prefere as aspas ao travessão para expressar as conversas) não havia. Juntou-se simplesmente o discurso à narração. Em outros momentos pontuais, onde não era para ter as aspas, surgia falsos diálogos. Contudo, isso não é culpa da escritora russa e sim dos revisores e editores da versão brasileira do romance. Por mais incomodado que eu tenha ficado com esses errinhos, preciso dizer que tais tropeços não afetaram minha experiência de leitura.


O fato é que “Nós Que Vivemos” é um livrão. Isso é indiscutível. Por qualquer perspectiva que o tomemos, romance romântico, romance histórico, romance filosófico, romance dramático e até mesmo romance político, ficamos encantados com a narrativa ficcional de Ayn Rand. Juro que estou feliz de ter começado as análises de 2025 da coluna Livros – Crítica Literária por uma publicação de altíssimo nível. E tudo graças a generosidade de um amigo. Valeu, Dudu! Acho que a melhor maneira de encerrar esse post do Bonas Histórias é agradecendo a você o presente de setembro. Obrigadão! Adorei o regalo paulistano.


E para os demais leitores do blog, fica meu desejo de uma ótima temporada literária. Que os próximos meses sejam repletos de muitas boas histórias ficcionais. Do meu lado, garanto que não ficaremos tanto tempo sem avaliações de novos livros por aqui. Então, até a próxima, pessoal!


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