Publicada em 1962, essa coletânea de contos potencializou as maluquices narrativas do escritor argentino a patamares inacreditáveis e polêmicos.
Nesse final de semana, li “Histórias de Cronópios e de Famas” (Best Seller), a quarta coletânea de contos e a sétima publicação de Julio Cortázar. Esse é também o quinto livro do escritor argentino que analisamos no Desafio Literário desse bimestre. Já comentamos nas páginas do Bonas Histórias a peça teatral “Os Reis” (Civilização Brasileira), as coleções de narrativas curtas “Bestiário” (Civilização Brasileira) e “Final do Jogo” (Civilização Brasileira) e o romance “Os Prêmios” (Civilização Brasileira). E ainda nesse mês iremos apresentar o estudo completo de outras três obras de Cortázar: “O Jogo da Amarelinha” (Companhia das Letras), “Todos os Fogos o Fogo” (Best Seller) e “62 Modelo para Armar” (Civilização Brasileira). Ou seja, se você curte o melhor do Realismo Fantástico, da literatura argentina e da ficção clássica não perca os próximos posts do Desafio Literário de Julio Cortázar.
“Histórias de Cronópios e de Famas” é um livro importantíssimo para a carreira de Cortázar. Esse título representou a intensificação da proposta disruptiva do autor. Se o argentino já criava tramas extremamente amalucadas e às vezes incompreensíveis, aqui ele atingiu um patamar ainda mais elevado de ousadia. Publicado em 1962, “Histórias de Cronópios e de Famas” inovou em três quesitos: apresentou microcontos (tipo textual pouco usual na época), potencializou o humor nonsense e debochado de Cortázar (ao ponto de não acreditarmos que ele foi capaz de escrever tais coisas!) e criou um universo ficcional com seres próprios (os tais cronópios, famas e esperanças) que fazem irônicas analogias a determinados grupos sociais.
O resultado dessas invencionices é muito polêmico. Há quem ache “Histórias de Cronópios e de Famas” um livro genial, fruto de uma mente inovadora, libertária e inspirada. E há quem o abomine, afirmando se tratar de uma brincadeira que não surtiu o efeito desejado. Normalmente eu não fico em cima do muro, ainda mais em boas discussões literárias como essa. Porém, preciso concordar com os dois pontos de vista. “Histórias de Cronópios e de Famas” é uma coletânea de narrativas curtas interessante por alguns aspectos e, ao mesmo tempo, uma obra que peca em alguns quesitos.
Na época de seu lançamento, esse título de Julio Cortázar foi avacalhado pela crítica literária tanto na América Latina (leia-se Argentina) como na Europa (leia-se França). Ninguém entendeu como foi possível um escritor com enorme potencial criativo ser capaz de publicar narrativas tão primárias, sem sentido e profundamente banais. Curiosamente, muitos leitores de “Histórias de Cronópios e de Famas” repetem ainda hoje essa avaliação negativa. Na minha opinião, quem diz isso não entendeu o humor dos microcontos e/ou não teve o espírito de entrar à fundo nas brincadeiras propostas por Cortázar.
Talvez essa seja a melhor definição para esse livro – uma grande brincadeira narrativa que visava derrubar o leitor da cadeira. Sob esse ponto de vista específico, acho que o argentino conseguiu sim atingir seu objetivo. Quanto mais dispostos estivermos para embarcar na fina ironia, nas maluquices do Realismo Fantástico e nas críticas político-sociais do escritor, melhor e mais proveitosa será a leitura de “Histórias de Cronópios e de Famas”.
Vale a pena lembrar que no início da década de 1960, Julio Cortázar não figurava entre os nomes de primeiro escalão da literatura sul-americana. Enquanto “Presencia” (sem edição em português) e “Os Reis”, obras lançadas respectivamente no final dos anos 1930 e 1940, foram ignorados completamente pelo público e pela crítica, “Bestiário”, de 1951, “Final do Jogo”, de 1956, “As Armas Secretas” (Best Seller), de 1959, e “Os Prêmios”, de 1960, tiveram algum destaque e receberam avaliações positivas. Contudo, esses livros não podem ser considerados como best-sellers nem podemos dizer que foram títulos aclamados. Esse novo patamar dentro da literatura argentina e latino-americana só seria conseguido por Cortázar com “O Jogo da Amarelinha”, romance publicado um ano depois de “Histórias de Cronópios e de Famas”.
