Publicada em 1951, esta obra marcou o início do escritor argentino no Realismo Fantástico, estilo ficcional em que Cortázar foi uma das principais figuras.
No último final de semana, li “Bestiário” (Civilização Brasileira), a primeira coletânea de contos publicada por Julio Cortázar. Livro marcante da literatura argentina, do Realismo Fantástico e do portfólio de Cortázar, “Bestiário” é o segundo título do escritor argentino que o Desafio Literário desse bimestre analisa. No sábado passado, apresentei, no Bonas Histórias, as minhas impressões sobre “Os Reis” (Civilização Brasileira), primeiro trabalho literário a estampar o nome de Julio Cortázar. Lançado dois anos antes de “Bestiário”, “Os Reis”, vale aqui uma rápida menção, misturava dramaturgia e literatura, prosa e poesia e mitologia grega e questionamentos existencialistas. Ou seja, pareceu-me mais um livro de cunho experimental do que uma obra com uma proposta estético-narrativa definida, algo que já encontramos no título que vamos comentar hoje.
Dois motivos fazem “Bestiário” ser uma publicação tão importante. Em primeiro lugar, ele representou a estreia de Julio Cortázar nas coletâneas de contos, gênero textual em que o argentino se consolidaria como uma das grandes figuras da história. Por mais que já tivesse publicado narrativas curtas em várias revistas literárias de Buenos Aires, Cortázar não tinha ainda um livro nesse formato. Com a chegada de “Bestiário” às livrarias, o público leitor teve acesso mais facilitado às histórias do autor. O segundo motivo é que essa obra marcou o ingresso do escritor no Realismo Fantástico. Até então, as publicações de Julio Cortázar eram extremamente quadradonas e não possuíam elementos mágicos. “Presencia” (sem publicação em português”) e “Os Reis” são trabalhos tão certinhos em relação ao formato e à temática que é até difícil de enxergarmos hoje em dia como sendo textos do mais reacionário dos autores argentinos.
Publicado em 1951, “Bestiário” foi apresentado aos leitores pouco antes de Julio Cortázar, então com 37 anos, abandonar definitivamente a Argentina. Decepcionado com a ditadura militar, que já se mostrava intolerante, violenta e excludente, Cortázar se mudou para Paris, onde viveria pelo resto da vida. Na capital francesa, ele passou a trabalhar como tradutor da Unesco e a produzir seus livros mais importantes.
Curiosamente, “Bestiário” não está entre as obras mais famosas de Julio Cortázar na visão do público, mas ele é emblemático pois representou a afirmação estilística e temática do autor. O próprio Cortázar reconheceu isso. Para ele, “Bestiário” foi o seu primeiro grande trabalho literário. Nesse título, o argentino afirma que conseguiu encontrar uma proposta narrativa e uma linha editorial com maiores potenciais ficcionais. Não à toa, a partir daí nasceu um dos maiores contistas da história e uma das grandes figuras do Realismo Fantástico Sul-americano.
Quando “Bestiário” foi publicado, o Realismo Fantástico já vigorava na América Latina há um tempinho. Prova disso é que o termo Realismo Fantástico (em espanhol, usa-se mais a expressão Realismo Mágico) foi cunhado, em 1949, pelo escritor cubano Alejo Carpentier. Ao resumir o tipo de literatura que estava sendo praticada no continente, Carpentier disse que as narrativas mais relevantes tinham elementos sobrenaturais, uma espécie de Realismo Mágico. A partir daí, essa foi a nomenclatura que passou a designar tanto a escola literária quanto o estilo ficcional que misturava aspectos concretos da vida real (realismo) com uma pontinha de absurdo (fantástico). Criado efetivamente na década de 1940, o Realismo Fantástico teve seu auge entre os anos 1960 e 1970, período chamado pelos críticos literários como Boom Latino-americano.
Apesar de “Bestiário” ser considerado uma das primeiras obras dessa corrente artística, ele não é o pioneiro, pioneiro. “Ficções” (Companhia das Letras), coletânea de contos de Jorge Luis Borges, foi publicado em 1944 e “O Reino Desse Mundo” (Martins), novela de Alejo Carpentier, foi lançado em 1949. Ou seja, quando Julio Cortázar enveredou para valer pelos caminhos do Realismo Fantástico, Jorge Luis Borges, por exemplo, já era um autor reconhecido e premiado internacionalmente por esse tipo de narrativa. De qualquer maneira, a chegada posterior de Cortázar ao Realismo Mágico não diminui seu brilhantismo.
