Publicada em março de 2022 e lançada oficialmente no último final de semana, a oitava obra do escritor português reúne pequenos dramas sentimentais de enorme força dramática.
Trago boas novas à coluna Livros – Crítica Literária. Falarei, hoje, mais uma vez de literatura portuguesa. Nesse final de semana, li “A Verdade e a Vertigem” (Emporium), a nova obra ficcional de José Vieira. E admito que fiquei encantado com seu conteúdo. Publicada em março de 2022 e lançada oficialmente no último sábado na Ilha da Madeira, essa coletânea de contos é a oitava publicação do autor português. Na verdade, o correto seria dizer autora portuguesa. José Vieira é o pseudônimo da jovem madeirense Teresa Vieira Lobo, um dos bons nomes da novíssima geração da ficção lusitana. Os leitores mais assíduos do Bonas Histórias já conhecem o trabalho literário de Teresa. Em dezembro de 2020, comentei por aqui “A Dor do Esquecimento” (Chiado Books), o livro anterior de José Vieira/Teresa Vieira Lobo. Se o título antecedente era uma novela com um suspense psicológico claudicante, agora temos uma potente coleção de pequenas narrativas que enfoca de maneira singular e ácida os dramas sentimentais.
Para quem está familiarizado com o portfólio artístico de José Vieira, a grande novidade de “A Verdade e a Vertigem” está na dimensão das histórias recém-publicadas. Ao invés das tramas amorosas que percorrem uma dezena de páginas, temos agora dramas exibidos em poucos parágrafos, às vezes em pouquíssimas linhas. Em muitos casos, os contos de “A Verdade e a Vertigem” adquirem as características de minicontos. A maior compactação narrativa é justamente o maior mérito do livro. As histórias dessa coleção possuem grande força ao ponto de desconcertar quem as lê. Elas atuam como legítimos tapas na cara dos leitores – vem rápido, mas sua sensação pode perdurar por algum tempo. Nessa obra, assistimos à realidade nua e crua das alegrias e, principalmente, das desilusões sentimentais. Jamais José Vieira/Teresa Vieira Lobo foi tão corrosivo e potente como dessa vez. Prepare-se, portanto, para uma aventura pelo lado sombrio do coração humano e pelas melhores narrativas do(a) escritor(a).
Antes de detalhar as qualidades (que não são poucas!) de “A Verdade e a Vertigem”, quero falar um pouco de sua autora. Teresa Vieira Lobo nasceu em 1989 em Gaula, bairro da cidade de Santa Cruz, na paradisíaca (e sempre querida) Ilha da Madeira. Entre 2007 e 2012, a escritora morou na capital portuguesa, onde concluiu a licenciatura em Ciência Política e o mestrado em Relações Internacionais pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa (ISCSP-UTL). Uma vez concluído os estudos no continente, ela retornou para sua terra natal, onde mora desde então. Atualmente, Teresa trabalha no departamento de contabilidade de uma empresa de turismo e vive com o namorado, as duas enteadas e uma dupla de cães.
Apaixonada desde pequena por literatura, Teresa Vieira Lobo é aquele tipo de pessoa viciada em livros. Ela não consegue, por exemplo, entrar em uma livraria e sair sem uma sacolinha com novos títulos (drama que os leitores do Bonas Histórias entendem bem). A escolha por assinar suas obras com o nome de José Vieira surgiu naturalmente e meio que por acaso. Ao participar de um concurso literário, Teresa precisava remeter os originais com um pseudônimo (uma praxe desse tipo de evento). Aí surgiu a ideia de homenagear o avô materno, um dos grandes incentivadores para que ela mergulhasse na literatura seja no papel de leitora, seja na função de escritora. A partir daí, a jovem portuguesa passou a sempre assinar seus trabalhos literários como José Vieira, algo que não pretende mudar. Se essa escolha pode parecer estranha para os olhos dos leitores, saiba que para Teresa essa opção é bem tranquila. Extremamente discreta e tímida, a autora não se importa com a badalação e os holofotes que muitas vezes o fazer literário proporciona. Seria ela uma versão lusitana e menos radical de Elena Ferrante?! Eu apostaria que sim.