Às vezes, chego a pensar que se “Histórias de Cronópios e de Famas” tivesse chegado às livrarias depois de “O Jogo da Amarelinha” e não antes, ele não teria recebido tantas críticas negativas. Por outro lado, acredito que “O Jogo da Amarelinha” só se tornou o sucesso que foi porque antes “Histórias de Cronópios e de Famas” abriu o caminho para a intensificação das maluquices criativas de Julio Cortázar.
As narrativas de “Histórias de Cronópios e de Famas” foram escritas em Roma e em Paris entre 1952 e 1959. Na Argentina, essa coletânea de contos de Cortázar foi publicada pela Editorial Minotauro, selo atualmente pertencente à Planeta dos Libros, mas que nos anos 1960 era uma editora jovem e independente focada na edição de obras fantásticas e de ficção científica. Quem está acompanhando atentamente ao Desafio Literário de Julio Cortázar deve ter notado algo curioso. Esse foi o primeiro livro do autor a sair em seu país por outra editora que não a Editorial Sudamericana, empresa que Cortázar trabalhava tanto como tradutor como autor ficcional.
Qual seria o motivo dessa mudança de casa editorial, hein? Sinceramente não sei. Porém, não me surpreenderia se a Sudamericana tivesse se recusado a lançar um título com uma proposta tão polêmica e, de certa forma, com um conteúdo tão estrambólico. O que corrobora com a minha tese (lembrando que estamos falando de uma hipótese que estou lançando aqui) é o fato de um ano depois “O Jogo da Amarelinha” ter chegado às livrarias argentinas por meio da própria Editorial Sudamericana. Na certa, os editores portenhos viram mais potencial nesse livro do que no anterior.
No Brasil, “Histórias de Cronópios e de Famas” foi publicado pela primeira vez em 1964 pelo Círculo do Livro, clube de leitura muito popular naquela época. Logo depois, a Civilização Brasileira se encarregou de abastecer as livrarias do país com novas edições dessa obra. A edição mais recente, se eu não estiver enganado, é de 2016, quando o livro de Cortázar ganhou um novo projeto gráfico por parte desse selo da Editora Record. Há também uma versão de “Histórias de Cronópios e de Famas” que está sendo publicada pela Editora Best Seller por meio do selo BestBolso. Foi justamente esse o exemplar que li no último final de semana.
Em todas as edições nacionais de “Histórias de Cronópios e de Famas”, a profissional responsável por traduzir o texto do espanhol para o português foi Gloria Rodríguez. Quem acompanhou a última análise literária do Bonas Histórias irá se lembrar que Rodríguez traduziu também “Os Prêmios”, o primeiro romance de Cortázar.
“Histórias de Cronópios e de Famas” tem 144 páginas e possui 67 contos. Na verdade, o correto é chamar as narrativas do livro de microcontos já que são extremamente curtas. Os microcontos dessa coletânea estão divididos em quatro partes: “Manual de Instruções” (com 9 histórias), “Estranhas Ocupações” (8 narrativas) “Matéria Plástica” (25 tramas) e “Histórias de Cronópios e de Famas” (25 contos). Na primeira seção, assistimos a um conjunto de instruções de coisas banais do dia a dia que as pessoas fazem instintivamente. Na segunda, acompanhamos a rotina de uma família argentina bem esquisita. Na terceira parte, são apresentados relatos surrealistas que tecem fortes críticas sociais e políticas. E na quarta e última seção da coletânea, mergulhamos no universo das criaturas fantásticas mais famosas da literatura de Julio Cortázar – os cronópios, os famas e os esperanças.
