Publicado em 1719, o drama do náufrago solitário marcou a literatura ocidental por gerações e é hoje um título infantojuvenil imperdível.
Na fase mais crítica da pandemia do novo coronavírus, não faltaram citações às obras literárias que dialogavam de alguma maneira com o que a humanidade estava vivenciando naquele momento tão conturbado. Por exemplo, para compreendermos a propagação acelerada do vírus da gripe, bastava ler “A Dança da Morte” (Suma das Letras), de Stephen King, “O Amor nos Tempos do Cólera” (Record), de Gabriel García Márquez, ou “A Morte em Veneza” (Companhia das Letras), de Thomas Mann. Para entendermos o caos social decorrente de períodos de incerteza e de desespero, as leituras sugeridas eram “A Peste” (Record), de Albert Camus, “O Ensaio sobre a Cegueira” (Companhia das Letras), de José Saramago, e “Caixa de Pássaros” (Intrínseca), de Josh Malerman.
Por uma perspectiva mais nacional, o drama que estávamos passando no primeiro semestre de 2020 poderia ser comparado aos vivenciados ficcionalmente pelas personagens de “A Peste das Batatas” (Pomelo), de Paulo Sousa, “Não Verás País Nenhum” (Global), de Ignácio de Loyola Brandão, e “A Realidade de Madhu” (Novo Século), de Melissa Tobias. Se você quisesse olhar a situação de uma forma mais política e catastrófica, as pedidas eram “O Bom Ditador – O Nascimento de Um Império” (e-book independente), do português Gonçalo J. Nunes Dias, e “Sob a Redoma” (Suma das Letras), do norte-americano Stephen King. Eram/são tantas as opções de comparação entre a realidade pandêmica e a ficção literária que fiz, no ano retrasado, uma lista com os 12 livros que deveriam ser lidos em tempos de Coronavírus. Esse texto está disponível para consulta dos leitores do Bonas Histórias na coluna Recomendações.
E por que, então, estou falando sobre essa questão no post de hoje da coluna Livros – Crítica Literária, hein? Porque um dos romances mais lembrados na hora de retratar a agonia das pessoas confinadas dentro das residências durante a quarentena da Covid-19 foi “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” (Principis), a aventura clássica de Daniel Defoe que é justamente o tema da nossa análise dessa semana. Para ser sincero, desde o começo da pandemia achei um exagero tremendo comparar a realidade de quem ficou fechado em casa no meio de uma metrópole em pleno século XXI ao drama da personagem que viveu por anos e anos sozinha em uma ilha isolada da América Central no século XVIII. Contudo, respeito quem fez essa associação.
Agora que as coisas parecem mais calmas quando o assunto é pandemia do novo coronavírus (ao menos a perspectiva é de melhora; e a parte mais inteligente da população já está vacinada ou a caminho da imunização completa), resolvi ler outra vez a obra mais famosa de Daniel Defoe. Como minha última (e primeira) leitura desse título tinha sido na adolescência (coisa de duas décadas e meia atrás), achei interessante rever esse livro tão citado nos últimos anos por uma nova perspectiva. Daí a ideia de comentá-lo no Bonas Histórias. Minha meta dessa vez é entender se a rotina do náufrago solitário poderia mesmo ser transportada para a realidade que vivenciamos recentemente. Será?
Publicado originalmente em folhetim, a partir de abril de 1719, no The Daily Post, “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” se tornou um sucesso imediato na Inglaterra. A curiosidade do público do jornal se devia fundamentalmente à abertura da história. Logo nas primeiras linhas do fascículo inicial, Daniel Defoe afirmava que aquela era uma narrativa verídica e que estava sendo contada por um náufrago de carne e osso. Inclusive, o escritor inglês não assinou a obra. Ele preferiu colocar o próprio Robinson Crusoé como sendo o autor do romance. Não demorou muito tempo para os britânicos descobrirem a picardia. Curiosamente, essa foi apenas uma das várias polêmicas que Defoe se envolveu ao longo da carreira. Como já deve ter ficado mais ou menos claro até aqui, estamos falando de uma das figuras mais inusitadas e controversas da literatura inglesa da primeira metade do século XVIII.
