Lançada em 2019, essa obra é ambientada no interior de Pernambuco e mistura crimes misteriosos, sociedades secretas, intriga internacional e folclore brasileiro.
Nesse feriado-não-feriado de Carnaval, li “Jogo de Cena” (CEPE Editora), a penúltima publicação ficcional de Andrea Nunes, um dos bons nomes da literatura nordestina contemporânea e do romance policial brasileiro. Assim que fechei as páginas da obra na segunda-feira, uma dúvida pintou na minha cachola: será que deveria analisar esse título de Andrea no Bonas Histórias, hein?! Tal questionamento surgiu porque não costumo apresentar na coluna Livros – Crítica Literária textos que eu não tenha gostado. Sei que o público pode ficar com a sensação, a partir dessa linha editorial, que o blog é uma rasgação de seda danada. Contudo, prefiro assim. Se leio algo que não aprecio, simplesmente não compartilho publicamente meu desapontamento (essa diretriz não se aplica à coluna Desafio Literário, tá?). Dessa forma, ninguém pode falar que deixou de comprar um livro ou não iniciou uma leitura porque eu desaconselhei. Regrinha justa, fácil de entender e prática.
Para provar que toda regra tem exceção, resolvi debater “Jogo de Cena” no post de hoje do Bonas Histórias, mesmo não tendo gostado do livro. Na minha opinião, esse terceiro romance policial de Andrea Nunes apresenta equívocos narrativos tão sensíveis e numerosos que, queiramos ou não, acabam afetando significativamente a experiência de leitura. Ou a escritora errou a mão (como dizemos quando a receita literária desanda) ou ela duvida da inteligência dos leitores (erro imperdoável para qualquer artista talentoso). Por qualquer ponto de vista que tenhamos, essa impressão negativa vai contra o bom retrospecto do portfólio ficcional de Andrea. Se você leu, por exemplo, “A Corte Infiltrada” (Buzz), a publicação anterior da autora, sabe o que estou dizendo.
Então quer dizer que “Jogo de Cena” é, no todo, um título muito ruim, Ricardo?! Aí está justamente a questão delicada que me fez refletir bastante nos últimos dias. A resposta pode parecer em um primeiro momento contraditória: sim e não. Sim e não? Sim e não! Como assim? Se você ler apenas a primeira metade da obra, na certa irá atestar: olha, esse livro é ótimo, a história é excelente, o ritmo é contagiante e a trama é pertinente. Onde já se viu, Ricardo, criticar negativamente um suspense tão eletrizante como esse, hein?! Preciso concordar com sua opinião, caro(a) leitor(a) do Bonas Histórias, porque foi exatamente esse o sentimento que tive. Pelo menos, foi desse jeito que vi os capítulos iniciais do thriller de espionagem de Andrea Nunes. Essa é a parte do não (não é um romance de todo ruim) à pergunta que abriu esse parágrafo.
Porém, como repetem os comentaristas esportivos há décadas, o jogo só termina quando o juiz apita, certo? E no segundo tempo, quero dizer, na segunda metade de “Jogo de Cena”, temos a consumação da tragédia – tragédia literária nesse caso é quando o texto descamba para algo pouco crível e sem lógica. Fazia muito tempo que não via um desfecho tão absurdo como o desse romance. As inverossimilhanças são incontáveis e gravíssimas. Sabe quando o time desce para o intervalo ganhando de 3 a 0 e a torcida se enche de confiança para comemorar uma vitória brilhante? Aí na etapa complementar da partida, dá um apagão na equipe e a derrota chega de virada e por uma goleada humilhante, tipo 9 a 3. Foi mais ou menos isso o que se passou nessa publicação. Ai, ai, ai. Que vergonha!
