Publicado em 2016, este drama sentimental do escritor argentino conquistou tanto o público quanto a crítica e foi recentemente adaptado para o cinema.
Neste final de semana, li uma pequena obra-prima da literatura argentina e da ficção sul-americana contemporânea. O livro em questão é “A Uruguaia” (Todavia), o quarto romance de Pedro Mairal (que preferi classificar como novela pela extensão enxuta de páginas) e até aqui seu título mais exitoso. Posso garantir que essa história deliciosa e surpreendente de um dos meus escritores portenhos favoritos é até mesmo melhor do que “Uma Noite com Sabrina Love” (Todavia), o aclamado romance/novela de estreia de Mairal. Para ser ainda mais preciso em minhas palavras iniciais deste post do Bonas Histórias, “A Uruguaia” é sem dúvida a ficção que mais me impactou em 2023. Juro que fiquei encantado com sua narrativa, estilo e enredo. Na minha humilde opinião, se essa publicação não for perfeita do ponto de vista literário, ela beira a perfeição.
Gostei tanto desta trama que posso dizer que o meu sábado foi dedicado quase que exclusivamente à produção artística de Pedro Mairal. Afinal, depois de ler a versão literária de “A Uruguaia” entre o final da manhã e o início da tarde, corri para a sala de cinema à noite para conferir a versão audiovisual, que está em cartaz no circuito comercial argentino e uruguaio desde meados de agosto. Minha ideia agora é apresentar aos leitores do blog a avaliação do romance (de maneira completa e rigorosa) e, ao mesmo tempo, comentar alguns aspectos do filme (de maneira mais sutil e informal). Acho que teremos aqui uma espécie de mescla bem azeitada entre as colunas Livros – Crítica Literária e Cinema. Esse é o prato do dia do Bonas Histórias, senhores e senhoras. Preparem-se porque ele será servido com um belo assado de tira, alfajor de doce de leite e empanadas. Pelo menos foi o que pedi enquanto escrevo esse texto.
Divagações à parte, me sinto na obrigação de explicar o que me atraiu a ler “A Uruguaia”. Vamos, portanto, para o início. Não sei se a maioria dos leitores do blog sabe, mas me mudei recentemente para Buenos Aires. Deixei a cidade de São Paulo, minha terra natal, depois de ficar preso por lá por mais tempo do que queria (a pandemia foi uma das responsáveis). Com as coisas mais ou menos normalizadas, senti que era hora de cair na estrada novamente. E entre minhas três principais opções de moradia estavam: mi Buenos Aires querido, a encantadora e misteriosa Montevidéu e a fervilhante e sedutora Florianópolis. Confesso que não foi nem um pouco fácil escolher só uma e abrir mão das outras (em uma espécie de fidelidade matrimonial de municípios).
No fim das contas, acabei preferindo retornar para a capital argentina, o caminho menos disruptivo (vivi por aqui há vinte anos e conheço bem a cultura e as calles) e muitíssimo mais barato (obrigado, Senhor Câmbio!). A questão curiosa é que “A Uruguaia” é uma história ficcional de um escritor falido que se vê dividido justamente entre as três cidades que eu almejava morar. Lucas Pereyra, o protagonista do romance/novela de Pedro Mairal, vive em Buenos Aires, se vê atraído pelos encantos de Montevidéu e sonha em fugir para Florianópolis. Muita coincidência, não?! Impossível não mergulhar nessa história que me soava tão semelhante.
Lançado em maio de 2016 na Argentina e logo depois na Espanha e no Uruguai, “A Uruguaia” (adoro falar o nome deste livro no espanhol com sotaque portenho: “La Uruguaya” sai mais ou menos como “la Uruguaja”) se tornou um grande sucesso de crítica e de público ao unir o melhor do estilo de Mairal (linguagem simples, humor sarcástico, narrativa ora desbocada ora com beleza poética, história com muito sexo e infidelidade conjugal, reflexões inteligentíssimas, enredo curto que gira em torno de tragicomédias contemporâneas, ótimas cenas, pitadas generosas de suspense, narrativa com pegada de road story, uso de muitos elementos da cultura Pop, forte crítica social e personagens amarguradas pelo peso do casamento e das frustrações cotidianas) com uma trama encantadora (que parece uma comédia romântica, mas não é!) e com desfecho surpreendente (capaz de maravilhar até mesmo os leitores mais exigentes). Convenhamos que é uma combinação para lá de interessante, né?!