Quando a verdade sobre o teor ficcional do livro foi estabelecida, os leitores já estavam tão encantados com o enredo do rapaz que ficou perdido por duas décadas em uma ilha tropical que ninguém mais ligou para o engodo perpetrado por Daniel Defoe. Surgia, assim, uma das tramas mais marcantes da cultura ocidental e uma das histórias mais conhecidas da humanidade. Acredito piamente que seja impossível alguém minimamente letrado não ter sequer ouvido falar nesse romance. Você até pode não o ter lido, mas na certa já ouviu algo a respeito.
Por isso mesmo, “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” continua, aos olhos contemporâneos, sendo um dos dramas mais importantes da literatura universal. Por várias gerações, esse clássico de Daniel Defoe influenciou escritores e maravilhou leitores dos quatro cantos do planeta. Há quem diga que essa obra é uma das mais traduzidas e republicadas no mundo. Não duvido disso. “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” é também considerado o primeiro romance inglês, um marco das narrativas de aventura, a obra pioneira na ficção realista e uma referência incontestável nas tramas marítimas.
Por falar em histórias de alto-mar tão típicas do século XIX, que incluíam disputas entre piratas, caça a animais gigantescos e busca por tesouros escondidos, o trabalho de Daniel Defoe serviu de base para uma série de publicações. Posso citar “Tales of Fancy: The Shipwreck” (sem edição no Brasil), livro de Sarah H. Burney de 1816, “O Pirata” (Ebal), obra de Sir Walter Scott” de 1822, “The Pilot: A Tale of the Sea” (sem publicação em português), título de James Fenimore Cooper de 1823, “A Ilha do Tesouro” (Principis), romance de R. L. Stevenson de 1881, e “Moby Dick” (Editora 34), clássico de Herman Melville. Repare que quase todas essas tramas são pelo menos um século mais novas do que “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé”. Se pegarmos as ficções literárias de aventura mais recentes, encontraremos o DNA da literatura de Defoe em alguns sucessos. Ninguém me tira da cabeça, por exemplo, que “Perdido em Marte” (Arqueiro), best-seller de Andy Weir, é uma releitura contemporânea e espacial da saga de Crusoé.
Como sabemos atualmente, “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” não é um texto autobiográfico, mas sim uma trama ficcional. Porém, Daniel Defoe teria se inspirado em relatos verídicos do escocês Alexander Selkirk, um corsário e, mais tarde, oficial da Marinha Britânica que vivenciou o drama de ficar sozinho em uma ilha. No início do século XVIII, ele passou quatro anos em um território desabitado no Oceano Pacífico, região hoje pertencente ao Chile. Diferentemente de Crusoé, Alexander Selkirk foi deixado na ilha por vontade própria. O rapaz estava receoso de continuar a viagem em um navio pirata tão precário. Temendo uma tragédia em alto-mar, ele pediu para não seguir viagem após a embarcação capitaneada por Thomas Stradling reabastecer em um arquipélago desabitado da América do Sul. Sua solicitação foi prontamente atendida pelo capitão.
E a escolha de Selkirk se mostrou acertadíssima. A embarcação de Thomas Stradling afundou pouco depois de retomar a viagem. Uma tempestade na costa colombiana foi a responsável pela tragédia. Depois de quatro anos e quatro meses vivendo sem nenhum contato humano, Alexander Selkirk foi resgatado da ilha por um navio comercial inglês comandado por Woodes Rogers. Ao regressar para o Reino Unido, em 1709, Selkirk concedeu entrevistas para os jornais na qual relatou sua experiência de sobrevivência. Rapidamente, ele se tornou uma figura popular na capital do reino. Mais tarde, em 1712, Woodes Rogers publicou “A Cruising Voyage Round The World” (sem edição em português). Nesse livro, o capitão contou suas histórias marítimas e dedicou uma parte para a aventura do rapaz resgatado no arquipélago da América do Sul. Não é preciso dizer que Daniel Defoe leu as entrevistas de Alexander Selkirk nos jornais e a obra de Rogers.
Se o navegante escocês era muito famoso em sua época, hoje ele é mais conhecido por causa de “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé”. A história de Alexander Selkirk está tão atrelada ao livro de Defoe que, em 1966, a ilha em que o corsário escocês viveu no arquipélago de Juan Fernández foi rebatizada pelo governo chileno de Ilha Robinson Crusoe – não confundir, por favor, com uma ilha homônima localizada em Fuji. Anteriormente, a ilha, a maior do arquipélago e até hoje deserta, se chamou Santa Cecilia (na época de sua descoberta, em 1574) e Más a Tierra (depois do século XVII). Ou seja, se a ficção foi influenciada de certa maneira pela realidade, a realidade também acabou fortemente inspirada pela literatura ficcional. Incrível!!!
