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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorRicardo Bonacorci

Livros: Não é um Rio - A mais recente novela de Selva Almada

Publicado em 2020, o thriller dramático encerra a Trilogia dos Machos e mostra a força narrativa de uma das principais escritoras argentinas da atualidade.

Não é um Rio é o mais recente livro de Selva Almada

Nessa semana, li “Não é um Rio” (Todavia), a mais recente publicação de Selva Almada, uma das mais importantes e originais vozes da literatura argentina contemporânea. Especializada em narrativas curtas e em enredos dramáticos, Selva (sim, seu nome é Selva mesmo – não é Selma nem Silvia!) retrata como ninguém a violência, a opressão, a solidão, os preconceitos, os desencontros amorosos e as intrigas familiares do interior de seu país. Se a compararmos com a maioria dos escritores sul-americanos da atualidade que constroem tramas ancoradas em cenários cosmopolitas, já podemos apontar logo de cara um aspecto inusitado em seu trabalho ficcional. Contudo, o brilhantismo de Selva Almada como autora não fica restrito a essa particularidade temática de seus livros.


Publicado originalmente na Argentina em 2020, “Não é um Rio” é a segunda novela da escritora. Traduzido para o português por Samuel Titan Jr. e lançado no Brasil pela Editora Todavia em agosto do ano passado, esse título é uma espécie de thriller dramático com elementos sobrenaturais e com fortíssima crítica social. Se você quiser classificá-lo como uma obra contemporânea do realismo fantástico ou como um título que denuncia o machismo da sociedade rural argentina também está correto. “Não é um Rio” é a terceira e última parte da “Trilogia de Varones”“Trilogia dos Machos”. Essa série literária foi iniciada em 2012 com a novela “O Vento que Arrasa” (Cosac & Naify) e prosseguiu em 2013 com o romance “Ladrilleros” (ainda sem edição em português). Apesar de ser possível a leitura independente de “Não é um Rio”, acredito que seja legal conhecer previamente as obras anteriores da coletânea ficcional para compreender a dimensão da proposta narrativo-editorial de Selva Almada.


Nascida em 1973 em Villa Elisa, pequena cidade interiorana de Entre Ríos, Selva Almada se mudou para Paraná, a capital da província natal (não confundir com o Estado homônimo brasileiro), para cursar faculdade. Uma vez formada em Literatura, a escritora se mudou no finalzinho dos anos 1990 para Buenos Aires, onde vive desde então. A rotina na metrópole a fez refletir sobre a vida que ela, seus familiares e amigos tinham/têm na zona rural de Entre Ríos. Surgia, a partir daí, o mote para suas tramas ficcionais. Invariavelmente, os textos de Selva retratam com tintas fortes os dissabores dos moradores do interiorzão da Argentina, um lugar tradicionalmente violento, opressivo (principalmente para as mulheres), muito reacionário e com incontáveis preconceitos. Qualquer semelhança com nossa realidade interiorana não é mera coincidência.

Selva Almada é escritora argentina

Além de dirigir periódicos literários e comandar núcleos de estudos de literatura poética, Selva Almada se especializou na produção de narrativas curtas. Ou seja, ela é uma exímia autora de coletâneas de contos e crônicas. Não por acaso, sua principal obra até agora é “Garotas Mortas” (Todavia), coleção de crônicas sobre três casos reais de feminicídios ocorridos na Argentina na década de 1980. E seus livros mais premiados em âmbito doméstico são coleções de contos: “Niños” (sem tradução para o português), de 2005, “Una Chica de Provincia” (também sem edição no Brasil), de 2007, “El Desapego es una Manera de Querernos” (para variar, sem tradução para nosso idioma), de 2015, e “Los Inocentes” (adivinhe se ele foi editado por aqui, hein?!), de 2020.


Apesar desse predomínio de narrativas curtas (tanto ficcionais quanto não ficcionais), é legal reparar que Selva Almada é uma escritora versátil. De suas onze publicações, apenas cinco são narrativas curtas (quatro coletâneas de contos e uma coletânea de crônicas). Seu portfólio literário é complementado com três novelas/romances (justamente os títulos de “Trilogia de Varones”/”Trilogia dos Machos”), uma coleção poética (sua estreia na literatura aconteceu pela poesia) e dois ensaios literários (lançados de maneira independente e em e-books). Em outras palavras, a autora argentina não fica presa a apenas um gênero narrativo. Gosto disso!