Em resumo, o que me deixou profundamente desapontado foi a baixíssima qualidade do desenlace (a exposição, a complicação e o clímax dessa trama até que são muito bons, bem acima da média). E, convenhamos, não há experiência de leitura que salve quando o romance deixa um gosto amargo no final. Repito em alto e bom som: até os capítulos derradeiros de “Jogo de Cena”, reconheço que o romance de Andrea Nunes estava indo maravilhosamente bem, caminhando quase que impecavelmente. Para entendermos o que aconteceu efetivamente para a receita narrativa ter desandado tanto, decide analisá-la em detalhes. Daí a ideia do post de hoje – que subverte a lógica da coluna Livros – Crítica Literária.
Publicado em maio de 2019 pela Editora CEPE, “Jogo de Cena” mantém boa parte do estilo literário de Andrea Nunes. Temos aqui a atuação de um serial killer, intrigas internacionais/geopolíticas, sociedades secretas, muitos mistérios, jogos de poder tanto em âmbito político quanto na seara empresarial, protagonistas que engatam um romance pouco convencional (e meio proibido), personagens femininas fortes e cativantes, investigação criminal que dialoga com aspectos artísticos, religiosos e culturais (à la Umberto Eco) e forte brasilidade.
Andrea Fernandes Nunes nasceu, em novembro de 1971, em João Pessoa, capital da Paraíba. Desde os 23 anos, quando se formou em Direito e passou no concurso do Ministério Público, ela vive em Pernambuco. Depois de morar em algumas cidades do interior do Estado (Arcoverde, Nazaré da Mata e Cabo de Santo Agostinho) por obrigações profissionais, a escritora fixou residência no Recife. É até difícil dizer se Andrea é, aos olhos atuais, mais paraibana ou mais pernambucana. Em 2014, ela recebeu o título de cidadã pernambucana. Por isso mesmo, diria que hoje em dia ela pode ser descrita (em uma licença poética) como uma autora paraibucana.
Promotora de Justiça em Pernambuco desde 1995, Andrea Nunes é escritora ficcional há mais de três décadas. Ela começou produzindo obras infantis e infantojuvenis na década de 1990. Com apenas 16 anos, a autora viu sua obra de estreia, “O Diamante Cor-de-rosa”, ser premiada com o Troféu Parahyba de Imprensa na categoria melhor título infantojuvenil paraibano de 1990. Para completar, ela também conquistou o Troféu Baile dos Artistas pela adaptação desse texto para o teatro. Nada mal para quem ainda era uma adolescente, né?
Nos anos seguintes, já adulta e trabalhando no Ministério Público de Pernambuco, Andrea continuou publicando livros tanto no universo ficcional quanto no mundo do Direito. Prova concreta disso são “Papel Crepom” (Editora Ideia), narrativa épica, e “Terceiro Setor – Controle e Fiscalização” (Método), livro jurídico. Desde o comecinho da década passada, Andrea Nunes mergulhou para valer nos romances policiais, sua especialidade e grande paixão literária. Fã do gênero desde menina, quando devorava, em João Pessoa, os clássicos de Agatha Christie e Arthur Conan Doyle e as obras contemporâneas de Rubem Fonseca e dos autores norte-americanos do romance negro, ela sempre nutriu simpatia pelas investigações criminais. Não à toa, virou promotora de Justiça e romancista. Atualmente, Andrea é integrante da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba e membro da Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial e Terror (Aberst).
Sua primeira narrativa longa no universo do suspense e mistério foi “Código Numerati – Conspirações em Rede” (All Print). Essa obra de 2010 conquistou algum destaque na loja Kindle, onde teve uma vendagem interessante. O segundo romance policial de Andrea foi “A Corte Infiltrada”. Publicado originalmente em 2014 pela Carpe Diem e relançado em 2017 pela Editora Buzz, esse thriller é o trabalho mais valorizado da autora paraibana-pernambucana até aqui. Graças a essa publicação, Andrea Nunes recebeu, em 2014, menção honrosa na Premiação Dulce Chacon da Academia Pernambucana de Letras como a melhor escritora nordestina daquela temporada. “A Corte Infiltrada” também foi finalista do Prêmio Bunkyo de Literatura de 2019 – perdeu a primeira colocação para “Mundo Grave” (INCM), de Pedro Pereira Lopes, e ficou empatado no segundo lugar com “Royal Destiny” (Editora Astronauta), de Vera Carvalho.