“A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” é disparado o livro mais famoso de Daniel Defoe. Já no final de 1719, o romance já tinha ganhado quatro edições no Reino Unido (além daquela publicada em folhetim no The Daily Post). Sua versão original contava com duas partes: “The Life and Strange Surprizing Adventures of Robinson Crusoe of York, Mariner” e “The Farther Adventures of Robinson Crusoe”. Invariavelmente, as editoras contemporâneas preferem lançar apenas a primeira seção da trama (o trecho mais interessante e rico da narrativa). Não por acaso, “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” é justamente a parte inicial da obra.
Com a repercussão extremamente positiva desse título, o escritor inglês continuou a saga de seu mais conhecido protagonista. Já em 1720, Daniel Defoe lançou “Serious Reflections During the Life and Surprising Adventures of Robinson Crusoe” (sem edição no Brasil). A nova publicação trazia mais ações da personagem que mexe até hoje com o imaginário popular. Entretanto, esse novo livro não repetiu o sucesso do primeiro volume da série nem ganhou tantas traduções mundo à fora. Do ponto de vista comercial, podemos dizer que “Serious Reflections During the Life and Surprising Adventures of Robinson Crusoe” é um título pouquíssimo conhecido do portfólio literário de Defoe. Arrisco a dizer que “Um Diário do Ano da Peste” (Artes e Ofícios), “Os Segredos de Lady Roxana” (Ediouro), “A Vida Amorosa de Moll Flanders” (Clássica Editora) e “Capitão Singleton” (Global) são obras mais conhecidas do público nacional do que a segunda e última parte das aventuras de Robinson Crusoé.
Daniel Defoe nasceu em Londres, em 1660. Depois de iniciar a carreira como comerciante, passou a produzir textos literários e jornalísticos. Até o sucesso da narrativa de Robinson Crusoé, Defoe era mais conhecido entre seus compatriotas pelos panfletos políticos e pelos ensaios moralistas. Exatamente pelo teor controverso de suas palavras, ele envolveu-se em algumas polêmicas ao longo dos anos. Daniel Defoe também é lembrado por ter fundado o jornal The Review.
O que chama mais atenção em “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” é a pegada moderna de sua narrativa. Escrito em primeira pessoa em tom confessional (quando o normal da época era o texto em terceira pessoa), o livro é quase um romance epistolar, possui lição de moral explícita, exibe um intrincado conflito psicológico e apresenta partes que emulam os diários. Além disso, há muita ação, mesmo com apenas uma personagem em boa parte das cenas. Pela perspectiva contemporânea da crítica literária, “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” é um típico romance de formação (termo inexistente na época, mas que cai como uma luva para que os leitores modernos compreendam o conteúdo dessa obra de Defoe). Em outras palavras, estamos diante de um título que pode ser visto até hoje, três séculos depois de sua publicação, como uma narrativa bastante atual.
É verdade que, nos últimos cinquenta anos, “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” passou por um processo comum a boa parte das obras clássicas – ele se tornou um texto mais dirigido para o público jovem do que para o público adulto. Sinceramente, não sei explicar o motivo de tantos livros canônicos adquirirem esse verniz infantojuvenil (quando foram lançados, eles eram evidentemente direcionados aos leitores mais velhos e não aos leitores mais jovens). O que sei dizer é que vários exemplares da literatura brasileira e da literatura internacional passaram/passam por esse fenômeno.
Nesse caso, “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” está lado a lado com “Meu Pé de Laranja Lima” (Melhoramentos), obra-prima do brasileiro José Mauro de Vasconcelos, “Anne de Green Gables” (Lafonte), romance da canadense Lucy Maud Montgomery que deu origem a uma longa série literária, “A Ilha do Tesouro” (Principis), clássico de aventura do escocês R. L. Stevenson, todos os contos dos (alemães) irmãos Grimm, “O Pequeno Príncipe” (Agir), fábula do francês Antoine de Saint-Exupéry, “As Aventuras de Tom Sawyer” (Ática), clássico do norte-americano Mark Twain, e “Mogli – O Menino Lobo” (WMF Martins Fontes), um dos textos mais conhecidos do indo-britânico Rudyard Kipling. Repare que tive o cuidado de trazer exemplares de vários países – o que mostra o quão universal é essa dinâmica de muitos clássicos se tornarem, após algum tempo, obras infantojuvenis.