Internacionalmente, Selva Almada se tornou mais conhecida do público e da crítica literária há exatamente dez anos, quando “O Vento que Arrasa”, sua primeira novela, foi publicado. Essa obra que dá início à trilogia concluída agora com “Não é um Rio” foi muito bem-recebida na Argentina. Logo em seguida, ela foi lançada com o mesmo entusiasmo na Europa (Espanha, França, Holanda, Alemanha e Reino Unido, por exemplo) e no restante da América Latina (Brasil, inclusive). O livro conquistou, em 2019, o First Book Award do Festival Internacional do Livro de Edimburgo, quando foi traduzido para o inglês. Desde então, Selva Almada integra a lista dos principais escritores argentinos e latino-americanos da atualidade. Por termos analisado, no ano passado, um dos grandes autores da literatura argentina clássica (estou falando de Julio Cortázar) no Bonas Histórias, achei interessante trazer para a coluna Livros – Crítica Literária um nome contemporâneo da ficção de nossos hermanos.


O enredo de “Não é um Rio” se passa em um lugar indeterminado (no interior da Argentina) e em uma época indefinida (provavelmente no tempo presente). Enero Rey e Negro, dois cinquentões solitários, vão pescar em uma ilha fluvial. A atividade ocorre ao longo de alguns dias e inclui a necessidade de acampar no meio do mato. Para a viagem, a dupla leva o jovem Tilo. O rapaz de 21 anos é filho de Eusebio, o falecido amigo de infância de Enero e Negro. Eusebio foi o único do trio de companheiros a se casar e a ter filho. Infelizmente, ele morreu afogado naquela mesma ilha quando seu menino tinha apenas seis anos de idade. De tanto acompanhar o pai e os amigos mais velhos nas pescarias, Tilo se tornou membro honorário da trupe, substituindo naturalmente Eusebio.

Livro Não é um Rio de Selva Almada

No primeiro dia de pesca, Enero Rey, Tilo e Negro pegam uma enorme arraia no rio que corta a ilha. O peixão tem entre 90 e 100 quilos. A batalha para vencer a arraia é árdua e só se concretiza porque, depois de algumas horas de luta insana, Enero saca a pistola e dá três tiros na cabeça do bichano. Orgulhosos da façanha, os amigos penduram a gigantesca pesca ao lado da choupana em que estão abrigados no acampamento. Não demora para o trio de pescadores ser alvo da admiração e, em doses mais elevadas, da inveja de visitantes e moradores da localidade. Todos ficam embasbacados pelo feito obtido no rio. Afinal, não é todo dia em que se pode exibir um pescado daquele tamanho, né?


No dia seguinte, os protagonistas da novela se tornam inimigos de Aguirre e César, dois amigos de longa data que moram na ilha e que souberam da pesca da arraia. Aguirre fica injuriado ao descobrir que os turistas mataram a tiros o peixão, no que julga ser um ato de pura covardia de pescadores inábeis e insensíveis. Para completar, pouco tempo mais tarde, ele é informado que o corpo da arraia foi jogado de volta ao rio pelos homens da cidade. Ao invés de comerem o peixe ou darem para alguém que passasse fome, Enero Rey, Tilo e Negro simplesmente descartaram na água a carcaça do peixe porque ele começava a dar sinais de decomposição e a cheirar mal.


Aos olhos de Aguirre e César, a atitude dos forasteiros é sinal evidente da maldade com o meio ambiente e do descaso com o estilo de vida simples na ilha. E eles, como bons moradores locais, não podem ficar indiferentes àquele tipo de comportamento predatório e mal-educado dos visitantes urbanos. O trio de turistas precisa sofrer as consequências pelas atitudes indecorosas. Portanto, Aguirre, César e seus comparsas terão a missão de dar uma lição de moral nos arruaceiros de fora. O grupo local prepara na surdina a vingança que Enero, Tilo e Negro merecem.