Fã de José Saramago, Jane Austen e Jorge Amado, Teresa Vieira Lobo tem atualmente em seu portfólio quatro coletâneas de contos, duas novelas, uma antologia poética e um romance. Sua obra de estreia foi “Estranhas Coincidências” (Chiado Editora), coleção de quatro narrativas curtas publicada em 2014. Na sequência, vieram: “Dedicação, Palavra e Honra” (ebook independente), romance histórico de 2016; “Adágios” (Chiado Editora), coletânea de cinco contos de 2017; “(In)Constante” (ebook independente), antologia de poemas de 2018; e “Paralelismos” (ebook independente), coleção de três contos de 2018. Mais recentemente, Teresa/José Vieira publicou “Alecrim” (ebook independente), novela de 2019, e “A Dor do Esquecimento”, novela de 2020. Portanto, “A Verdade e a Vertigem” é sua oitava publicação e sua quarta coletânea de contos.
As tramas de “A Verdade e a Vertigem” levaram menos de um ano para serem desenvolvidas. Teresa começou a escrevê-las no meio de 2019 e terminou a versão inicial do livro em meados de 2020. Para finalizar as histórias, foram necessários outros seis meses entre revisões técnicas e gramaticais. Depois disso, o trabalho da escritora se voltou para a busca de uma editora que pudesse valorizar a obra como ela merecia.
Curiosamente, a pandemia do novo coronavírus alterou o jeito da escritora em produzir seus textos. Se antes ela trabalhava invariavelmente no computador, agora Teresa prefere carregar uma caneta e um caderno de capa preta para onde vai. Assim, pode escrever em qualquer lugar, o que permite dar vazão às ideias que insistem em aparecer sem avisar e a otimizar o tempo. Os insights para as narrativas surgem de uma palavra captada aleatoriamente, uma cena cotidiana, uma imagem instigante, uma conversa inusitada ou mesmo de uma reflexão pessoal. Depois, é só retornar para casa e lapidar as tramas garimpadas na rua. Desde que começou a usar o caderno, a autora não passa um dia sem traçar algo novo nas páginas dele. Incrível, né? Ela segue, intuitiva ou premeditadamente (não sei precisar), os conselhos do bom e velho Saramago. Em entrevistas, o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1998 dizia: “Tenho uma disciplina que consiste em escrever duas páginas diárias”. Para ele, um bom escritor não podia desgarrar de seus textos um dia sequer.
O título do novo livro foi definido tão logo a escritora madeirense começou a produzir os contos. Em julho de 2019, Teresa Vieira Lobo foi assistir ao show de Carminho com a Orquestra Clássica da Madeira em Machico. Entre uma música e outra, a fadista falava com o público. E em uma dessas intervenções, Carminho comentou algo que envolvia a relação entre a verdade e a vertigem. Imediatamente, Teresa soube que aquele seria o nome da recém-iniciada coleção de narrativas. Não apenas o título estava definido como a proposta central da nova obra estava delineada. “Verdade e a Vertigem” trataria das alegrias e, acima de tudo, das agruras de se relacionar amorosamente.
Para lançar a nova obra, Teresa Vieira Lobo preferiu mudar de editora. Dessa maneira, saiu de cena sua antiga parceira, a tradicional e lisboeta Chiado Books, e entrou em ação uma nova parceira, a jovem e almadense Emporium Editora. A alteração parece ter sido providencial. O resultado de “A Verdade e a Vertigem” encanta até mesmo os leitores mais exigentes. Eu fiquei maravilhado com o conteúdo e com o projeto gráfico desse livro.