Curiosamente, no Brasil, a principal obra de Daniel Defoe ganhou vários nomes e subtítulos, além de incontáveis adaptações. Podemos encontrar esse livro como “Robinson Crusoé” (Penguin Companhia), “As Aventuras de Robinson Crusoé” (Paulus), “Robinson Crusoé” (Ebu), “Robinson Crusoé – Edição Comentada e Ilustrada” (Clássicos Zahar), “Robinson Crusoé” (Autêntica) etc. Opções não faltam. Em versão ilustrada (mais amigável para os públicos infantil e infantojuvenil), temos uma variedade ainda maior de publicações: “Robinson Crusoé – A Aventura de Um Náufrago numa Ilha Deserta” (Companhia das Letrinhas) com ilustração de Julek Heller; “Robinson Crusoé” (Salamandra) com ilustração de Christopher Gaultier; e “Robinson Crusoé – A Conquista do Mundo numa Ilha” (Scipione) com ilustração de Werner Zotz. Isso sem contar as obras independentes de outros autores que foram inspiradas diretamente em “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé”. De cabeça, posso citar “Robinson” (Companhia das Letrinhas), de Peter Sís, e “Robinson Crusoé e Seus Amigos” (Editora 34), a recente coleção poética de Leonardo Gandolfi.
Para essa releitura do clássico de Defoe, escolhi a edição da Principis, selo da Editora Ciranda Cultural. Minha decisão por essa publicação se baseou em três fatores: (1) tipo de tradução, (2) projeto gráfico e (3) proposta editorial. A versão para o português de “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” foi feita por Silvio Antunha, um dos mais experientes profissionais do mercado editorial brasileiro. Fazendo traduções do inglês, espanhol, francês e italiano há mais de 25 anos, Antunha já participou de mais de três centenas de lançamentos.
E como sei da excelência de seu trabalho nesse livro?! Ora, ele foi um dos poucos tradutores que teve a preocupação de se aproximar do nome original do romance: “The Life and Strange Surprizing Adventures of Robinson Crusoe of York, Mariner”. Deixar apenas “Robinson Crusoé” no título, como feito por muitos tradutores e editoras ao longo do tempo, me parece errado quando o enfoque é a parte inicial da trama e não o conjunto das duas partes iniciais da obra (“The Life and Strange Surprizing Adventures of Robinson Crusoe of York, Mariner” e “The Farther Adventures of Robinson Crusoe”). Muitos livros chamados de “Robinson Crusoé” correspondem apenas a seção de “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé”.
Além da ótima tradução de Silvio Antunha, temos aqui um projeto gráfico honesto (capa bonita e miolo interessante – pequenos elementos gráficos na abertura dos capítulos e, em alguns momentos, transformação do texto em brincadeiras narrativas) e uma proposta editorial que valoriza o bolso dos leitores. Para quem não sabe, a Principis pratica uma política de preço popular, algo raro no mercado editorial brasileiro. Se eu não estiver enganado, acho que paguei exatamente R$ 10,00 nesse livro em janeiro de 2020. Adquire “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” em uma rede de livrarias de desconto, dessas que encontramos em vários shoppings da cidade de São Paulo. Sim, comprei o romance de Daniel Defoe pouco antes da pandemia. Será que estava imaginando o que vivenciaríamos logo depois?! Que medo de pensar nisso, meu Deus!!!
O enredo de “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” começa com o narrador-protagonista se apresentando ao leitor. Filho de um comerciante estrangeiro que enriqueceu no Reino Unido e de uma inglesa de boa família, Robinson Kreutznaer nasceu em York, em 1632. Por causa do sobrenome gringo de difícil pronúncia, seus parentes sempre se apresentaram como Crusoé, adaptação mais fácil de dizer do sobrenome. Caçula de três irmãos, Robinson Crusoé teve excelente educação. O pai desejava que ele se tornasse advogado e assumisse o controle dos negócios do clã, já que os irmãos não aceitaram tal incumbência. Todavia, o rapaz, aos 18 anos, queria uma vida mais aventureira. Seu sonho era viajar pelos mares do planeta e conhecer terras distantes. Esse choque de visões provocou algumas discussões em casa. O pai não queria que o filho se lançasse por esse mundão, alertando-o dos perigos e das desgraças que os viajantes estavam suscetíveis. Por sua vez, o filho não queria a rotina imposta pelo pai, de um trabalho burocrático apesar de rentável.