Na Argentina, “Bestiário” foi publicado pela Editorial Sudamericana, uma das mais tradicionais editoras de Buenos Aires. O livro fez relativo sucesso na Argentina na época de seu lançamento. O que significa um relativo sucesso, Ricardo?! Relativo sucesso quer dizer que “Bestiário” não foi ignorado pela crítica e pelos leitores como “Presencia” e “Os Reis”, os dois primeiros títulos de Cortázar. Ao mesmo tempo, não podemos dizer que o sucesso de público e de crítica que “Bestiário” teve possa ser comparado ao de “O Jogo da Amarelinha” (Companhia das Letras), esse sim uma obra que balançou o coreto da ficção argentina e da literatura internacional.
No Brasil, há duas boas traduções de “Bestiário”. Temos uma versão mais antiga feita por Remy Gorga Filho para a Editora Nova Fronteira e outra mais recente de Ari Roitman para a Civilização Brasileira. Acabei lendo essa última pois foi a que encontrei mais facilmente nas livrarias nacionais. O livro que li é a quarta edição da Civilização Brasileira e foi lançado em julho de 2013. Inexplicavelmente, “Bestiário” ficou muitos anos fora do catálogo das editoras brasileiras. Apenas na década passada, com a volta ao interesse do trabalho de Julio Cortázar, começamos a ter republicações dos principais livros do argentino. Ainda bem, né?!
“Bestiário” possui oito contos: (1) “Casa Tomada”, (2) “Carta a Uma Senhorita em Paris”, (3) “Distante” (também chamado de “Longínqua” em algumas traduções), (4) “Ônibus”, (5) “Cefaleia”, (6) “Circe”, (7) “As Portas do Céu” e (8) “Bestiário”. Essa última narrativa é justamente aquela que emprestou seu nome à coletânea. Dessas histórias de Julio Cortázar, as mais famosas são “Casa Tomada”, “Carta a Uma Senhorita em Paris”, “Cefaleia” e “Bestiário”. Esse quarteto ficcional não é apenas as narrativas mais conhecidas dessa obra como também figura na lista dos principais contos que Cortázar produziu. Não à toa, eles são estudados em oficinas literárias e cursos de Escrita Criativa no mundo inteiro.
Em “Casa Tomada”, trama que inaugura o livro, dois irmãos de aproximadamente 40 anos vivem sozinhos em uma grande propriedade em Buenos Aires. A rotina deles é extremamente tranquila e baseada na limpeza do local. Isso até a casa ser invadida, em uma noite que aparentava ser normal, por algo ou alguém misterioso. “Carta a Uma Senhorita em Paris”, o segundo conto de “Bestiário”, narra o drama do amigo de Andrée. Enquanto ela está viajando pela França, ele fica no apartamento dela na Rua Suipacha, na capital argentina. O drama do hóspede começa logo que ele chega ao lar da amiga. Já no elevador, ele vomita o primeiro coelho. O rapaz tenta esconder esse acontecimento de Sara, a empregada de Andrée, mas tal tarefa se torna cada dia mais complicada. Os coelhos não param de brotar de sua garganta e logo passam a dominar (e destruir) a residência.
“Distante” é o pitoresco diário de Alina Reyes, uma garotinha com uma imaginação para lá de fértil. Ao invés de acompanharmos os relatos da vida real da menina (algo esperado das páginas de um diário), assistimos, nessa narrativa, ao divagar da mente de Alina. Assim, o texto caminha por sonhos, memórias, projeções e esperanças da menina. Em “Ônibus”, o conto seguinte do livro, Julio Cortázar constrói um thriller aterrorizante ambientado quase que inteiramente dentro do transporte público. Em um sábado à tarde, Clara deixa a casa de Dona Roberta e vai passear. Ela pega o ônibus da linha 168 que segue em direção à Chacarita. Assim que coloca os pés dentro do veículo, Clara se torna alvo da curiosidade do motorista e do cobrador e do assédio dos demais passageiros. Inicia-se, dessa maneira, uma intrigante, assustadora e inacreditável viagem pelas ruas de Buenos Aires.