Em novembro do ano passado, saiu o quarto romance policial de Andrea, “Corpos Hackeados” (CEPE Editora). Se eu não estiver enganado, citei esse título no último post da coluna Mercado Editorial. Nessa matéria do Bonas Histórias, eu trouxe justamente os 100 principais lançamentos da ficção e da poesia que chegaram às livrarias brasileiras em janeiro e fevereiro de 2022. Obviamente, não podia deixar a autora nordestina fora da lista de obras que os leitores nacionais precisam ficar de olhos abertos nesse começo de ano.
Voltando a falar especificamente sobre “Jogo de Cena”, nosso assunto de hoje, o enredo desse livro se passa essencialmente nos tempos atuais e em Mangueirinhas, pequena cidade (fictícia) do interior de Pernambuco (há cenas pontuais que são encenadas em Recife, Paris, Lyon, Rio de Janeiro e Brasília). A pouco mais de cem quilômetros do Recife e situada na fronteira entre a Zona da Mata e o Agreste, a localidade tem uma nova delegada. Alexandra se formou em Direito e passou recentemente no concurso público para comandar a força policial do município em que nasceu e cresceu. Ela assumiu há seis meses a delegacia que fora comandada justamente pelo pai, Doutor Siqueira. Aposentado por problemas de saúde que o obrigam a ficar em cadeira de rodas, Siqueira vê com orgulho a filha adotiva ocupar seu posto. Como delegada, Doutora Alexandra é ao mesmo tempo destemida, honesta, justa e solidária, o que faz com que ganhe rapidamente a confiança e o carinho da população.
Todavia, Mangueirinhas irá viver tempos difíceis... O primeiro acontecimento estranho que a cidade pernambucana assiste é a morte trágica de Michel Simon, um perfumista francês que morava na casa paroquial e que tinha uma rotina pacata. Seu corpo foi achado inerte no rio, o que alimentou o boato de que fora morto pela Mãe d´água, uma famosa figura do folclore brasileiro. Por viver em uma região extremamente supersticiosa e mística, a maioria dos habitantes de Mangueirinhas acredita piamente na versão de que a lenda da belíssima mulher que enfeitiçava os homens teria matado Michel. Obviamente, Doutora Alexandra não acredita nesse componente fantástico e começa a investigar o caso com rigor científico. A opinião inicial da moça é que a morte do gringo foi acidental ou fruto de suicídio.
Para perplexidade da protagonista, Michel Simon não era perfumista coisa nenhuma. A investigação preliminar de Alexandra mostra que o francês era apaixonado por Alquimia e trabalhava como engenheiro para uma companhia europeia interessada em desenvolver projetos secretos de energia nuclear. No Brasil há alguns anos, ele fazia experiências envolvendo fontes energéticas alternativas. Para tal, usava o laboratório montado na paróquia do Padre Joaquim, que o abrigava como hóspede (em troca de uma mesada). Antes de morrer, Michel avisou aos amigos próximos que estava sendo perseguido e, por isso, deixou mensagens enigmáticas para Jean-Pierre Burnier, seu colega mais jovem que morava em Lyon e com quem compartilhava suas descobertas.
Para potencializar ainda mais o mistério, Alexandra descobre que os homens-caveira, soldados do braço armado da Skull and Bones também estavam envolvidos no caso e procuravam desvendar os segredos deixados pelo engenheiro francês. A Skull and Bones é uma poderosa organização secreta e paramilitar dos Estados Unidos com atuação mundial. De tão perigosos, os passos dos homens-caveira no Brasil eram monitorados pelos agentes da Abin e pelos funcionários de campo do departamento de Operações Nucleares Experimentais da Eletronuclear. Aparentemente, a alta cúpula da Skull and Bones estava muito preocupada com o desenrolar dos estudos energéticos da dupla Michel Simon e Jean-Pierre Burnier e não queria que os engenheiros europeus compartilhassem suas descobertas.