Este romance/novela conquistou o Prêmio Tigre Juan de 2017, tradicional honraria espanhola que escolhe anualmente a melhor ficção publicada no idioma de Miguel de Cervantes. Além do êxito do ponto de vista da crítica literária, “A Uruguaia” se tornou rapidamente best-seller em vários países de língua espanhola, entre eles Argentina, Uruguai e Espanha. Traduzida no final da última década para vários idiomas, como inglês (“The Woman from Uruguay”) e francês (“L Uruguayenne”), esta obra chegou ao Brasil pela Editora Todavia em julho de 2018. A tradução para o português brasileiro foi realizada brilhantemente por Heloisa Jahn, que conseguiu manter o inusitado estilo de Mairal e a magia da história original. O trabalho da tradutora carioca é tão espetacular que, mesmo se você domine o espanhol, dá para ler sem culpa e sem perda de qualidade a edição em nosso idioma.
A história deste livro de Pedro Mairal foi adaptada recentemente para o cinema. Dirigido pela portenha Ana García Blaya, de “Las Buenas Intenciones” (2019), e estrelado por Sebastián Arzeno, de “Aventurera” (2014), e Fiorella Bottaioli, de “Olhos Cinzentos” (Ojos Grises: 2021), “La Uruguaya” (2023) foi rodado no ano passado em Buenos Aires e Montevidéu. O lançamento no circuito comercial de cinema aconteceu em agosto deste ano nas salas dos dois países do Rio da Prata. Ele ainda está em cartaz em algumas exibidoras argentinas e em várias exibidoras uruguaias. Por exemplo, eu o assisti no Multiplex Belgrano no último final de semana e a sessão estava cheia (o público ocupou aproximadamente 80% do espaço). Por isso, não vou me surpreender se os números do longa-metragem forem tão positivos quanto os do livro.
Pelo que sei, este filme ainda não chegou ao mercado brasileiro. Porém, se você estiver visitando as capitais hermanas nas próximas semanas (algo extremamente comum em tempos de peso argentino derretendo), coloque na sua programação cultural uma ida aos cines locais para mirar la hermosa película binacional. “La Uruguaya” conquistou os prêmios de melhor direção (Ana García Blaya) no Festival de Cinema de Mar del Plata do ano passado e de melhor atriz (Fiorella Bottaioili) no Festival Internacional de Cine de Barcelona deste ano.
O mais curioso do longa-metragem é a maneira como ele foi viabilizado financeiramente (Uranio, veja essa ideia!). A campanha de atração de pequenos investidores foi além do tradicional crowdfunding e conquistou aproximadamente 2 mil pessoas que se dispuseram a aplicar entre US$ 100 e US$ 20 mil na empreitada cinematográfica. Assim, foram levantados em apenas dois meses cerca de US$ 600 mil, o necessário para começar as filmagens sem a injeção de subsídios governamentais e de verbas de patrocínio.
Como contrapartida ao investimento realizado (aí está a grande novidade!), os investidores puderam se envolver no desenvolvimento do roteiro e participar da produção. Muitos chegaram a contracenar como coadjuvantes no filme. E ainda vão embolsar o lucro obtido (em cotas proporcionais ao valor investido). Para quem diz que faltam recursos monetários e mão de obra para viabilizar produções audiovisuais de qualidade em mercados onde a indústria do cinema não é tão pujante (qualquer semelhança com nossa realidade não é mera coincidência), a iniciativa corajosa, inovadora e bem-sucedida de argentinos e uruguaios é uma grande inspiração para quem quer ir além do crowdfunding convencional.
Aos 53 anos recém-completados na semana passada (por falar nisso, PARABÉNS, Benny!), Pedro Mairal é escritor e músico. Nascido em Buenos Aires, onde sempre viveu, ingressou na faculdade de Medicina, mas logo abandonou o curso. Formado mais tarde em Literatura e apaixonado desde a adolescência por poesia, passou a trabalhar como professor de literatura inglesa na universidade e como coordenador em oficinas poéticas na capital argentina na primeira metade dos anos 1990. Em 1994, publicou seus primeiros versos em um suplemento literário portenho. Sua estreia no mercado editorial aconteceu dois anos depois, aos 35 anos de idade, com “Tigre como los Pájaros” (sem edição em português).