A quinta narrativa de “Bestiário” é “Cefaleia”. Essa história se passa no Verão e é encenada em uma fazenda nos pampas argentinos. A propriedade rural do conto é dedicada à criação de mancúspias (animal inventado por Cortázar). Apesar de ser uma atividade aparentemente lucrativa, a criação das mancúspias exige cuidados excessivos e rotineiros e, o que é pior, provoca uma forte dor de cabeça nos funcionários da fazenda ao ponto de enlouquecê-los. Seriam esses animais amaldiçoados como a população local acredita?! Em “Circe”, Mario está apaixonado por Delia. O problema é o falatório do povo. Delia é considerada uma moça estranha e com fama de mal-assombrada. Afinal, os dois noivos anteriores dela morreram de forma trágica na véspera do casório. Indiferente à opinião da família e dos amigos que são contrários aquela união, Mario quer se casar com Delia.
“As Portas do Céu” é o sétimo e penúltimo conto da coletânea. Nessa trama, Marcelo, um importante advogado, vai à casa de Mauro, um amigo simples que trabalha como zelador no mercado da cidade. A mulher de Mauro, Celina, uma ex-prostituta, acabou de morrer, para desespero do marido. O que será da vida de Mauro sem a zelosa e fiel companheira, hein? Em “Bestiário”, acompanhamos as férias de Verão de Isabel. A menina viajou para a estância da família Funes que fica na região de Los Horneros. Lá, ela passa os dias brincando com os filhos do proprietário da fazenda. A diversão favorita da criançada é investigar a flora e a fauna locais. O curioso dessa narrativa é que há um tigre que insiste em rodear a casa dos Funes, o que não parece causar preocupação em ninguém.
“Bestiário” (agora voltei a falar do livro como um todo e não apenas do conto especificamente) é uma publicação enxuta. Os oito contos de Julio Cortázar ocupam 144 páginas. Precisei de pouco mais de duas horas para concluir essa leitura no sábado passado. Confesso que gostei bastante da maioria das histórias de Cortázar. Dessa coletânea, só conhecia “As Cartas a Uma Senhorita em Paris” (texto estudado nas aulas do curso da Pós-graduação em Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz) e “Circe” (narrativa discutida em uma oficina de Escrita Criativa que fiz há alguns anos).
A primeira questão interessante em “Bestiário” é a mistura de histórias banais (trabalho na fazenda, viagem de ônibus, férias no interior, cuidado da casa, relato em um diário, hospedagem na residência de uma amiga, ida ao funeral da esposa de um amigo) com algum elemento surpreendente. O surgimento desse pequeno componente sobrenatural no meio da trama até então certinha extermina a paz das personagens e provoca o leitor. Essa combinação de normalidade (fatos corriqueiros) com anormalidade (aspectos absurdos) é uma das marcas da literatura de Julio Cortázar (e da dinâmica ficcional do Realismo Fantástico como um todo).
O aspecto mágico do enredo pode ser a invasão misteriosa a uma residência tranquila (“Casa Tomada”), o sujeito que vomita coelhos (“Carta a Uma Senhorita em Paris”), a jovem que assiste à morte de seus noivos antes do matrimônio (“Circe”), os animais da fazenda com capacidade para mexer com o psicológico dos seus tratadores (“Cefaleia”), a menina que gosta de registrar a sua imaginação e seus sonhos nas páginas do diário (“Distante”), um tigre que rodea uma propriedade rural (“Bestiário”), um ônibus com pessoas estranhas em seu interior (“Ônibus”) e a mulher morta que parece ressuscitar diante do viúvo perplexo (“As Portas do Céu”).
Obviamente, Julio Cortázar não explica didaticamente os elementos fantásticos de seus contos. O escritor argentino simplesmente os atira no meio das histórias. Por isso, cabe ao leitor interpretar à sua maneira os acontecimentos assistidos nas páginas de “Bestiário”. Assim, temos narrativas com leituras e desfechos abertos. Essa polissemia é possivelmente uma das características mais legais dessa coletânea de contos.