Como desgraça pouca é bobagem, Alexandra ainda se vê no meio de uma intrincada disputa política. Gervásio Menezes, prefeito de Mangueirinhas, deseja desapropriar um terreno abandonado para construir moradias populares. Antigamente, o local era um engenho de cana de açúcar de uma família tradicional da região. Hoje, é apenas um espaço sem uso, tomado pelo mato e desabitado. Porém, Vado, o principal líder da oposição política ao prefeito, não quer que o velho engenho vire um condomínio de casas. Ele alega que a construção irá destruir a fauna e a flora locais, o que caracterizaria um crime ambiental. Vado recebe o apoio sutil do líder de uma seita religiosa que está situada ilegalmente no terreno em disputa.
É, amigo(a), a vida da jovem delegada de Mangueirinhas não está fácil em “Jogo de Cena”! À medida em que ela aprofunda a investigação da morte de Michel Simon, novos assassinatos acontecem na cidade. E eles são atribuídos invariavelmente a lendas folclóricas: papo-figo, lobisomem, mula-sem-cabeça... Não é preciso dizer que a população do pequeno povoado pernambucano entra em desespero. Para auxiliar no trabalho policial de Alexandra, Doutor Siqueira sugere à filha adotiva que aceite a colaboração de Pedro, o filho biológico do velho delegado. Pedro é um famoso historiador especializado em folclore brasileiro e mora há anos na Europa. Justamente no período crítico que Mangueirinhas vive uma onda de crimes inexplicáveis, o rapaz passa férias em sua terra natal. Se por um lado ele tem muitos conhecimentos sobre História, alquimia e lendas brasileiras, o que pode ajudar na investigação de Alexandra, por outro lado o pseudo-irmão desperta fortes sentimentos de antipatia na delegada. Eles nunca se deram bem e a aversão que nutrem um pelo outro parece crescer com o tempo.
Conseguirá Alexandra trabalhar em parceria com o irmão que sempre agira de maneira distante, arrogante e insensível? Saberá Pedro interagir com a filha da amante do pai, que fora adotada tão logo a primeira mulher do Doutor Siqueira faleceu? Em meio a desavenças e polêmicas familiares, a dupla de protagonistas precisará se unir para desvendar uma trama surpreendente e recheada de reviravoltas. Poupo a pouco, o romance policial atira suas personagens (e, como consequência, os leitores) em um conflito pontuado com questões de geopolítica, arte sacra, crenças populares, alquimia, segredos industriais, sociedades secretas, tabus familiares, forças militares e paramilitares, intrigas políticas, interesses capitalistas etc.
“Jogo de Cena” é um livro de tamanho mediano. Ele possui 328 páginas que estão distribuídas em 48 capítulos (46 seções numéricas mais o prólogo e o epílogo). Apesar de não ser um tijolão, essa obra é a mais extensa do portfólio de Andrea Nunes. Os outros romances policiais da autora paraibana têm entre 222 páginas (no caso de “A Corte Infiltrada”) e 260 páginas (como “Corpos Hackeados”). Levei cerca de seis horas e meia, sete horas para concluir integralmente a leitura de “Jogo de Cena”. Praticamente li essa narrativa em três sessões na segunda-feira: duas horas e pouco no período da manhã, duas horas e pouco à tarde e duas horas e pouco à noite. Quem não for chegadinho(a) a longos períodos de leitura, saiba que dá para ler essa publicação de Andrea em dois ou três dias/noites numa boa. Confesso que li tranquilamente em um único dia porque a história ajudou nesse sentido. O texto é gostoso, o conflito é cativante e o suspense é chamativo.