Contudo, o sucesso e a fama só apareceram em 1998, quando lançou “Uma Noite com Sabrina Love”, romance/novela vencedor do Prêmio Clarín de Romance daquele ano e que se tornou best-seller na Argentina. Em 2000, essa história foi levada ao cinema. Por mais que as narrativas ficcionais médias sejam seus best-sellers – “Salvatierra” (Todavia) de 2008 teve êxito próximo a “Uma Noite com Sabrina Love” e “Uruguaia” e é outra belíssima novela –, Mairal não abre mão de ter um portfólio eclético. Dos 17 livros que tem publicado, um é ficção de tamanho longo (romance), três são ficções de tamanho mediano (novelas), dois são ficções de tamanho curto (coletâneas de contos), sete são poesias (antologias poéticas, algumas lançadas sob pseudônimos) e quatro são da categoria não ficcional (coletâneas de crônicas e ensaios). Entre os idiomas que suas obras foram traduzidas, podemos listar inglês, francês, italiano, português, alemão, holandês, polonês, turco, sueco e tailandês. Nada mal para alguém que queria ser médico no início da década de 1990 e só não prosseguiu na carreira por falta de tempo para assistir às aulas.
O enredo da versão literária de “A Uruguaia” se passa basicamente em um dia de semana. Pelas páginas do livro, acompanhamos a jornada de Lucas Pereyra, o narrador-protagonista de 44 anos, do despertar ao repousar. Ele acreditava que tal data de setembro reservaria, na melhor opção, eventos inesquecíveis e muitíssimo prazerosos. Contudo, ela se transformou quase que em seu 11 de setembro pessoal!
Nesse dia, o escritor argentino ia para Montevidéu buscar o adiantamento enviado por duas editoras estrangeiras e deveria regressar com os dólares no bolso para Buenos Aires, onde a esposa e o filho pequeno o esperavam. O que poderia dar errado em uma viagem curta pelo Rio da Prata, hein? O problema de Pereyra é que sua passagem pela capital uruguaia adquire tons épicos e marcantes. São 17 horas de pura tragicomédia que levarão a personagem principal da novela a vivenciar um turbilhão de emoções contraditórias, que terão consequência para o restante de sua vida e do relacionamento familiar.
Para entendermos o que se passa com o Dom Quixote argentino e contemporâneo, é preciso explicar que Lucas Pereyra é um escritor que enfrenta sérios problemas financeiros. A vida de autor ficcional não está saindo como ele almejara. Como consequência, ele acumulou muitas dívidas com boa parte da família. Quem está bancando as contas de casa sozinha é a esposa, Catalina. E mesmo assim, a penúria do casal fica evidente com a mensalidade do filho, Maiko, atrasada. E há também um monte de coisa quebrada na residência e que não foi arrumada por falta de grana.
A situação econômica caótica deixa Pereyra deprimido. Apesar de certa fama adquirida na literatura, ele não consegue sair do buraco em que se meteu. A presença do filho à sua volta no escritório residencial não o deixa à vontade para escrever. A pressão por querer produzir um novo livro e, simultaneamente, necessitar de dinheiro no curto prazo o angustia bastante. Além disso, o relacionamento com a esposa vai de mal a pior. Os dois não se tocam e raramente conversam. Quando se falam, a falta de dinheiro é o assunto principal, o que provoca brigas. Sexo é artigo raro naquela cama. E como tragédia pouca é bobagem, Pereyra desconfia que Catalina o está traindo. Afinal, enquanto ele vive mergulhado em um inferno astral complicado de sair, ela volta tarde para casa, está de roupas novas, passou a se depilar como antigamente e toma demorados banhos antes de se deitar. É cheiro de traição no ar, pensa o escritor falido e provavelmente chifrudo.