Publicado em março, “Verdade e a Vertigem” só foi lançado oficialmente na Ilha da Madeira no último final de semana. O evento de lançamento foi realizado no sábado, 7 de maio, na Casa do Povo de Gaula e contou com a apresentação da professora Júlia Caré e com a presença da também escritora madeirense Valentina Silva Pereira, além é claro de Teresa Vieira Lobo. Enquanto o público degustava um coquetel regado a vinho Madeira e com broas de mel típicas da região, Teresa comandou a sessão de autógrafos.
“A Verdade e a Vertigem” possui 25 contos e 42 páginas. Com extensões que vão de meia página a duas páginas (portanto, alguns textos podem ser classificados como minicontos), as narrativas do livro são: (1) “Triste Ventura”, (2) “Adágio”, (3) “Prova de Amor”, (4) “Casualidade”, (5) “Pintassilgo”, (6) “Bem-me-quer”, (7) “Sufoco”, (8) “Encandeamento”, (9) “Febre”, (10) “Boneca de Porcelana”, (11) “Ironias”, (12) “Vidas Opostas”, (13) “África”, (14) “Em Nome da Cruz”, (15) “Uma Pequena Hora”, (16) “Olho por Olho”, (17) “Ómega”, (18) “O Esquecimento”, (19) “A Inconstância do Querer”, (20) “Deus dá Nozes”, (21) “Luto”, (22) “Amor Austero”, (23) “Marcha Atrás”, (24) “Doce Menina” e (25) “Epílogo”. Levei pouco menos de uma hora para concluir essa leitura no último final de semana. Dá para ler “A Verdade e a Vertigem” em um fôlego só.
No conto que abre a coletânea, “Triste Ventura”, Maria é uma moça de coração puro. O problema é que ela está literalmente morrendo de amor. Em “Adágio”, uma mulher se apaixona explosivamente depois de muito tempo sozinha. “Prova de Amor”, a terceira trama de “A Verdade e a Vertigem”, descreve as reflexões sinceras de uma noiva que fora abandonada no altar. “Casualidade” mostra o relacionamento de duas pessoas com características opostas. Apesar das várias diferenças, elas se apaixonam para valer. Em “Pintassilgo”, Salomé chora a morte do marido enquanto olha para o mar. E em “Bem-me-quer”, Antónia decide seu destino amoroso despedaçando pétalas de uma margarida.
“Sufoco”, o sétimo conto da nova obra de José Vieira, apresenta o banho de Simão. Enquanto toma uma ducha, ele aproveita o raro momento de sossego em casa para meditar sobre sua vida. “Encandeamento” mostra a briga de um casal. Após mais uma discussão por causa dos ciúmes dele, ela pega o carro e parte em disparada para longe. Em “Febre”, Clara sofre com a insônia. A noite mal dormida é fruto do terrível dia que a moça teve. “Boneca de Porcelana” é protagonizado por Ester, uma mulher de 40 anos. Criada para se manter sempre calada e nunca opinar, ela acumula algumas conquistas, mas também possui várias frustrações. “Ironias” é a décima primeira história de “A Verdade e a Vertigem”. Nessa página, Rafael se emociona ao ver sua amada entrando linda pela porta da igreja. Definitivamente, ela é o amor de sua vida. Em “Vidas Opostas”, Tomé não se importa com o fato de sua nova paixão já ter um filho. Mesmo sabendo que ela já fora casada, ele a convida para morarem juntos.
“África” narra o drama de um jovem soldado português. Aos 18 anos, ele abandona o aconchego do lar materno e o carinho dos braços da namorada para guerrear em Angola. No enredo de “Em Nome da Cruz”, Maria casou-se com José graças a uma promessa feita a Santo Antônio. Contudo, ela se esqueceu, depois do matrimônio, de cumprir sua parte na graça alcançada. Em “Uma Pequena Hora”, o décimo quinto conto de “A Verdade e a Vertigem”, assistimos ao drama da gravidez de Madalena. Devido a viagem a negócios do marido Augusto, ela seguirá sozinha para o hospital para o parto do primogênito do casal. “Olho por Olho” relata o dia catártico de Sebastião. Nessa data, ele irá para o trabalho e não aceitará os desaforos da chefe mal-educada. Em “Ómega”, Miguel e Ana estão casados há vinte anos. Agora aos 40 anos de idade, o casal repara que a paixão já esvaiu. O que fazer, então, para reativar o fogo da antiga paixão? E em “O Esquecimento”, N. morreu aos 80 e poucos anos. Entretanto, há mais de duas décadas, ela levava uma vida de esquecimentos.