Li “Histórias de Cronópios e de Famas” no último sábado. Admito que desde o início do Desafio Literário de Cortázar estava muito curioso para conhecer em detalhes essa obra, uma das mais famosas do autor argentino. Eu já tinha lido alguns microcontos dessa coletânea quando fiz oficinas de Escrita Criativa e quando cursei a Pós-graduação de Formação de Escritores no Instituto Vera Cruz. Afinal, Júlio Cortázar é figurinha carimbada para quem estuda Literatura, Escrita Criativa e produção de contos. Porém, nunca tinha pegado esse livro para lê-lo de cabo a rabo, algo que só consegui fazer agora.
Levei em torno de duas horas e meia para concluir integralmente essa leitura. É possível ler “Histórias de Cronópios e de Famas” em uma tacada só. Contudo, confesso que não consegui fazer isso. Acabei lendo o livro em quatro sentadas – primeira parte de manhã, segunda parte no começo da tarde, terceira parte no finalzinho da tarde e a quarta parte à noite. Até tentei ler a coletânea de uma vez só, mas não consegui. Como achei as narrativas de “Histórias de Cronópios e de Famas” um tanto pesadas e arrastadas (não se engane com o tamanho diminuto de suas histórias), acabei abrindo mão de uma leitura sequencial.
As 9 narrativas da primeira parte de “Histórias de Cronópios e de Famas” são: “Manual de Instruções”, “Instruções Para Chorar”, “Instruções Para Cantar”, “Instruções-exemplos Sobre a Forma de Sentir Medo”, “Instruções Para Entender Três Quadros Famosos”, “Instruções Para Matar Formigas em Roma”, “Instruções Para Subir Uma Escada”, “Preâmbulo às Instruções Para Dar Corda no Relógio” e “Instruções Para Dar Corda no Relógio”.
Em “Manual de Instruções”, a narrativa inicial da seção homônima, ficamos sabendo que viver é mergulhar nas rotinas cotidianas; a sensação é que o mundo é construído em cima dos hábitos humanos/mundanos. “Instruções Para Chorar” pede (e mostra como) que choremos da maneira correta, independentemente dos motivos. Em “Instruções Para Cantar”, somos orientados a começar quebrando os espelhos de casa e a não cantar pelo nariz. “Instruções-exemplos Sobre a Forma de Sentir Medo” e “Instruções Para Entender Três Quadros Famosos” apresentam, respectivamente, microcontos aterrorizantes e análises de pinturas de Ticiano, Rafael e Holbein.
Em “Instruções Para Matar Formigas em Roma”, somos alertados que as formigas ainda vão devorar a capital italiana. Para evitar tal tragédia, é preciso exterminá-las. “Instruções Para Subir Uma Escada” aponta o passo a passo (literalmente) de como devemos avançar pelos degraus. Segundo o manual de instruções de Cortázar, temos que começar o processo (acredite!) erguendo um dos pés. “Preâmbulo às Instruções Para Dar Corda no Relógio” e “Instruções Para Dar Corda no Relógio” relatam, respetivamente, a roubada que é ganhar um relógio de presente e como devemos agir para os ponteiros não pararem de funcionar.
As 8 histórias de “Estranhas Ocupações”, a segunda parte de “Histórias de Cronópios e de Famas”, são: “Simulacros”, “Etiqueta e Precedências”, “Correios e Telecomunicações”, “Perda e Recuperação do Cabelo”, “Tia em Dificuldades”, “Tia Explicada ou Não”, “Os Pousa-tigres” e “Comportamento nos Velórios”.
Em “Simulacros”, acompanhamos os relatos iniciais de uma família um tanto esquisita que mora na Rua Humboldt, no bairro de Pacífico. Os protagonistas decidem construir um patíbulo no jardim da residência, o que gera curiosidade e depois revolta na vizinhança. “Etiqueta e Precedências” mostra a mania dessa família em dar apelidos jocosos aos seus integrantes, em uma espécie de bullying afetuoso. “Correios e Telecomunicações” se passa depois que um parente virou ministro. Com poder, ele nomeou seus familiares para trabalhar na sucursal dos Correios na Rua Serrano. O jeito peculiar do clã em trabalhar e em atender aos clientes provocou uma revolução na agência.