A sorte de Lucas Pereyra muda completamente quando ele recebe um duplo pedido de selos editoriais gringos. Uma editora espanhola encomendou um romance inédito e uma editora colombiana quer uma coletânea de crônicas. Para mostrar o interesse nos novos projetos, elas aceitaram pagar um adiantamento ao autor portenho: US$ 15 mil. A bolada é vista como a salvação da família. Com essa quantia, Pereyra paga as dívidas e as contas atrasadas, limpa a barra em casa com a mulher e tem dinheiro para trabalhar tranquilamente nos próximos meses, sem depender da ajuda de ninguém.
Para aproveitar ao máximo a remuneração, a estratégia do protagonista é simples. Ele vai de manhã para Montevidéu pelo Buquebus, o ferry que liga Argentina e Uruguai pelo Rio da Prata, e saca a grana em um banco montevideano. No final do dia, retorna para casa com os tais US$ 15 mil no bolso. Assim, pode trocar os dólares recebidos pelo câmbio paralelo (muito mais vantajoso) do que pelo câmbio oficial (obrigatório se tivesse utilizado o sistema bancário argentino para o recebimento).
A questão é que Lucas Pereyra tem outros planos para seu passeio por terras uruguaias, em uma espécie de agenda oculta e libidinosa (e não menos clandestina). Além de comparecer ao banco e pegar os tão almejados dólares, ele quer rever Magalí Guerra Zabala longe dos olhos da esposa. Guerra ou Guerrita, como a bonita moça de 28 anos é chamada carinhosamente pelo escritor, conheceu o Sr. Pereyra em um evento literário em Valizas, litoral uruguaio, no ano anterior. O encontro deles fora explosivo, mas não resultara em sexo. A jovem estava acompanhada na época pelo namorado. Mesmo assim, não faltaram tentativas de ela e o autor famoso transarem. O problema é que eles sempre eram atrapalhados na hora H, para grande frustração de ambos.
Mesmo com o encontro infelizmente casto no festival literário, Pereyra e Guerra se tornaram amigos depois disso e passaram a se comunicar frequentemente por e-mail e pelas redes sociais. Como cada um vivia em um lado do Rio da Prata, ele em Buenos Aires e ela em Montevidéu, nunca mais se viram pessoalmente. Apesar da distância física, eles dividiam alegrias, confidências, frustrações e momentos corriqueiros do cotidiano pelo computador e pelo celular. Para alguém mergulhado em uma rotina estafante, com vários problemas financeiros, marasmo profissional e crise matrimonial, a beleza e a descontração das mensagens da jovem e bela uruguaia mexeram com a imaginação de Lucas Pereyra. Assim, ele sonhava em fazer daquela viagem ao país vizinho um dia com sexo intenso e inesquecível com a sua amada Guerra.
E com a expectativa de acabar logo com a fase de dupla privação (afinal, apanharia a bolada no banco uruguaio e, para completar o dia idílico, iria enfim para a cama com a sexy Magalí), o protagonista da novela acorda cedo, embarca no Buquebus e chega ao Uruguai. É iniciada, assim, a saga tragicômica de um homem que só queria acabar com os longos jejuns (financeiro e sexual) e ter algumas horas felizes. De tão empolgado que está com a aventura pelo outro lado do Rio da Prata, Pereyra já faz vários planos em sua imaginação. Se Guerra quiser, eles podem fugir juntos para Florianópolis. Com o dinheiro do adiantamento dos novos livros, os amantes conseguirão viver bem e tranquilamente no Brasil por vários meses. Em nome do amor pela moça, ele aceita abandonar definitivamente a esposa e o filho. Para viver aquela tempestuosa paixão, tudo é válido.
Como já informei, “A Uruguaia” é um livro curtinho. Ele tem apenas 128 páginas, que estão divididas em 11 capítulos. De acordo com os princípios da Teoria Literária, vejo esta obra de Pedro Mairal mais como uma novela (narrativa ficcional de tamanho mediano) do que um romance (narrativa ficcional de tamanho longo). Para se ter uma ideia da velocidade desta leitura, levei entre duas horas e meia e três horas para percorrer seu conteúdo integralmente. Basicamente, fiz duas sessões: uma na manhã do sábado de duas horas; e outra na tarde do mesmo dia de pouco mais de uma hora e meia de leitura. Admito que só parei na metade da publicação porque estava com fome e precisava almoçar. Do contrário, teria lido de uma tacada só.