Aos 19 anos, Robinson fugiu de casa. Em setembro de 1651, ele embarcou em um navio de Hull para Londres. Na capital inglesa, ele iria ver para onde iria. Desde o começo da aventura, o jovem ficou com a sensação de estar desagradando a Deus e ao pai. Afinal, sua escapada do lar era uma punhalada na família que não se cansara de alertá-lo para os riscos da vida inconsequente que ele tanto ansiava. Essa impressão de que Robinson Crusoé estaria pecando aumentou na primeira noite de viagem. Uma forte tempestade quase derrubou a embarcação. Alguns dias depois, a desgraça se concretizou. Em uma tempestade ainda maior, o navio naufragou em Yarmouth Roads. O mal só não foi maior porque o itinerário era perto da costa e os tripulantes se salvaram com a ajuda dos moradores locais.
Já em terra, o protagonista contou sua história para o capitão da embarcação que acabara de afundar. Ao ouvir sobre as brigas de pai e filho e as ameaças feitas pelo Sr. Crusoé, o comandante foi categórico: Robinson deveria retornar imediatamente para sua casa em York e nunca mais colocar os pés em um navio. Se ele naufragara na primeira viagem, não havia melhor indicativo de que seu destino não estava no mar, conforme alertado várias vezes pelo zeloso pai. Sem dar ouvidos ao que o experiente capitão dizia, Robinson Crusoé seguiu para Londres por via terrestre e lá se alistou em um navio que iria para Guiné. Na nova jornada, maior e mais perigosa, não ocorreram acidentes. Acredite se quiser – a embarcação foi à África e retornou para Londres sem nenhum problema.
Empolgado com o fim da maldição que parecia persegui-lo, Robinson Crusoé decidiu repetir a viagem para Guiné. Contudo, nessa segunda jornada do jovem aventureiro as coisas não saíram conforme o planejado. Ainda nas Canárias, o navio foi atacado por corsários turcos. Capturado pelos piratas, que mataram quase toda a tripulação, Robinson virou escravo do capitão inimigo. Assim, ele viveu por dois anos em Sallé, a localidade no litoral marroquino habitada pelos corsários. A escravidão só terminou quando o protagonista conseguiu roubar um barco e fugir para o alto-mar. À deriva no oceano, o rapaz foi resgatado por um capitão português que rumava para o Brasil.
Ao chegar à colônia portuguesa na América do Sul, Robinson Crusoé fixou residência ali. Na Bahia, ele comprou terras e passou a plantar cana de açúcar e tabaco. A vida como fazendeiro durou aproximadamente quatro anos. Nesse período, ele conseguiu prosperar e se integrar razoavelmente bem à sociedade colonial brasileira. Entretanto, a vontade de vivenciar novas aventuras marítimas não cessava dentro dele. Aproveitando-se que os latifundiários locais precisavam de grande quantidade de escravos, Robinson aceitou embarcar mais uma vez rumo a Guiné. A nova viagem buscaria negros para serem usados como mão de obra nas fazendas brasileiras. Exatamente oito anos depois da saída de York, em setembro de 1959, Robinson Crusoé, agora com 27 anos, ganhava mais uma vez os mares.
Após algumas semanas no Oceano Atlântico, a embarcação proveniente do Brasil sofreu, adivinhe, com fortes intempéries climáticas. Ao invés de levar o navio em direção à África, os fortes ventos jogaram a embarcação para a costa caribenha. A situação se agravou ainda mais em uma noite calamitosa. Uma tempestade raramente vista se formou na América Central. Vendo que o navio estava prestes a se desintegrar e afundar, a tripulação atirou-se desesperadamente ao mar. Resumo da ópera: Robinson Crusoé conseguiu nadar até uma ilha e foi o único sobrevivente do naufrágio. Todos os seus colegas morreram afogados.
Se por um lado a personagem central do romance estava feliz de estar viva, por outro lado o rapaz estava angustiado por se ver sozinho em uma localidade tropical e desabitada do Caribe. O que fazer nessa situação, hein?! Sem tempo para lamentações, Robinson começou a construir uma casa assim que o clima melhorou – depois da tempestade, você sabe o que vem, né? Para tal, o jovem inglês usou os destroços e os materiais (alimentos, ferramentas, roupas, armas, pólvora, sementes, animais, mobílias e bagagens dos demais tripulantes) retirados mais tarde do navio, que acabara não afundando de imediato e ficara mais ou menos próximo do litoral. Dessa maneira, ele tinha uma farta quantidade e uma boa variedade de recursos para as primeiras semanas na ilha.