Em “Perda e Recuperação do Cabelo”, assistimos à saga que foi recuperar um fio de cabelo atirado propositadamente na pia da cozinha e que desceu pela tubulação. “Tia em Dificuldades” e “Tia Explicada ou Não” tratam do medo de uma senhora em cair de costas enquanto caminha. Essa paranoia gera grande mobilização dos parentes para ajudá-la nas atividades do dia a dia e na busca por um sentido lógico desse comportamento aparentemente bizarro. “Os Pousa-tigres” apresenta o mecanismo construído pela família para que os tigres pousem em segurança na residência. E “Comportamento nos Velórios” mostra como os integrantes desse clã se comportam durante as cerimônias fúnebres de parentes, vizinhos e amigos.
Os 25 microcontos de “Matéria Plástica”, a terceira seção da coletânea de Julio Cortázar, são: “Trabalhos de Escritório”, “Ocupações Maravilhosas”, “Vietato Introdurre Biciclette”, “Comportamento dos Espelhos na Ilha de Páscoa”, “Possibilidades da Abstração”, “O Jornal e Suas Metamorfoses”, “Pequena História Destinada a Explicar como é Precária a Estabilidade Dentro da Qual Acreditamos Existir, ou Seja, que as Leis Poderiam Ceder Terreno às Exceções, Acasos ou Improbabilidades, e Aí é que Eu Quero Ver”, “Fim do Mundo do Fim”, “Acefalia”, “Esboço de Um Sonho”, “Como Vai, Lopez?”, “Geografias”, “Progresso e Retrocesso”, “História Verídica”, “História de Um Urso Mole”, “Tema Para Uma Tapeçaria”, “Propriedades de Um Sofá”, “Sábio com Buraco na Memória”, “Plano Para Um Poema”, “Camelo Declarado Indesejável”, “Discurso do Urso”, “Retrato do Cassoar”, “O Esmagamento das Gotas”, “Fábula Sem Moral” e “As Linhas da Mão”.
Em “Trabalhos de Escritório”, uma secretária controla todas as atividades do lugar onde bate expediente, inclusive as palavras proferidas pelo patrão. “Ocupações Maravilhosas” mostra o quão interessante seria enviar, em um envelope, a pata cortada de uma aranha para o Ministro das Relações Exteriores. “Vietato Introdurre Biciclette” descreve os preconceitos que as bicicletas são vítimas. Assim como acontece com os cachorros, as bikes não podem entrar em bancos e nas casas de comércio. Em “Comportamento dos Espelhos na Ilha de Páscoa”, ficamos sabendo que, dependendo de onde são colocados na ilha, os espelhos têm um comportamento diferente na hora de medir a passagem do tempo. “Possibilidades da Abstração” apresenta o drama de um funcionário da UNESCO que tem a mania de abstrair. Ao invés de ver ou ouvir o que os colegas estão fazendo, ele simplesmente fixa sua atenção em algo aleatório.
“O Jornal e suas Metamorfoses” relata as transformações que um periódico sofre ao longo do dia à medida que vai passando de mão em mão. “Pequena História Destinada a Explicar como é Precária a Estabilidade Dentro da Qual Acreditamos Existir, ou Seja, que as Leis Poderiam Ceder Terreno às Exceções, Acasos ou Improbabilidades, e Aí é que Eu Quero Ver” (sim, o conto tem esse título gigantesco!!!) expõe um relatório confidencial produzido na OCLUSIOM. O documento aponta uma série de coincidências que estão acontecendo na instituição. Em “Fim do Mundo do Fim”, o planeta sofre uma overdose de publicação de livros. Sem lugar para guardá-los, a humanidade vive um caos literário-ambiental. “Acefalia” narra o drama de um senhor que tem a cabeça decepada e, por isso, perde alguns dos sentidos.