Já que estamos falando de tamanho, a literatura de Mairal é prova cabal de que um escritor de grandes livros não precisa necessariamente produzir livros grandes. Gostaria de deixar essa dica para os jovens autores, que muitas vezes olham apenas para a quantidade de páginas e se esquecem da qualidade das narrativas. Para quem não está habituado aos títulos ficcionais do argentino, seu livro mais extenso é “El Año del Desierto” (sem edição em português) com 320 páginas (portanto, seu único romance). Coincidentemente ou não, essa obra nunca chegou aos pés do sucesso de crítica e de público das novelas. Por exemplo, os best-sellers “Uma Noite com Sabrina Love” e “Salvatierra” têm, respectivamente, 160 e 112 páginas (nas edições brasileiras). E são obras gigantescas!
O primeiro elemento mais técnico que me chamou a atenção em “A Uruguaia” foi a linguagem utilizada por Pedro Mairal. Ele recorre na maioria das vezes a palavras simples e a construções frasais diretas. Ou seja, sua preocupação é se aproximar dos leitores e ser o mais claro possível na mensagem. Evita-se, assim, que a narrativa se torne pomposa ou hermética.
Isso quer dizer que temos uma novela muito simplória? Não! O mais interessante no estilo de Mairal é que ele mescla passagens desbocadas e corriqueiras a passagens de grande esmero reflexivo-poético e força literária. É muito divertido acompanhar essa mistura do que alguns poderiam chamar de alta literatura com baixa literatura dividindo as mesmas frases, os mesmos parágrafos, as mesmas páginas e os mesmos capítulos. Selecionei alguns exemplos que mostram esse efeito na prática:
“Tomei banho, me vesti. Dei em vocês meu beijo de Judas. Um para você, outro para Maiko”. O “beijo de Judas” traz mistério e beleza ao parágrafo aparentemente banal da vidinha comum da personagem principal.
“Em algumas regiões do Caribe os casais dão ao filho um nome composto pelos nomes dos pais. Se tivéssemos tido uma filha, ela poderia se chamar Lucalina, por exemplo, e Maiko, Catalucas. Esse o nome do monstro que você e eu formávamos quando nos derramávamos um no outro. Não gosto da ideia de amor. Preciso de um canto privado. Por que você foi olhar meus e-mails?”. Repare na mistura de reflexões acuradas com confidências delicadas de um marido que parece ter o que esconder da esposa. Para completar, seguimos com o texto esteticamente simples e com preocupações rotineiras de um homem igual a muitos por aí.
“Amanhã vou ter que ir trabalhar com os olhos desse jeito, puta que pariu, você dizia. Estava cansada, de mim, da minha nuvem tóxica, da minha chuva ácida.” Note que o narrador entende que seu comportamento não era nem um pouco saudável e usa algumas metáforas para se explicar/expressar. A palavra nuvem está ligada à chuva e o termo chuva está intimamente vinculado ao chororô que cai dos olhos de Catalina. Portanto, a construção dessa passagem narrativa está bem costurada quando analisada em detalhes.
“Eu acordado de barriga para cima, ouvindo você respirando e escutando a gota que começava a pingar ali pelas duas da manhã e que nunca conseguimos descobrir onde caía, parecia ruído exato da insônia, a gota do inconsciente. O mais irritante é que a gota não era regular, era imprevisível e estava se acumulando em algum ponto, certamente formando uma poça, uma umidade, apodrecendo o gesso, o cimento, enfraquecendo a estrutura”. A gota, nesse caso, representa o enfraquecimento tanto da estrutura da casa quanto da estrutura do casamento, que estavam desabando conjuntamente. Incrível a beleza dessas palavras.
Em contraposição à beleza narrativa e à sagacidade reflexiva, também temos em “A Uruguaia” muito humor. Impossível não rir com um narrador sincero e desbocado que fala o que pensa e não tem pudores para colocar os dedos nas feridas pessoais, familiares e sociais. Achei que o humor do livro é ora inteligente, ora escrachado. Há também fortes pinceladas de sarcasmo e de humor negro. Gostei desse mix. Por mais que assistimos apreensivos às tragédias daquele dia insuportável e da vida estafante, não conseguimos parar de rir de Lucas Pereyra. Qual o mal de ele ter um pouco de dinheiro no bolso e conseguir uma transa satisfatória?! Apesar de serem aspectos simples, as duas vontades mundanas da personagem se tornam uma saga insuperável. Hilário!