Para piorar as coisas, Tilo se engraça com Mariela e Lucy, duas irmãs adolescentes que residem na ilha. As gurias são sobrinhas de Aguirre. Elas são filhas de Siomara, a irmã meio amalucada de Aguirre que fora abandonada pelo marido há muitos anos. Ao conhecerem por acaso Tilo em um bar, as jovens o convidam para ir à festa que reunirá os moradores do povoado. Encantado com a beleza e com a simpatia das moças, o filho de Eusebio acaba indo ao evento, o que potencializa a antipatia dos inimigos. Está armado o cenário de confusão e de intrigas entre os visitantes e os moradores daquele povoado. O passeio de Enero Rey, Tilo e Negro que deveria ser banal e pacífico pelo interior do país ganha, então, contornos possivelmente trágicos. Prepare-se para fortes emoções e, principalmente, para algumas surpresas de tirar o fôlego.

Livro Não é um Rio de Selva Almada

“Não é um Rio” é um livro curtinho. Por isso mesmo, estou chamando-o de novela e não de romance – tanto a editora brasileira quanto a editora argentina preferiram a classificação de romance, uma opção que discordo. Essa obra possui 96 páginas e é apresentada em texto corrido (sem divisão de capítulos). Levei pouco mais de duas horas e meia para ir da primeira à última página da publicação. Viu só como é uma novela e não um romance! Praticamente li seu conteúdo em uma única sessão. Para ser sincero em meu relato, fiz um intervalinho rápido de quinze minutos no meio da atividade (devidamente excluído do tempo total de leitura). Porém, é possível ler tranquilamente essa trama dramática de Selva Almada em uma batida só.


Alguns elementos narrativos chamam, logo de cara, a atenção dos leitores em “Não é um Rio”. O primeiro aspecto que gostaria de ressaltar nessa análise do Bonas Histórias é o tipo de linguagem empregado por Selva Almada. A escritora argentina utiliza um tom seco, cortante e áspero para narrar as aventuras do trio de pescadores da cidade que abalam a rotina de um pequeno lugarejo. Repare no uso das frases curtas, na descrição objetiva das cenas e na aplicação de palavras com jeitão meio agressivo. Em muitos momentos, “Não é um Rio” me lembrou a literatura praticada por autores como Graciliano Ramos, Ernest Hemingway, J. M. Coetzee, Régine Deforges, Raduan Nassar e Rubem Fonseca, mestres na linguagem seca/brutal. Se tivesse que caracterizar Selma Almada em uma só linha, diria que ela é a versão feminina, argentina e mais contemporânea de Raduan Nassar ou de Graciliano Ramos. Afinal, esses autores apresentam os dramas interioranos com uma pegada ácida.


Juntamente com a linguagem seca, temos em “Não é um Rio” uma ambientação extremamente pesada e desconfortável. O livro traz uma overdose de personagens solitárias e com enorme vazio emocional, o que confere ainda mais aridez à trama e ao cenário. As relações pessoais, amorosas, familiares e sociais dos protagonistas da novela de Selva Almada são frágeis e pouquíssimos confiáveis. A ambientação carregada e hostil é ainda complementada pela união de: violência endêmica (de diferentes estilos e formas) do interior da Argentina; opressão familiar e social que se perpetua ao longo das gerações; morte que teima em rodear as personagens; tragédias que não dão descanso a ninguém; insistentes preconceitos sociais; e loucura que surge de vários jeitos distintos em cada casa. Quem caminha pelas linhas das obras de Selva Almada percorre normalmente caminhos tortuosos e perigosos, apesar do enredo aparentemente tranquilo (uma pesca de final de semana, nesse caso). Portanto, cuidado ao virar as páginas. Você nunca sabe o que poderá encontrar logo em seguida.