Iniciava, assim, a jornada emocionante de vários e vários e vários e vários e vários e vários e vários e vários e vários anos do mais famoso náufrago da literatura universal. Sozinho em um pedaço de terra esquecido por Deus e não frequentado pelos demais homens, o bravo Robinson transformou aquela ilha em seu reino, com certo conforto, muita fartura e bastante segurança. O que mais poderíamos desejar nessa situação, né?
Com 320 páginas, “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” é um romance de tamanho mediano. Ele possui vinte capítulos e demanda entre dez e onze horas de leitura. Pelo menos foi esse o tempo que a obra de Defoe me consumiu no final de semana passado. Naturalmente, os leitores infantojuvenis podem precisar de mais tempo. Para quem tem grande fôlego literário, é possível percorrer integralmente o conteúdo dessa publicação em um único dia. Porém, acredito que seja mais indicado fracionar a leitura em dois ou três dias. No meu caso, usei as tardes e as noites do último sábado e domingo para isso. Praticamente li metade do livro em um dia e a outra metade no outro dia.
Os dois aspectos que mais chamaram minha atenção nessa releitura do clássico de Daniel Defoe foram o ritmo narrativo impecável do romance e o conflito de natureza psicológica que tanto atormentou o protagonista. Em relação ao primeiro elemento narrativo, admito que fiquei encantado com o dinamismo da história de “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé”. Da primeira à última página, temos muita ação. Nem mesmo quando o náufrago fica sozinho na ilha perdida do Oceano Atlântico, temos cenas banais ou relatos monótonos. Assistir às peripécias do jovem aventureiro para sobreviver na ilha e, principalmente, para estabelecer ali uma vida mais ou menos parecida a que ele tinha na Inglaterra é saborosíssima. Diferentemente do que o leitor mais pragmático poderia pensar, tudo acontece de maneira ágil e emocionante nessa obra-prima da literatura inglesa.
Parte do segredo dessa agilidade narrativa está na sucessão de conflitos propostos por Defoe. Os obstáculos que Robinson Crusoé enfrenta são variados e parecem mudar de um capítulo para outro: oposição da família, maldição que ele acredita ter origem divina, tempestades em alto-mar, violência dos piratas, escravidão ao ser capturado por corsários turcos, semanas à deriva no oceano, perigo de sofrer ataques de criaturas selvagens e desconhecidas, riscos de empreender na colônia, terremotos na ilha deserta, doenças tropicais (malária, por exemplo), desafio de construir uma civilização sozinho e sem tantos recursos etc. Se você é escritor(a) e quer ter uma excelente aula de como desenvolver um texto ficcional ágil, dinâmico e sedutor, leia esse livro. Dificilmente você encontrará uma aula melhor do que a ministrada pelas páginas de “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” na maioria das prateleiras das bibliotecas e livrarias.
Quando o assunto é conflito psicológico, confesso que não tinha me atentado para esse aspecto na minha primeira leitura (pelo menos eu não me lembrava dessa particularidade). Robinson Crusoé é uma pessoa atormentada, muuuuito atormentada. Ele decide se lançar aos mares em oposição aos pedidos insistentes do pai que o quer por perto e trabalhando nos negócios da família. Por isso mesmo, o mais célebre protagonista da literatura de Daniel Defoe carrega uma forte culpa dentro de si. Essa sensação de estar apunhalando o pai e os parentes cresce quando Robinson nota a quantidade absurda de eventos trágicos que vivencia. Por que ele estaria passando por tanto sofrimento?! Logo a explicação aparece em sua mente: Deus está punindo-o por seus pecados. Segundo suas palavras, o Todo Poderoso estaria penalizando-o por “desafiar a Providência”.
Lembro que a primeira vez que li “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” não gostei desse teor religioso das confidências do narrador-personagem. Como um bom ateu que sempre fui, me pareceu bem piegas essa menção insistente aos desígnios divinos. Entretanto, após essa releitura da obra de Daniel Defoe, entendi perfeitamente a opção do escritor inglês por insistir na tensão psicológica de Robinson Crusoé com o Todo Poderoso. Parte do charme da trama está na dicotomia Deus ajuda versus Deus atrapalha. Repare nisso. Há passagens em que o protagonista acredita estar sendo punido pelos Céus. Em outras, ele acha que está sendo agraciado pelas Forças Superiores. Curiosamente, um mesmo episódio pode ser encarado das duas formas. Deus enviou uma tempestade que afundou o navio. Deus salvou-o da tempestade que destruiu a embarcação e matou os demais tripulantes. Deus o isolou em uma ilha deserta. E Deus o ajudou a construir uma vida digna, próspera e satisfatória longe da civilização. Se pensarmos bem, esse é o velho jogo retórico que todas as religiões monoteístas aplicam para convencer seus fiéis da clemência divina.