A décima nona narrativa da coletânea é “A Inconstância do Querer”. Aqui, acompanhamos a concretização do sonho de Margarida. Mais do que tudo nesse mundo, ela desejava se casar com Afonso. Os problemas surgem depois que ela desce do altar. “Deus dá Nozes” mostra a fuga de um jovem de sua terra natal, uma localidade pobre e rural. Ele quer ir para a cidade, um lugar em que acredita ser mais moderno e próspero. Em “Luto”, Bela chega em casa após enterrar o marido e já vai para o telefone. A primeira coisa que a nova viúva faz é ligar para uma agência de turismo. E em “Amor Austero”, acompanhamos um pai sensível e amoroso. Apesar de nunca ter recebido muito carinho de seus progenitores, ele tem um jeito especial de cuidar de seus filhos.
“Marcha Atrás” é o antepenúltimo conto dessa publicação de José Vieira. Nele, vemos a concretização do grande projeto de vida da protagonista: se casar com o homem que tanto ama. Em “Doce Menina”, assistimos a uma moça criada com muito amor e carinho pela família. Sua meiguice, bondade e ingenuidade são, contudo, totalmente contraproducentes no mundo contemporâneo. Por fim, “Epílogo” mostra a ideia que a escritora teve para o título de sua nova obra. Em um show de Carminho na Ilha da Madeira, a fadista usou a expressão “a verdade e a vertigem”, o que despertou a atenção na autora ficcional.
Eu, que já era fã da literatura de José Vieira (vou me referir a partir de agora ao autor pelo pseudônimo, conforme está grafado nas capas das publicações), tinha como meus livros favoritos do madeirense “Dedicação, Palavra e Honra” e “Paralelismos”. Isso até “A Verdade e a Vertigem”. O novo título de Vieira está em um patamar mais elevado de qualidade. Ouso dizer que o escritor atingiu aqui a maturidade artística. Se as obras anteriores eram na maioria das vezes boas tramas ficcionais, a recente é um ótimo drama literário. Não irei me surpreender se por um acaso “A Verdade e a Vertigem” conquistar algum prêmio literário em Portugal ou mesmo ser finalista em importantes honrarias do mercado editorial em língua portuguesa. Condições para alçar voos maiores essa coletânea de pequenas narrativas tem.
A primeira questão que chamou minha atenção nessa leitura foi o primor dos minicontos apresentados por José Vieira. Saiba que não é nada fácil produzir mininarrativas. Exatamente por isso, é raro encontrarmos boas coleções de histórias que se utilizam das estruturas enxutas desse gênero literário. Se li meia dúzia de ótimos livros com essa característica em minha vida acho que foi muito. Geralmente, a coletânea de minicontos dá à publicação uma pegada de experimentalismo e de excentricidade, o que nem sempre é uma experiência agradável para o leitor médio. Um bom exemplo do que estou dizendo é “Histórias de Cronópios e de Famas” (Best Seller), a publicação clássica do argentino Julio Cortázar que encanta mais pela ousadia do que pela qualidade das narrativas. Por outro lado, posso citar dois casos bem-sucedidos na literatura brasileira: “O Fluxo Silencioso das Máquinas” (Ateliê Editorial), interessante retrato multifacetado da cidade de São Paulo de Bruno Zeni; e “Os Anões” (Cosac Naify), a coleção tragicômica da espetacular Veronica Stigger.