Apesar de não ter apreciado a qualidade geral de “Jogo de Cena”, preciso reconhecer que há vários aspectos positivos nessa obra ficcional. Em primeiro lugar, Andrea Nunes escreve muito, muito bem. Quem curte um bom romance policial e gosta de ficar ligado no melhor da literatura brasileira contemporânea precisa acompanhar de perto o trabalho da escritora. Nesse sentido, “Jogo de Cena” não foge muito das características estilísticas de Andrea: o texto é fluido, a linguagem é gostosa e a trama é bastante envolvente. Além disso, temos mais uma vez ótimas personagens mergulhadas em mistérios de tirar o fôlego. É verdade que elas são normalmente figuras planas e abraçam incondicionalmente a visão de mundo maniqueísta, mesmo assim gostei delas. Suas construções ficcionais foram bem realizadas. Ou seja, cada pessoa retratada nas páginas do livro possui características marcantes e está integrada intimamente ao conflito, o que deixa tudo bem amarrado. Dificilmente você, no meio da leitura, confundirá nomes ou ficará em dúvida sobre quem é quem em um enredo de Andrea Nunes.
O que mais gostei em “Jogo de Cena” é a imersão na cultura brasileira e, principalmente, na cultura nordestina. De forma mais precisa, podemos dizer que assistimos, nesse romance, ao mergulho na pernambucanidade. Há incontáveis referências à história, à geografia, à arte, à economia, aos hábitos, à música, à dança, à culinária, à vestimenta, à religião, ao folclore e à formação sociocultural dessa região. A sensação é de estarmos realmente passeando por Pernambuco. As páginas desse livro de Andrea trazem, por exemplo, o carimbó, os maracás, Mestre Vitalino, o frevo, o passado colonial (economia canavieira e os engenhos de açúcar), a mistura da religiosidade católica com as crenças africanas, a colonização holandesa, o rico folclore local.
Curiosamente, as referências nordestinas e pernambucanas surgem já na abertura da maioria dos capítulos. Há citações à literatura, à poesia, à música e às reflexões de muitos artistas naturais da região como Ascenso Ferreira, Gonçalves Dias, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Antônio Maria, Joaquim Cardozo e Carlos Pena Filho. Por essa perspectiva mais bairrista, admito que fiquei um pouco frustrado com as referências aos artistas de outras nacionalidades como Florbela Espanca, Antônio Nobre, Ernest Hemingway, Charles Baudelaire e Fernando Pessoa. De certa forma, quando o livro traz figuras de fora do Nordeste (e do Brasil), perde-se um pouco da pegada arretada da peste que a trama possui.
Outro elemento marcante de “Jogo de Cena” é o excelente ritmo narrativo. Não há capítulo morno ou parado nessa obra. Sempre está acontecendo algo nas páginas, o que atrai nossa atenção. Em termos de ação, o leitor mais exigente não tem o que reclamar. O que permite o ritmo mais acelerado (e a predominância de ação) é a característica da narração de Andrea Nunes. Com o texto em terceira pessoa e o narrador que não fica colado aos protagonistas (ele acompanha várias personagens, inclusive alguns coadjuvantes e os vilões), estamos sempre no olho do furacão. Apesar da escolha desse tipo de narrador ser normalmente questionável, é inegável seu efeito benéfico para o ritmo narrativo de forma geral. Indubitavelmente, não teríamos metade do suspense nem a maior parte da adrenalina se tivéssemos outro tipo de narrador (em primeira pessoa ou mais comportado em relação ao deslocamento no espaço narrativo).