Veja alguns exemplos de passagens bem-humoradas:
“Se fosse buscá-los no Uruguai e os trouxesse em dinheiro vivo, poderia trocá-los em Buenos Aires no câmbio negro e ficaria com mais do que o dobro. Valia a pena a viagem, inclusive o risco de que na volta encontrassem os dólares quando eu passasse pela alfândega. Porque eu entraria no país com mais dólares que o permitido. Rio da Prata: nunca o nome foi mais adequado”.
“Ainda me lembro do dia em que tivemos que pagar o pedágio com um monte de moedas de cinquenta centavos. Íamos visitar meu irmão em Pilar. A mulher da cabine não acreditava. Contou as moedas, quinze pesos em moedas”.
“E é verdade que Mr. Lucas já estava um pouco velho, menos atraente. Ou pelo menos era assim que eu me sentia. Coluna vergada, pegada de magro com barriga pronunciada, alguns cabelos brancos na cabeça e no púbis, e o cacete que quase de um dia para o outro ficou torto, se encurvou de leve para a direita, como se minha bússola tivesse enlouquecido e abandonado o norte para apontar um pouco para o leste, para o Uruguai”.
“Esse lado meio cubano que surge no interior do Uruguai, com velhos Chevrolets ou Lanchesters descascados, alguns que ainda andam ou que ficam lá jogados, servindo de galinheiro, até serem descobertos por algum restaurador fanático.”
E não temos aqui apenas a linguagem textual e a estética narrativa primorosas. A própria construção do relato também é profundamente verossímil. Afinal, acompanhamos a descrição que Lucas Pereyra, o narrador, faz para a mulher Catalina, a destinatária da mensagem (em uma recordação dos conceitos da Teoria da Comunicação). O livro que temos em mãos é justamente ele falando diretamente com ela. Depois da trágica e inexplicável visita à Montevideu, o escritor ficcional não tem alternativa e precisa abrir o jogo quando chega em casa. Após adquirir coragem, ele coloca no papel tudo o que precisava contar para a antiga companheira. Do ponto de vista da Teoria Literária, não existe justificativa melhor para embasar essa trama. Ela está perfeita!
Outro ponto que merece os meus elogios neste post da coluna Livros – Crítica Literária é a ótima ambientação. Pedro Mairal conseguiu retratar muito bem o cenário real (Buenos Aires, Colônia do Sacramento, Cabo Polônio, Valizas e Montevidéu) e o universo psicológico do narrador-protagonista. Quando o assunto é o mundo efetivo, acompanhamos um delicioso road story pelo Buquebus (passeio imperdível) e um rolê turístico pela capital uruguaia (como diriam Thaeme e Thiago em Tcha Tcha Tcha: “Ai que vontade/ Ai que vontade que me dá...”). Além disso, podemos acompanhar as diferenças culturais (e, por que não, algumas rivalidades) das nações platenses e a realidade atual da Argentina (país que enfrenta uma série crise cambial, o que afeta o dia a dia da população). Quando o assunto é o mundo particular da personagem principal, acompanhamos um homem amargurado, depressivo, com frustrações sexuais, carente de afeto, com ciúmes e em dúvida sobre a trajetória profissional. Assim, ele vive à espera de uma salvação quase divina (fuga dos problemas reais).
A narração de “A Uruguaia” é precisa e está muito bem estruturada. Temos uma história contada linearmente: Sr. Pereyra acorda, se despede da esposa e do filho em Buenos Aires, pega o Buquebus em Porto Madero, chega em Colônia do Sacramento, viaja de ônibus para Montevidéu, saca o dinheiro no banco, passeia um pouco pela região central da capital uruguaia, se encontra com Magalí Guerra na hora do almoço, blábláblá, blábláblá, blábláblá (o blábláblá é para não dar o spoiler, tá?) e retorna à noite para casa destroçado.