O que contribuiu significativamente para a excelência dos minicontos (tramas com meia página de extensão) e dos breves contos (histórias com uma ou duas páginas) de “A Verdade e a Vertigem” foi a característica da literatura de José Vieira. O escritor português é conciso na hora de confeccionar suas narrativas e normalmente prefere a sumarização à encenação. Se essa particularidade pode incomodar um pouco nas tramas maiores, que exigem mais fôlego (como os romances e as novelas), ela cai como uma luva nas narrativas menores, de tiro extremamente curto (como os pequenos contos, os minicontos e os microcontos). Aí essa opção estética é perfeita.
Em “A Verdade e a Vertigem”, temos uma coletânea redondinha, redondinha em que o que prevalece é a excelência narrativa (em detrimento ao experimentalismo e à excentricidade tão típicos das coleções de minicontos e de microcontos que vemos por aí). As pequenas histórias de José Vieira sobre os encontros e desencontros amorosos são complexas e profundas apesar das poucas linhas utilizadas para descrevê-las. As tramas desse livro dizem muitas coisas com o mínimo de palavras. Achei esse recurso espetacular! Os dramas sentimentais que assistimos aqui podem até ser enxutos no que se referem ao tamanho das narrativas, mas são gigantescos no aspecto da dimensão dramática.
Meus elogios iniciais a “A Verdade e a Vertigem” se devem principalmente ao duplo efeito que sua leitura nos proporciona. Ao mesmo tempo que somos impactados pelas narrativas individuais (cada história tem inegavelmente seu valor particular), também somos afetados positivamente pelo conjunto das tramas (de modo integral, a coleção ficcional está maravilhosamente azeitada). Como li os 25 minicontos/contos de uma só vez, consegui ver claramente a força da união das narrativas, a continuidade conceitual dos enredos e o efeito estético da obra. Se tivesse que resumir o livro em apenas uma frase, diria que “A Verdade e a Vertigem” é um título de amor no qual se predomina o desamor. Amargo isso, né? Até pode ser amargo (ou ácido), mas do ponto de vista literário o resultado é lindíssimo. Como coletânea narrativa, a mais recente publicação de José Vieira está impecável. Juro que não saberia dizer o que poderia ser feito de substancial para melhorá-la. E olha que eu sou bem chato na hora de propor melhorias aos livros analisados.
Avaliando as narrativas de “A Verdade e a Vertigem” de maneira estrutural, o que mais gostei foi das reviravoltas contidas em grande parte das histórias. E olha que tal característica é dificílima de ser conseguida em minicontos. Afinal, com pouquíssimas linhas, como mudar radicalmente o enredo dramático, né? As tramas que mais gostei são justamente aquelas que oferecem um desfecho surpreendente. Por falar nisso, os meus contos/minicontos favoritos dessa obra são: “Prova de Amor”, “Encandeamento” e “Bem-me-quer”. Eles são excelentes! Também adorei: “Triste Ventura”, “Febre”, “Boneca de Porcelana”, “África”, “Uma Pequena Hora”, “Ómega”, “A Inconstância do Querer”, “Amor Austero” e “Doce Menina”. Eles são ótimos. Ah, também apreciei “Epílogo”. Como fechamento da coletânea, seu texto é perfeito, além de ter um título original (raro para uma coleção de narrativas, mas totalmente compatível com a proposta desse livro).
Além das surpresas dos enredos, mais um aspecto positivo de “A Verdade e a Vertigem” é que os desenlaces de alguns minicontos/contos são do tipo aberto – cabendo ao leitor a interpretação do que aconteceu. Isso pode parecer um detalhezinho, mas não é! Adoro narrativas com finais aparentemente múltiplos. E “A Verdade e a Vertigem” oferece alguns nessa linha. Tradicionalmente, esse expediente literário exige uma segunda leitura ou mesmo uma leitura mais atenta. Só assim para termos certeza de como a história se encerrou.