Ainda na seção de coisas que gostei em “Jogo de Cena”, posso citar a pluralidade da narrativa. Esse não é um romance policial convencional. Além da trama criminal em si, que faz o conflito efetivamente girar, Andrea Nunes nos apresenta uma história com muito romantismo (com direito a viagem a Paris), suspense internacional (intriga geopolítica envolvendo grandes interesses capitalistas) e mistérios pertencentes às sociedades secretas. Para completar o caldo, acrescente doses generosas de folclore brasileiro (lenda da mãe d´água, papo-figo, lobisomem, mula-sem-cabeça) e de filosofia, ciência e religião (Alquimia, Hermetismo, Arte Sacra, Pedra Filosofal).
Se por um lado temos uma trama eclética, o que é muito legal, por outro lado “Jogo de Cena” transmite uma sensação de déjà vu. Sabe quando você lê algo e pensa na hora: já vi algo parecido em outras obras literárias? Pois foi exatamente essa a minha impressão. Em muitos momentos, o romance de Andrea me pareceu uma versão abrasileirada (e piorada!) das sagas policiais de Nora Roberts (a mocinha investiga um crime e, no meio do caminho, se apaixona pela pessoa errada), das aventuras históricas de Dan Brown (com direito a muitos enigmas guardados por sociedades secretas), dos suspenses políticos/geopolíticos de Frederick Forsyth (com o risco do planeta ser destruído ou cair nas mãos das forças malévolas) e das fantasias infantojuvenis de J. K. Rowling (todos buscam o poder conferido à Pedra Filosofal).
Porém, esse não é definitivamente o pior aspecto de “Jogo de Cena”. O que me incomodou muitíssimo nessa narrativa é a interminável coleção de inverossimilhanças da trama. Há muito tempo eu não lia um livro de um(a) escritor(a) tão gabaritado(a) que afrontasse tanto a minha (possível) inteligência. Muitas escolhas narrativas do romance vão contra qualquer lógica e bom senso dos leitores. Não quero listar aqui todas as inconsistências (se não nunca mais terminaria esse post), mas posso apresentar algumas. Vamos lá!
Parece-me pouco crível que pesquisas de fusão (ou seria fissão?) nuclear possam ser realizadas em laboratórios domésticos. Aí alguém pode dizer: mas o pesquisador tinha um supercomputador, o mais tecnológico do mundo. Como ele poderia ter algo desse tipo se nem mesmo países desenvolvidos têm máquinas dessa complexidade, Santo Deus!!! E sabe onde tal supercomputador de “Jogo de Cena” ficava? No Brasil, um dos países mais atrasados tecnologicamente, e no interior de Pernambuco. E ele estava em uma propriedade isolada e abandonada que nem mesmo possuía energia elétrica. E como o computador funcionava? Simples: gerador de energia. Não! Não pode!!! Qualquer pessoa com o mínimo de perspicácia sabe que um equipamento assim puxa tanta energia, mas tanta energia que é inviável um gerador doméstico dar conta.
A interminável sequência de bobagens prossegue quando a pesquisa sobre energia nuclear chega às fases mais avançadas. Onde você acha que os cientistas franceses vão realizar testes práticos? Em um museu. Sim, é o que você ouviu. Eles vão para um museu em Recife. Esse local, segundo o narrador do romance, tem os equipamentos mais modernos de energia nuclear do mundo. Ai, ai, ai. Será que Andrea Nunes não percebeu os absurdos que estava escrevendo?! Não havia um(a) bom(boa) editor(a) na CEPE para colocar a mão no ombro da autora e falar: “precisamos conversar sobre alguns pontos desse livro, minha cara”?
Também não me parece nem um pouco verossímil dois sujeitos trabalharem isoladamente em algo tão grandioso quanto a fusão nuclear (ou seria fissão, Santo Deus?!) e obterem descobertas que nem mesmo as maiores e melhores equipes do mundo conseguiram. Aí o leitor mais condescendente pode alegar: Ricardo, eles usaram algo que os demais não usaram – a Alquimia. Ai, ai, ai. Valer-se da Alquimia para decretar grandes descobertas pode fazer sentido nos livros de Paulo Coelho ou em tramas fantásticas, mas não em enredos pretensamente realistas. Porém, você está se esquecendo do Nióbio, Ricardo, essa matéria-prima revolucionária que só tem no Brasil. Meu Deus! Um presidente amalucado e sua corja de seguidores psicopatas acreditarem nessa teoria abestalhada é uma coisa. Uma escritora talentosa colocar essa questão em um livro ficcional como uma grande descoberta da ciência nacional é outra. Não é preciso ser um grande entendido no assunto para saber que o Nióbio é mais uma propaganda política do que algo valorizado pelos cientistas.