Livro Não é um Rio de Selva Almada

Algo que é perceptível desde o comecinho do livro é a apresentação diferenciada do discurso. Em “Não é um Rio”, os diálogos não são grafados com nenhuma das sinalizações características (travessão e aspas, por exemplo). As conversas das personagens vêm misturadas à narração. A separação entre o que é narrativa e o que é discurso se dá pela mudança de linha/parágrafo, o que evita qualquer tipo de confusão por parte dos leitores. E o apontamento de quem está se pronunciando só ocorre após a apresentação do discurso, em uma óbvia quebra de expectativa. Afinal, é mais comum encontrarmos na literatura o expediente inverso (primeiro se aponta quem está falando e só depois se mostra a fala) ou a simultaneidade dos dois elementos (discurso e personagem que fala vêm na mesma linha).


Por falar em narração, o narrador dessa obra não fica colado a apenas uma personagem ou a um grupo específico de indivíduos (visitantes ou moradores da ilha). Ele trafega livremente pelo cenário e acompanha tanto Enero Rey, Tilo e Negro quanto Aguirre, César, Siomara, Mariela e Lucy. Grande parte da graça e do impacto da leitura de “Não é um Rio” está justamente nesse olhar completo e multifacetado pela trama. As surpresas que recebemos (e que não são poucas!) vêm da incongruência entre os diferentes planos narrativos.


Esse olhar que chamei há pouco de multifacetado é potencializado pelo caminhar do enredo em dois períodos temporais: presente e passado. Simultaneamente à exibição dos dias de pescaria do grupo de amigos da cidade, Selva Almada descortina o passado das personagens de “Não é um Rio”. Aí somos levados aos dramas antigos das figuras retratadas pelo livro: a infância, a juventude e a maturidade de Enero Rey, Eusebio e Negro; e as intrigas sinistras (e, por vezes, inacreditáveis) na casa de Siomara, Mariela e Lucy.


Ao mesmo tempo em que assistimos à dicotomia passado/presente, também precisamos, como leitores, compreender as diferenças entre o plano concreto e o universo onírico. Não posso falar muito sobre essa questão pois temo estragar as surpresas das últimas páginas de “Não é um Rio”. O que posso adiantar é que temos nessa obra muitos elementos sobrenaturais. Se você reparar no título do livro irá entender que a pegada fantástica é maior do que poderíamos supor inicialmente – o rio é, nesse caso, uma metáfora. Não à toa, essa história me lembrou bastante “A Terceira Margem do Rio”, um dos contos mais famosos de João Guimarães Rosa que está presente em “Primeiras Estórias” (Nova Fronteira). Acho que já falei demais sobre isso nesse post da coluna Livros – Crítica Literária. Desculpem-me!

Livro Não é um Rio de Selva Almada

A única coisa que preciso acrescentar sobre os elementos fantásticos, sem risco de dar o spoiler, é que eles estão intimamente relacionados às reviravoltas que o livro nos reserva em seu desfecho. Por isso mesmo, se você, em uma leitura menos atenta, não pegar o aspecto sobrenatural da trama de “Não é um Rio”, na certa perderá grande parte da beleza dessa história. Se for esse o seu caso, volte para o início da novela e a releia com mais atenção, por favor.


Por fim, temos nesse livro uma forte apresentação da cultura argentina. À medida que acompanhamos os relatos de Selva Almada, assistimos à apreciação do mate e do tererê, à preparação do churrasco na brasa, à disputa de culo sucio, à prática da cúmbia etc. Como já falei no início do post de hoje, esse mergulho pelo interior da Argentina e pelas particularidades da rotina rural do país é uma marca da literatura da autora. Não espere, assim, encontrar nos livros de Almada personagens cosmopolitas, cenários modernos, progressos materiais e culturas avançadas. Invariavelmente, ela prefere percorrer as estradas conturbadas e delicadíssimas dos rincões dos pampas.


Gostei de “Não é um Rio”. É verdade que esse não é um livro daqueles memoráveis, que lembraremos por anos e anos. Porém, ele é interessante e vale a pena a leitura. Se você tiver disposição, leia a “Trilogia de Varones”/”Trilogia dos Machos” integralmente. A saga completa tem aproximadamente 400 páginas – tamanho de um romance mais parrudo. Se lido sozinho, “Não é um Rio” serve como base para conhecermos rapidamente a literatura de Selva Almada e como amostra do que está sendo feito na ficção argentina contemporânea.


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