Outra questão que precisa ser mencionada (e elogiada!) é a variedade de protagonistas das tramas dessa coletânea. Se antes José Vieira focava mais nos dramas sentimentais femininos (geralmente suas personagens centrais eram as esposas, mães e viúvas), aqui ele expande o leque narrativo para outras figuras sociais (homens: maridos, filhos, netos; e outras mulheres: filhas, irmãs, solteironas). Gostei dessa pluralidade de perspectivas. As narrações estão tanto em primeira pessoa quanto em terceira pessoa.
No caso dos textos em terceira pessoa, uma mudança considerável foi a diminuição do tom crítico, opinativo e maniqueísta das histórias. Admito que ficava bastante incomodado quando os narradores dos livros anteriores de José Vieira tentavam nos convencer de suas crenças e suas visões de mundo. Para minha felicidade, o ponto de vista de quem narra não é tão explícito e dirigido a uma determinada sentença em “A Verdade e a Vertigem”. Cabe ao leitor, portanto, chegar por si só à conclusão dos acontecimentos relatados. Em outras palavras, os dramas sentimentais dessa obra são mais indiretos, sutis, versáteis e feitos a partir da realidade específica das personagens. Parte da elevação da qualidade da literatura de Vieira passa exatamente por essa mudança de postura dos narradores (até porque nos minicontos não há espaço para longas reflexões).
Em relação aos enredos dos contos/minicontos de “A Verdade e a Vertigem”, temos a inserção de vários assuntos que ainda não tinham sido explorados com tanta intensidade pelo autor. Gostei muitíssimo das novidades temáticas dessa publicação. José Vieira já vinha trabalhando em seus textos com os encontros e desencontros amorosos, os preconceitos, a religiosidade e o conservadorismo das aldeias portuguesas (o machismo é uma consequência desses três aspectos), a morte muitas vezes trágica, a solidão, o envelhecimento, os dramas históricos (de uma época em que a Ilha da Madeira era paupérrima e muitos de seus habitantes precisaram imigrar) e os matrimônios corroídos pelo tempo. Além de seguir com essa pauta, ele acrescenta os momentos catárticos das personagens (expressos em gritos, choros, telefonemas, suspiros, pesadelos e noites em claro); o assédio moral no trabalho; a homossexualidade/bissexualidade; a gravidez precoce; o segundo casamento; o voyerismo; e o preconceito e o conservadorismo contemporâneos nos ambientes mais cosmopolitas de Portugal (engana-se quem acha que eles estão limitados ao interior do país). Adorei esse complemento. As novas abordagens temáticas (assim como a postura mais pertinente dos narradores) demonstram um escritor maduro ao ponto de tecer elegantemente críticas sociais e comportamentais aos seus conterrâneos.
Ainda na seara dos enredos, repare que José Vieira continua falando das aldeias e dos dramas históricos de Portugal. Ele não abandona o olhar atento e acurado à sua terra natal. Esse ponto foi justamente o que mais me encantou em sua literatura. Como neto de madeirenses, vi parte da trajetória e muitas das dificuldades de meus antepassados sendo retratadas nas narrativas do autor. Seu texto é invariavelmente bonito e sensível, o que me emocionou. O que ele fez agora de diferente foi incluir novos espaços narrativos (Angola, cidade grande, Rio de Janeiro), outros espaços temporais (presente) e mais personagens (homens, outras figuras femininas e estrangeiros). Como consequência, “A Verdade e a Vertigem“ ganhou muito em profundidade dramática e pluralidade narrativa, sem perder as características que fizeram os livros anteriores do escritor tão especiais.
Para os leitores brasileiros, essa obra de José Vieira é ainda mais gostosa porque podemos acompanhar o português de Portugal. Como fã das variantes linguísticas, admito que adoro as peculiaridades da versão original do nosso idioma. As palavras trazidas pelo autor que não são tão usadas pelos brasileiros no dia a dia são: gelato (falamos sorvete), fecho (fechamento), cancro (câncer), duche (ducha), telemóvel (celular) e, principalmente, encandeamento (ofuscamento). Somente esse último termo precisei recorrer ao dicionário (à princípio, achei se tratar de um neologismo, mas não é). Como podemos perceber por essa amostra, dá perfeitamente para entendermos o significado das palavras utilizadas. Exatamente por isso, acredito que não haja a necessidade de qualquer adaptação desse texto para a linguagem dos meus conterrâneos (algo que algumas editoras fazem, principalmente com os livros mais antigos em português de Portugal). E mesmo se mais tarde a Emporium adaptar essa coletânea de contos para o português brasileiro (algo que duvido), minha sugestão é: leia “A Verdade e a Vertigem” na versão original. A leitura é mais rica e prazerosa!