Como falei, a coleção de inconsistências é enorme. Um homem foge para a floresta e é perseguido por um grupo de paramilitares altamente treinados. Cuidado, aqui vai um dos spoilers do livro – pule o restante desse parágrafo caso você não queira conhecê-lo. De repente, o fugitivo é capturado. Em um lance de astucia, ele se atira do alto de um penhasco. Prefere morrer a ser pego. Ok até aí, certo? Depois descobrimos que (não ria, por favor!!!), na hora de pular, ele enganou os soldados (NÃO RIA!). Ele pegou um corpo que tinha deixado ali, no meio da floresta, e atirou o falecido em seu lugar. Aí ele se escondeu. E, acredite se quiser, os soldados caíram na dele. Ai, ai, ai. Você já viu uma bizarrice maior do que essa?!!! Sei que Agatha Christie já usou expediente parecido algumas vezes, mas não dessa maneira tão tosca.
E o que falar de dois adolescentes que se apaixonam perdidamente e eternamente sem que tenham convivido minimamente um com o outro? E o que dizer de um cadeirante que resolve sair pelas ruas à noite, na chuva e em um chão de terra batida (que virou lama). Não me parece muito lógico que ele consiga avançar muito. Mas ele conseguiu andar muitos metros, talvez quilômetros. E sua cadeira de rodas só ficou presa no barro quando ele se aproximou do serial killer. Ai, ai, ai. Chame-me de idiota que eu gosto.
Essas maluquices aparecem prioritariamente na metade final do romance. Até a primeira metade de “Jogo de Cena”, era possível aceitar a trama como um todo. Admito que estava até gostando muito dessa narrativa. Contudo, quando chegamos ao desfecho, temos um final terrível, vergonhoso. Não tenho melindre em dizer que esse é o pior desenlace que li nos últimos anos. Ou a autora largou mão dos capítulos finais ou ela duvida da nossa inteligência.
Além dos absurdos narrativos que listei rapidamente acima, ainda somos privados do melhor diálogo da obra. Cuidado, aí vai outro spoiler – pule para o próximo parágrafo, por favor, se você não tiver lido “Jogo de Cena”. O que Alexandra e Pedro falaram para Doutor Siqueira sobre o relacionamento amoroso deles, hein? Na hora que os pombinhos precisam conversar com o pai, esse diálogo é simplesmente suprimido do livro. A história já avança para o feliz para sempre. Meu Deus, onde já se viu omitir a discussão dos filhos e a reação do pai sobre a notícia mais bombástica de Mangueirinhas?!!!
Como já falei, assim que concluí a leitura de “Jogo de Cena”, resolvi no calor da emoção não fazer essa análise crítica para o Bonas Histórias. Mas depois, pensando melhor, achei que valeria a pena discutir as questões que fizeram essa obra de Andrea Nunes cair tanto em qualidade. Fiquei tão decepcionado de ter conhecido um título com tantos problemas dessa boa escritora brasileira que desejo mudar em breve a percepção negativa que tive. Quero retornar à coluna Livros – Crítica Literária para comentar um exemplar mais qualificado da literatura de Andrea. Minha dúvida está em analisar o premiado “A Corte Infiltrada” ou conhecer o recente “Corpos Hackeados”. Se você curte a ficção de Andrea Nunes e os romances policiais nacionais, espere por novidades do blog. Quero trazer uma análise com viés mais positivo na próxima oportunidade. Até lá.
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