De qualquer maneira, achei interessante esse conflito psicológico. A relação contraditória com Deus é um dos charmes dessa narrativa. À medida que as coisas parecem piorar para Robinson Crusoé, ele se apega mais e mais à religião. Não demora para o rapaz começar a ler a Bíblia e agradecer aos Céus a cada Providência. Sua devoção religiosa fica explícita na citação a passagens bíblicas: Jonas e o navio de Társis; Salomão e o Templo de Jerusalém; Elias e os corvos etc. Vale a pena dizer que quando “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” foi publicado, não tínhamos dramas psicológicos tão intensos e frequentes na literatura ficcional nem a menção tão explícita aos desígnios cristãos. Essas são justamente duas das novidades trazidas por Defoe.
Além do debate religioso (Deus atrapalha ou ajuda?!), esse romance reserva boas reflexões existencialistas. Uso esse termo mesmo sabendo que quando Daniel Defoe escreveu a história de Robinson Crusoé não tínhamos tal corrente filosófica. Os melhores questionamentos propostos nesse livro são: o quão entediante pode ser o dia a dia de quem está na “posição de vida intermediária”?; vale a pena largar a segurança da rotina burguesa para se lançar em aventuras imprevisíveis?; o que faz efetivamente uma pessoa ser considerada rica e poderosa?; é possível ser feliz longe do progresso e da civilização?; e o que move as pessoas independentemente do cenário externo e da influência social?
Além de algumas divagações existencialistas de bom nível, “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” tem forte conteúdo moral. Confesso que não costumo gostar desse tipo de abordagem, mas aqui essa característica até que caiu bem. Pelo menos ela é pertinente ao contexto geral da narrativa e ao drama psicológico do protagonista. Por ter desagradado ao pai assim que entrou na maioridade, Robinson Crusoé vive com dor na consciência. Não à toa, o rapaz vê cada fato trágico de sua trajetória como uma consequência das decisões erradas que tomou lá atrás.
Por uma perspectiva social, Robinson seria a versão inglesa e do século XVIII dos protagonistas de Jack Kerouac. A vontade que a personagem de Daniel Defoe tem de desagradar a família e ganhar a estrada (no caso, adentrar o mar!) é muito similar à disposição que Sal Paradise, de “On The Road” (L&PM Editores), Leo Percepied, de “Os Subterrâneos” (L&PM Editores), Ray Smith, de “Os Vagabundos Iluminados” (L&PM Editores), e Jack Duluoz, de "Big Sur" (L&PM Editores) tinham de polemizar. Em termos práticos, Robinson Crusoé pode ser visto como um simples arruaceiro, por mais que suas condutas posteriores provem que ele conseguiu “se regenerar” (algo que nenhuma personagem central de Jack Kerouac sequer almejou). Uma vez na ilha deserta, Robinson Crusoé pode ser visto, por uma perspectiva literário-filosófica, como o homem civilizado que precisou regredir ao patamar do mito do bom selvagem, conceito criado mais tarde por Jean-Jacques Rousseau.
A narração de “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” foi construída em primeira pessoa e foi estabelecida em um período posterior aos acontecimentos relatados. Ou seja, temos aqui certo tom de memória. A impressão é de estarmos assistindo às confidências do protagonista. Se hoje em dia esse expediente é o padrão literário em voga, quando Defoe usou essa técnica ela não era tão usada, apesar de já ter sido aplicada na Antiguidade Clássica – lembremos das epopeias gregas. Essa característica dá um jeitão de texto moderno ao livro do romancista inglês.