Outro destaque do livro é o seu projeto gráfico. Achei a capa e a diagramação dessa publicação simplesmente lindas. Note a força visual e semiótica do vidro quebrado/trincado na imagem de capa da nova coletânea de contos de José Vieira. Como metáfora para os relacionamentos amorosos que sucumbiram pelo tempo ou pelas circunstâncias naturais da vida (uma pedra que cai e quebra o vidro pode ser uma pessoa diferente que surge, as descobertas pessoais que demoram para se elucidar ou mesmo o peso infindável da rotina matrimonial), essa associação é sublime! Afinal, como consertar um vidro trincado, hein? Difícil, dificílimo! Ao mesmo tempo, a capa vem na cor de burro quando foge (não me venham com a lista da Pantone, com os códigos de RGB, com o padrão CMYK ou com as denominações mais técnicas, para mim essa cor é a de burro quando foge e acabou!), o que torna tudo ainda mais incômodo, instigante e visceral (ninguém minimamente normal gosta da cor de burro quando foge). Por isso mesmo, essas sensações são justamente aquelas que temos durante a leitura das narrativas de “A Verdade e a Vertigem”. Ou seja, o projeto gráfico do livro conversa intimamente com o texto. É ou não é espetacular?!
A impressão que tive é que a Emporium Editora deu um suporte maior para José Vieira e sua nova obra do que a Chiado Books estava dando. Posso estar equivocado? Posso. Porém, essa foi a sensação que tive como leitor, alguém que está distante do processo de publicação. Além de um projeto gráfico interessante, o conteúdo da coletânea de contos também está impecável. Talvez essa simpática união entre visual e texto corrobora ainda mais com a minha percepção de maior apoio dado pela editora a “A Verdade e a Vertigem” e de perfeição do livro. A obra não tem qualquer equívoco narrativo/tropeço textual (algo que normalmente encontramos até mesmo em best-sellers) ou incongruência visual. Ou o escritor português teve um apoio maior (algo que todo bom artista precisa ter e deveria exigir dos parceiros comerciais) e/ou ele cresceu substancialmente como autor (algo que eu não duvido). Seja qual for a opção verdadeira, é preciso elogiar o resultado do trabalho.
Os únicos pontos de “A Verdade e a Vertigem” que me incomodaram um pouco foram o fato de ele não seguir o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e de ele possuir algumas construções textuais aparentemente incomuns (pelo menos para nós brasileiros). Nos próximos dois parágrafos vou explicar o que quis dizer com a frase anterior.
Em relação ao Novo Acordo, não é frequente encontrarmos no Brasil textos fora da convenção linguística estabelecida pelos países lusófonos. Seja na produção jornalística e nos lançamentos editoriais, seja no dia a dia das pessoas comuns (trocas de e-mails, conversas nas redes sociais etc.), embarcamos de cabeça nas novas regras e elas foram incorporadas naturalmente ao nosso cotidiano. Não sei como Portugal está tratando essa questão, mas aqui no Brasil ela está bem resolvida. Assim sendo, me parece muitíssimo estranho uma obra literária não seguir as novas diretrizes da língua. Apesar de não ter me incomodado nem um pouco com essa opção (até porque é delicioso acompanharmos as variações linguísticas, ainda mais quando vem dos praticantes originais do nosso idioma), alguns leitores podem sim se inquietar. Vale a pena dizer que nenhum livro de José Vieira segue o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Portanto, essa opção me parece ser meramente estética. Vai entender!