No meio dessa grande linearidade narrativa, recebemos nos capítulos iniciais e intermediários os flashbacks em que o narrador apresenta o contexto do enredo. Até aí nada demais. O incrível mesmo é que nos capítulos finais, surpreendentemente, recebemos o flashforward com as consequências daquele dia histórico para Lucas Pereyra. Dessa maneira, a novela continua contemplando exclusivamente a fatídica data de setembro, mas não priva os leitores de saberem o que aconteceu dali para frente. Falando rapidamente desse recurso ficcional, pode parecer que ele é simples ou até mesmo banal. Porém, não é não! O que Pedro Mairal fez é genial e prova a enorme sensibilidade literária que ele possui.
São várias as provas que poderia apresentar para sustentar o nível de impacto dessa narrativa. Repare que muito antes de falar de suas infidelidades conjugais, Lucas Pereyra não se cansa em descrever as doloridas suspeitas/traições da esposa. Não há recursos mais crível do que esse: o marido reclamar da companheira enquanto se esquece totalmente dos seus próprios comportamentos equivocados e vacilos. E o que dizer da raiva que ele sente do médico no ônibus em direção à Montevidéu, hein? Só entendemos essa atitude do protagonista quando sabemos que ele desconfia que o Ricardão de Catalina tem essa mesmíssima profissão.
Juro que poderia passar um dia inteiro comentando as impressões positivas que tive dessa novela. A narrativa de Pedro Mairal/Lucas Pereyra é ora rápida, ora lenta. É às vezes reflexiva, às vezes descritiva. Ela mergulha na realidade objetiva da personagem principal, mas não se esquece de nadar na profundidade de sua psique e na sua imaginação.
A verossimilhança de “A Uruguaia” é tamanha que acreditamos até que essa história seja real. Duvido que os leitores não pensem: “Mas será que isso aconteceu mesmo com o Mairal?!”. Quando a pessoa que tem as páginas do livro em mãos faz esse tipo de questionamento, é porque a obra ficcional cumpriu muito bem um de seus papéis artísticos: aproximar realidade à inventividade literária.
Não posso me esquecer de falar da intertextualidade literária e musical, o que confere ainda mais charme ao texto de “A Uruguaia” (e corrobora com a verossimilhança de uma história real de Pedro Mairal, que tem um pé nos livros e outro pé nas canções). Ao longo dos capítulos, surgem vários escritores argentinos e uruguaios, além de um ou outro poeta europeu. Da velha guarda platina, posso citar Julio Cortázar, Jorge Luis Borges e Juan Carlos Onetti. Da nova guarda da literatura gaúcha, aparecem Gustavo Espinosa, Norberto Vega, Marcelo “China” Luján e Enzo Arrendo. O curioso é que muitos dos colegas atuais de Mairal surgem no livro como personagens. Hilário! Dos poetas europeus, lembro da menção ao espanhol Jorge Manrique e ao francês Arthur Rimbaud. Dos músicos citados, confesso só conhecer um pouco Alfredo Zitarrosa, uruguaio que cantava os amargos versos: “Si te vas/ Te irás solo una vez/ Para mí habrás muerto/ Yo te pido/ Que me lo hagas saber/ Queiro estar despierto”.
Para terminar a parte da coluna Livros – Crítica Literária deste post do Bonas Histórias (lembre-se que prometi falar do filme e ainda não derrubei nenhuma palavra a esse respeito), me sinto na obrigação de tratar de mais três assuntos literários: a força narrativa do capítulo inicial e do capítulo final; a característica redonda da personagem principal; e as ótimas cenas e cenários que a novela de Mairal traz.
Mesmo sabendo que esta obra é excelente de cabo a rabo, ainda sim gostaria de destacar o primoroso primeiro capítulo e o impecável desfecho. O início de “A Uruguaia” é recheado de suspense que torna a leitura do restante do livro obrigatória para quem curte uma ótima ficção. Por mais que Lucas Pereyra se mostre disposto a contar tudo para a esposa, ainda sim é nítido que ele não falou tudo para ela (pelo menos não nesse comecinho) e está escondendo o jogo (pois deve ter aprontado muuuuuuuuito).