Em alguns momentos, admito que achei que o sobrenatural, a magia e o inexplicável eram mais fruto de problemas psicológicos ou éticos dos narradores e dos protagonistas dos contos do que necessariamente um fato incrível da trama. Por exemplo, o rapaz que afirma vomitar coelhos é, na minha visão, um grande mentiroso. Segundo minha interpretação, ele encontrou uma desculpa esfarrapada (e põe esfarrapada nisso!) para justificar à amiga a destruição do apartamento dela. No caso do irmão que se assusta com a possível invasão de sua casa, ele deve ter alguns problemas mentais (TOC com certeza ele tem!). A invasão, de acordo com o meu ponto de vista, é muito mais uma paranoia dele do que necessariamente um acontecimento real. E o que dizer, então, dos criadores das mancúspias, hein? Os funcionários que se sujeitam ao trabalho que eles são obrigados a fazer são, por si só, amalucados.
As personagens principais desse livro de Cortázar são normalmente figuras solitárias, melancólicas e abaladas por tragédias pessoais. O desequilíbrio mental delas pode ser justificado pelas alucinações, pela imaginação fértil, pelos sonhos, pelo medo desmedido, pela rotina atribulada e pela desconexão com a família e a sociedade. Essa é a típica obra que rende intermináveis discussões por parte de psiquiatras e psicólogos.
Juntamente com a ambientação de mistério e suspense, os contos de “Bestiário” têm muito humor, certa pegada de terror e alguns componentes naturalistas. Impossível não soltarmos algumas gargalhadas com o drama do amigo de Andrée e com o amor inconsequente do jovem Mario. Além disso, é assustadora a viagem de ônibus de Clara, são aterrorizantes os problemas enfrentados pelos funcionários na fazenda nos pampas argentinos e é profundamente incômodo o desespero dos irmãos na grande casa solitária. No caso da proximidade com a literatura naturalista, isso fica mais evidente com a animalização das personagens. Em muitos momentos, as narrativas de Julio Cortázar lembram os textos de Jorge Luis Borges (principalmente pelo humor inteligente e sutil) e de Edgar Alan Poe (pela trama sinistra).
O que torna a experiência de leitura de “Bestiário” ainda mais rica é a avalanche de elementos simbólicos presentes em suas narrativas. E aí Cortázar é muito versátil. Temos desde passagens bíblicas, mitológicas, existencialistas, oníricas, psicológicas e políticas. As várias possiblidades interpretativas decorrem justamente dos diferentes caminhos simbólicos que os leitores podem seguir. Por exemplo, o primeiro conto, “Casa Tomada”, pode representar a agonia do povo argentino com a ditadura militar (interpretação política), pode significar o surto psicológico do narrador (interpretação psicanalítica – irmãos que vivem juntos, indiferentes à opinião da sociedade) ou pode indicar um drama sobrenatural (interpretação religiosa – proximidade da morte ou manifestação de espíritos).
A maioria dos contos de “Bestiário” é narrada em primeira pessoa, mistura os diferentes espaços temporais (passado, presente e futuro), embaralha os vários planos de realidade (mundo objetivo, sonho e imaginação) e apresenta vários neologismos (formicário e mancúspias são dois exemplos). Quando olhamos a união de espaços temporais e de planos da realidade, Cortázar se aproxima muito dos textos de Juan Carlos Onetti. Quando ele cria termos linguísticos, aí fica mais próximo da literatura de Guimarães Rosa. Nota-se, portanto, que já em sua primeira coletânea de contos, Julio Cortázar conseguiu trazer propostas ficcionais muito interessantes e que dialogavam com o que de melhor estava sendo praticado no continente naquela época.
O Desafio Literário de Julio Cortázar continuará na semana que vem. Na próxima quinta-feira, 21 de outubro, voltarei ao Bonas Histórias para analisar o terceiro livro do escritor argentino que está contemplado em nosso estudo estilístico desse bimestre. A obra em questão é “Final do Jogo” (Civilização Brasileira), a segunda coletânea de contos de Cortázar. Esse livro foi publicado em 1956 e é considerado um dos títulos mais influentes do autor. Não perca a discussão sobre “Final do Jogo” e os próximos capítulos do Desafio Literário de outubro e novembro. Até lá!
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