Achei um ou outro tipo de grafia que não é comumente usada aqui no Brasil, mas não sei se está certa ou errada do ponto de vista gramatical. Agora refiro-me mais a revisão textual do que a questão normativa. Por exemplo, apareceu durante o livro duas ou três vezes a expressão “chegava a casa”. Aqui colocamos crase sem pestanejar nessa situação: “chegava à casa”. Porém, como disse, não sei qual opção está certa ou errada. Quem sou eu para corrigir o português de uma publicação portuguesa, não é mesmo?! Aqui no Brasil, usamos popularmente a expressão “chegava em casa”. Vai que “chegava a casa” (sem crase) seja usado regularmente na linguagem escrita de lá e eu não saiba, né? De qualquer maneira, esse aspecto chamou minha atenção (algo que não é legal em se tratando de um título literário – o que precisa despertar a atenção no leitor é o conteúdo e a forma do texto, não as regras gramaticais).
Tirando esses detalhezinhos, que como disse não atrapalham a experiência de leitura, “A Verdade e a Vertigem” é um livrão. Quem gosta de boa ficção literária na certa curtirá as tramas sensíveis, inteligentes e ácidas dessa coletânea de contos sobre o amor e, principalmente, sobre o desamor. Para mim não há dúvida que essa é a melhor obra publicada até agora por José Vieira. O mais legal é poder acompanhar o crescimento de seu trabalho autoral. Em pouco tempo, o portfólio artístico do escritor português está se caracterizando pela pluralidade. Ele já lançou romance, novelas, coletâneas de contos e antologia poética. E, dessa vez, publica uma coleção de minicontos. Sinceramente, acho essa riqueza narrativa elogiável e pouco comum. Infelizmente, a maioria dos autores contemporâneos prefere se limitar a um ou a poucos gêneros literários. Com José Vieira não há mesmice! Ele se arrisca em novos formatos e em vários estilos narrativos. É verdade que as vezes derrapa feio (como em “A Dor do Esquecimento”, seu título anterior e que está aquém da qualidade dos demais livros). Todavia, quando acerta, como em “A Verdade e a Vertigem”, o resultado é contagiante. Essas são as duas faces da moeda chamada ousadia – arriscar é estar sujeito a grandes erros e a grandes acertos.
Até essa publicação, eu achava a literatura de José Vieira mais voltada para os dramas históricos. Agora preciso reconsiderar minha opinião. Talvez sua real especialidade seja os dramas sentimentais, sejam eles do passado ou do presente. Repare que não importa o gênero literário escolhido para envelopar o enredo (romance, novela, conto, miniconto ou poesia), o tempo narrativo (presente ou passado), o espaço narrativo (cidade ou zona rural), o perfil das personagens (homem ou mulher; jovem ou velho) e o tipo de narrador (primeira ou terceira pessoa), o que vale mesmo é a força das figuras retratadas e de suas angústias pessoais. Incrível!!!
Por tudo isso, coloco José Vieira como um dos meus escritores portugueses favoritos da novíssima geração – ele está lado a lado com Gonçalo J. Nunes Dias, autor da trilogia “O Bom Ditador” (ebook independente). Para não polemizar à toa, esclareço que entendo como novíssima geração aqueles jovens escritores que ainda estão em busca de um lugar ao sol dentro do mercado editorial. Da nova geração (aqueles que já estão usufruindo do calorzinho gostoso da manhã ensolarada do fazer literário), a minha escritora lusitana favorita é outra madeirense, Ana Teresa Pereira. Ela é autora, entre alguns títulos sensacionais, de “Karen” (Todavia), romance vencedor do Prêmio Oceanos de 2017. Ainda vou analisar esse livro aqui no Bonas Histórias, aguardem. Já dos escritores mais rodados, meu favorito é António Lobo Antunes. Já dos clássicos, ainda fico com José Saramago, Fernando Pessoa e Eça de Queiroz.
E viva a literatura portuguesa de ontem, de hoje e de amanhã!
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