“Esboço de Um Sonho” é a trama com teor onírico de um rapaz que visita seu tio. A reunião da dupla é muito, muito estranha. “Como Vai, Lopez?” mostra o encontro fortuito de Lopes com um velho amigo. Ao se aproximarem, os homens se cumprimentam. “Geografias” é a interpretação de um atlas feito por formigas. Em “Progresso e Retrocesso”, acompanhamos a invenção de um vidro que permite a entrada das moscas no recipiente. “História Verídica” e “História de Um Urso Mole” narram, respectivamente, o quão improvável pode ser o mundo para um senhor que deixa seus óculos caírem no chão e a rotina de uma bola de coltar que cresce entre duas árvores. Em “Tema Para Uma Tapeçaria”, o general em desvantagem numérica usa uma estratégia curiosa para vencer o general inimigo.
“Propriedades de Um Sofá” se passa na casa de Jacinto. Naquela residência, há um sofá especial para as pessoas morrerem. Em “Sábio com Buraco na Memória”, um postulante ao Nobel fica indignado com a sua não indicação ao prêmio. “Plano Para Um Poema” mostra a quantidade de coisas que ocorrem no mundo. Enquanto isso, Marat permanece em sua banheira. “Camelo Declarado Indesejável” apresenta as angústias de Guk. Ele é o único camelo que não foi autorizado a passar pela fronteira. “Discurso do Urso” mostra a rotina de um urso que vive nos encanamentos das casas e apartamentos. Em “Retrato do Cassoar”, um cassoar vive em uma jaula na Austrália. “O Esmagamento das Gotas” relata a vida de uma gota que apareceu na janela de uma casa em um dia chuvoso. Em “Fábula Sem Moral”, o vendedor de gritos e palavras oferece seus serviços para o tiranete do país. E “As Linhas da Mão” narra o surgimento e o crescimento de uma linha que brotou de uma partida de cartas.
As 25 narrativas de “Histórias de Cronópios e de Famas”, a quarta e última parte do livro homônimo, são: “Costumes dos Famas”, “A Dança dos Famas”, “Alegria do Cronópio”, “Tristeza do Cronópio”, “Viagens”, “Conservação das Lembranças”, “Relógios”, “O Almoço”, “Comércio”, “Filantropia”, “O Canto dos Cronópios”, “História”, “A Colherada Estreita”, “A Foto Saiu Fora de Foco”, “Eugenesia”, “Sua Fé nas Ciências”, “Inconvenientes nos Serviços Públicos”, “Faça Como Se Estivesse Em Sua Casa”, “Terapias”, “O Particular e o Universal”, “Os Exploradores”, “Educação de Príncipe”, “Cole o Selo no Angulo Superior Direito do Envelope”, “Telegramas” e “Suas Histórias Naturais”.
Em “Costumes dos Famas”, conhecemos um fama que gosta de irritar os esperanças. Ele dança trégua e catala em frente a um armazém cheio de cronópios e esperanças, o que causa uma grande confusão. “A Dança dos Famas” é a descrição do bailado do conto anterior, que é tradicionalmente acompanhado por uma canção típica dos famas. “Alegria do Cronópio” relata o encontro de um cronópio com um fama na loja La Mondiale. Em “Tristeza do Cronópio”, um cronópio fica triste porque seu relógio vive atrasado. “Viagens” e “Conservação das Lembranças” mostram, respectivamente, as diferenças das viagens realizadas pelos famas, pelos cronópios e pelos esperanças e as diferenças de como cada um desses grupos conserva as lembranças.
Em “Relógios”, um cronópio inventa um novo tipo de relógio. A ideia partiu da observação de como os famas davam cordas no objeto. “O Almoço” narra a criação de um termômetro de vidas por outro cronópio. “Comércio” mostra a dinâmica em uma fábrica de mangueiras. O empreendimento é dos famas, mas são os cronópios quem trabalham no chão da fábrica. “Filantropia” apresenta mais uma diferença entre os famas e os cronópios. Enquanto o primeiro grupo é generoso, o segundo não é. “O Canto dos Cronópios” mostra o que acontece com os famas e os esperanças quando os cronópios cantam com entusiasmo. Em “História”, um pequeno cronópio procura as chaves de casa.