Outra questão que adorei foi a forte verossimilhança da narrativa. Não há passagem do romance em que o leitor mais exigente pense: opa, isso é impossível, o autor viajou na maionese nessa parte. Não! O relato do náufrago é bem pertinente. Até mesmo quando Robinson Crusoé constrói (cuidado, aí vai um pequeno spoiler!) sozinho uma pequena cidade na ilha deserta, as explicações são plausíveis. Nota-se o cuidado de Daniel Defoe em pontuar a evolução da vida da personagem na América Central. Ao invés de ser monótono ou enfadonho, esses trechos de como o rapaz solitário se vira na ilha são muito interessantes. É verdade que em alguns momentos o náufrago dá uma de MacGyver – com uma lasca de madeira e um fiapo de tecido, ele cria uma nave espacial e sobrevoa metade do espaço sideral. Mesmo assim, não podemos dizer que há erros narrativos. Um exagero aqui e outro acolá são aceitáveis. O que seria da ficção literária sem um ou outro exagerinho, né?
Para os leitores brasileiros, “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” tem outro grande atrativo. Podemos acompanhar parte dessa trama clássica de Daniel Defoe se desenrolando em nosso país. E nota-se que o escritor inglês foi bem realista ao descrever o Brasil Colonial. Além disso, a passagem pelas terras baianas foi fundamental para a consistência narrativa do romance. Os dois anos em que Robinson Crusoé viveu como fazendeiro de cana de açúcar e tabaco ajudaram-no a amadurecer. Sem a rotina de mão na terra no Brasil, talvez ele não teria tanta desenvoltura quando precisasse se virar sozinho na ilha caribenha.
Os únicos aspectos negativos desse livro são a visão colonial europeia (algo comum entre os séculos XIV e XIX) e os vários preconceitos contidos nas entrelinhas da trama (outra coisa típica do período da produção dessa história). Para os olhos dos leitores contemporâneos, causa certo arrepio (para não dizer perplexidade!) a postura predatória e arrogante do europeu que viaja o mundo se apropriando de tudo e de todos. Aonde Robinson Crusoé chega, ele se coloca na posição de dono das riquezas materiais e humanas do lugar. Não por acaso, ele se intitula o rei da ilha descoberta. Pelo seu ponto de vista, as pessoas que não são brancas e europeias são selvagens. Por isso, é aceitável escravizá-las. Todas as sociedades e culturas fora do Velho Continente são primitivas e precisam ser domesticadas a qualquer custo.
Os preconceitos não param por aí. Os negros são vistos como mera mão de obra para as fazendas brasileiras (o protagonista de “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé” chegou a se integrar ao tráfico negreiro que operou no Oceano Atlântico no período colonial brasileiro). Por sua vez, os indígenas sul-americanos e as tribos africanas são descritos como canibais e figuras pouco confiáveis. Não é preciso dizer com todas as letras que nosso personagem principal é racista, né? Por falar em preconceitos, causa certo desconforto a ausência de personagens femininas nessa narrativa. A única que aparece (e bem pontualmente) é a mãe de Robinson Crusoé (no comecinho do livro, ela surge para apoiar sem pestanejar as decisões do marido). Onde estão as mulheres, Santo Deus?! Saiba que será difícil achá-las nessa trama, meu(minha) caro(a) leitor(a) do Bonas Histórias.
Antes que alguém queira queimar o clássico de Daniel Defoe em praça pública ou pense em bloqueá-lo para todo o sempre, peço calma. Inspire. Expire. Inspire. Expire. Inspire. Expire. Isso, isso mesmo. Muito bem! Continue respirando pausadamente. Lembre-se que esse é um texto de pouco mais de 300 anos. Acho perfeitamente normal ele conter a ideologia e as crenças da sociedade europeia daquela época. Estranho seria se alguém, hoje em dia, continuasse pensando dessa maneira, né? Essa visão colonial, predatória, racista e machista é totalmente condizente com o período de produção de “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé”. Não é possível apagarmos a história. E, nesse sentido, é legal assistirmos ao tipo de mentalidade que a sociedade que se dizia o farol da humanidade tinha lá atrás. Parte do processo evolutivo passa pela compreensão dos acertos e, também, dos erros ao longo do tempo.
Por tudo isso, gostei muito dessa leitura. Acho que a aproveitei mais agora do que da primeira vez. E quanto a questão que norteou essa minha nova experiência de leitura de “A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé”, hein? Afinal, é possível compararmos a rotina do náufrago solitário na ilha tropical com a realidade vivenciada na quarentena da Covid-19?! De tão despropositada que é essa pergunta, me recuso a respondê-la de forma objetiva. Leia você mesmo(a) o livro de Daniel Defoe e associe o que Robinson Crusoé passou e fez nas duas décadas na ilha caribenha com o que você passou e fez na reclusão da pandemia. Acho que não há comparação.
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