“A Colherada Estreita” demonstra o que acontece na vida de um fama quando ele começa a dar colheradas de virtudes para os familiares. Em “A Foto Saiu Fora de Foco”, um cronópio se desespera ao encontrar no bolso uma caixa de fósforo no lugar das chaves. “Eugenesia” mostra que os cronópios recorrem aos famas para fecundar suas mulheres. “Sua Fé nas Ciências” relata as pesquisas sociais de um esperança. Ele decidiu catalogar seus conhecidos a partir dos biotipos. Em “Inconvenientes nos Serviços Públicos”, um cronópio é nomeado Diretor-geral de Radiofusão. Com o poder em mãos, ele baixou um decreto – tudo o que fosse veiculado nas rádios da Argentina devia vir na língua romena.
“Faça Como Se Estivesse Em Sua Casa” narra as diferenças típicas que encontramos nas residências dos esperanças, dos cronópios e dos famas. “Terapias” e “O Particular e o Universal” mostram, respectivamente, o atendimento médico de um cronópio recém-formado e o que acontece quando o tubo da pasta de dente de um cronópio sai do controle. Em “Os Exploradores”, três cronópios e um fama fazem uma expedição por fontes subterrâneas da cidade. “Educação de Príncipe” demonstra um aspecto curioso da dinâmica social dos cronópios. Eles nunca têm filho. E quando têm, são odiados pelos rebentos.
“Cole o Selo no Angulo Superior Direito do Envelope” narra a ida aos Correios de dois amigos, um cronópio e um fama. Eles querem mandar cartas para suas mulheres, que estão viajando pela Europa. O problema é que o cronópio não gostou do visual dos selos ofertados. Em “Telegramas”, Ramos Mejía e Viedma, dois esperanças irmãos, trocam telegramas. E, por fim, “Suas Histórias Naturais” é a sequência de cinco fábulas envolvendo famas, esperanças e cronópios com elementos da fauna (leão, condor e tartaruga) e da flora (flor e eucalipto).
Do ponto de vista formal, “Histórias de Cronópios e de Famas” (voltei a falar do livro como um todo e não apenas da seção com as três criaturas fantásticas criadas por Julio Cortázar) é realmente uma obra desconcertante. Essa questão é inegável. Você pode gostar ou odiar as narrativas desse título, mas não pode discutir o quanto elas são inquietantes e impactantes. Só o fato de Cortázar ter optado pela produção de microcontos, uma grande novidade para a época, mostra o quão contemporâneo é o texto ficcional do argentino.
É interessante reparar no jeitão em que esse livro foi estruturado. A divisão em quatro partes permitiu uma grande liberdade criativa ao autor, além de unificar os textos de cada seção. Assim, os microcontos podem ser lidos independentemente (menor impacto), mas também permitem uma leitura mais completa quando feita integradamente (maior impacto). Gostei muito desse recurso.
A polêmica verdadeira está no conteúdo de “Histórias de Cronópios e de Famas”. O que, afinal, eu achei dos contos desse livro? Para começo de conversa, gostei muito de algumas histórias da coletânea. “Tia em Dificuldades”, “Possibilidades da Abstração”, “História Verídica”, “Tema Para Uma Tapeçaria”, “Camelo Declarado Indesejável” e “Fábula Sem Moral” são excelentes. “Manual de Instruções”, “Simulacros”, “Perda e Recuperação do Cabelo”, “Os Pousa-tigres”, “Comportamento dos Espelhos na Ilha de Páscoa”, “O Jornal e Suas Metamorfoses” e “Fim do Mundo do Fim” são também ótimas narrativas.
Sinceramente, gostei mais das partes II (“Estranhas Ocupações”) e III (“Matéria Plástica”) do que das partes I (“Manual de Instruções”) e IV (“Histórias de Cronópios e de Famas”). Curiosamente, minha preferência recaiu para as seções menos famosas do livro. Na minha visão, “Estranhas Ocupações” e “Matéria Plástica” representam o ponto alto dessa obra porque eles têm textos menos herméticos e com uma ironia mais explícita. Como consequência, conseguimos compreender rapidamente as críticas sociais, as reflexões existencialistas, as inquietações políticas e as intertextualidades literárias e históricas propostas por Julio Cortázar.
No caso de “Manual de Instruções” (estou me referindo agora à primeira seção do livro e não ao microconto especificamente), a sensação é que se eu ou você tivéssemos produzido narrativas desse tipo, seríamos execrados eternamente pela crítica literária e pelo mercado editorial. Contudo, como elas foram criadas por Cortázar, há quem as admire hoje em dia. Consigo sim reconhecer algumas qualidades nos contos dessa seção (são, por exemplo, textos engraçados, inquietantes e amalucados), mesmo assim me pareceu que suas brincadeiras não funcionam para todo mundo (dependendo do contexto em que a leitura é feita, essas tramas se tornam vazias, pueris e tolas). Em outras palavras, apoio as críticas negativas feitas na época do lançamento desse título.
Em relação a “Histórias de Cronópios e de Famas”, admito que não fui tão impactado por elas como imaginei que seria. A proposta de classificar os seres humanos em tipos e nomeá-los como seres fantásticos é excelente. No universo cortaziano, os cronópios são os indivíduos com alma artística. Eles vivem intensa e alegremente indiferentes à realidade prática do dia a dia e à rotina convencional. Os famas, por sua vez, são os indivíduos práticos e objetivos. Eles se concentram nas tarefas cotidianas e levam a vida de maneira burocrática e bem tradicional. Enquanto podemos enxergar os cronópios como as cigarras da fábula clássica, podemos ver os famas como as formigas. E os esperanças são os indivíduos acomodados. Eles esperam as coisas acontecerem e têm como hábito ficar observando indiferentes ao mundo à sua volta.
Como ideia conceitual, a brincadeira dos cronópios, famas e esperanças (só não entendi o motivo da exclusão dos esperanças no nome do livro e no título da quarta parte da obra!) é ótima. O problema foi encontrar as características principais dessas três criaturas nos contos. Eu não consegui enxergar tantas críticas sociais nessas narrativas como imaginei que fosse encontrar. Talvez isso seja mais um problema meu (da minha leitura propriamente dita) do que do texto de Julio Cortázar (da produção literária em si). Na certa, se você conseguir descortinar as referências, as ironias e as críticas de Cortázar, irá aproveitar mais e melhor os textos dessa seção do que eu.
De maneira geral, “Histórias de Cronópios e de Famas” (voltei a falar do livro como um todo e não apenas da última seção da obra) é uma coletânea de narrativas experimental de Julio Cortázar que explora o tempo inteiro o humor. O autor argentino usa aqui um humor bem variado. Ele vai do deboche a ironia, passando pelo nonsense, pelo pastelão/ridículo, pelo simbolismo cômico e pela alegoria. Podemos gostar ou não desse título, mas que ele é engraçado isso é. Diria até que a coletânea é engraçadíssima!
Justamente com o humor, temos uma forte crítica social e política. A sensação é que Cortázar não perde uma oportunidade para fustigar seus conterrâneos, os políticos argentinos e a sociedade burguesa-capitalista de modo geral. Paradoxalmente, quanto mais componentes críticos encontramos nas narrativas de “Histórias de Cronópios e de Famas”, menor é a sensação de estarmos acompanhando um exemplar do Realismo Fantástico. É uma pena que algumas críticas e enredos tenham envelhecido mal. Porém, é surpreendente notar que outros tantos são ainda extremamente atuais e válidos.
Por tudo isso, entendo quem tenha ficado encantado com os contos/microcontos de “Histórias de Cronópios e de Famas” e compreendo também quem tenha odiado suas narrativas. Como já falei, não fui tão impactado por essa leitura. O meu livro favorito de Cortázar continua sendo “Os Prêmios”, romance que soube calibrar melhor os elementos do Realismo Fantástico com as críticas sociais. Essa minha preferência pode mudar, tá? Afinal, essa semana lerei “O Jogo da Amarelinha” (Companhia das Letras), a obra mais famosa do argentino. O post com a análise desse romance será disponibilizado no Bonas Histórias na próxima segunda-feira, dia 8. Não perca a sequência do Desafio Literário de Julio Cortázar. Até lá!
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