E o desenlace da novela é extremamente surpreendente, além de ser aberto, um afrodisíaco para as mentes mais sagazes. Falo isso pois tenho a mania de formular vários finais para as histórias que leio. E aquela que Pedro Mairal desenvolveu aqui não passou nem perto da minha imaginação. Achei-o simplesmente fantástico! Fiquei com uma determinada interpretação (para mim, ela é a culpada), mas sei que outros leitores podem ter suas próprias e diferentes visões (viva os finais abertos!!!).
Além disso, temos um narrador-protagonista falível, humano e contraditório. Adorei essa característica. Esqueça esse lance de criar figuras perfeitas e valorosas, erro comum no trabalho de muitos escritores ficcionais. Lucas Pereyra tem vários defeitos, comete incontáveis erros e está longe, muito longe de ser um herói clássico. Mesmo ciente de seus defeitos (que não são poucos), torcemos por ele pois conhecemos suas qualidades (que estão também presentes na história). Como é bom estarmos diante de uma trama com tantas personagens redondas, né? Acredito que boa parte da graça dessa história esteja em reunir tantos tipos contraditórios e nem um pouco planos.
Por fim, tenho que falar sobre as ótimas cenas e os belíssimos cenários de “A Uruguaia”. Trago essa questão porque alguns escritores que assessoro (além de manter o Bonas Histórias, trabalho como editor de livros ficcionais) costumam reclamar: “Mas, Ricardo, se eu investir na descrição das cenas e nos detalhes dos cenários, a obra vai ficar gigantesca e o texto chato!”. Será mesmo, caro autor brasileiro?! Para quem concorda com a chiadeira geral do sindicato dos ficcionistas iniciantes, aconselho a ler esta novela e as outras duas de Mairal: “Uma Noite com Sabrina Love” e “Salvatierra”. Elas provam que é possível sim ter uma narrativa dinâmica, gostosa e enxuta com muitas cenas memoráveis e excelentes cenários. Coisa que um ótimo escritor ficcional faz com naturalidade e que devemos emular!
Para ninguém falar que não coloquei os pés hoje na coluna Cinema (promessa é dívida, diria Dona Júlia), tratemos um pouco da versão audiovisual de “A Uruguaia”. Dirigido pela competentíssima Ana García Blaya, “La Uruguaya” é um filme interessante, mas admito que não gostei do resultado geral. Seu principal defeito está em não aproveitar as principais qualidades do livro de Pedro Mairal (que não participou, acredite se quiser, da confecção do roteiro).
Já imaginei que não teríamos na telona a melancolia, as reflexões inteligentes e engraçadas do protagonista nem a intensidade do conflito humano de um casal que permanece vivendo junto mesmo sem motivo. Até aí tudo bem. Porém, queria ver a narração espirituosa e desbocada de Lucas Pereyra, as reviravoltas da história e, principalmente, o desfecho inusitado. E o que temos de fato: várias alterações nesses aspectos. Pode isso, Arnaldo? Pelo visto, em “La Uruguaya” pôde.
Para incompreensão de quem leu o livro, o filme é narrado pela esposa de Pereyra. Acredite: o relato vem na voz de Catalina. Apesar de trazer novos insights à história, perdemos um mundo de aspectos que tornaram a trama de Mairal tão peculiar e genial. O desfecho também é sutilmente diferente. Pelo menos tive outra interpretação do desenlace do longa-metragem, totalmente oposta a que tive no último capítulo da novela literária. Nesse sentido, até foi grata a surpresa. Não imaginei que poderia ter uma visão diferente do fim da mesma história.
Outra questão que percebi é que o filme é um pouco mais parado do que o livro. Se não senti qualquer cansaço ou passagem desnecessária na versão literária (sempre está acontecendo um monte de coisa em suas páginas), no longa há momentos de tédio e interrupção dramática (para desprazer da plateia).
Há outras diferenças entre livro e longa-metragem. O encontro de Pereyra e Guerra acontece na metade da novela, mas no primeiro quarto da sessão cinematográfica. Temos na telona um menor grau de drama familiar e conjugal. O início também é distinto. A película começa com a última cena da obra impressa.
Por outro lado, temos o mesmo humor e a mesma sequência de acontecimentos tragicômicos com a personagem principal. Também gostei de algumas pequenas alterações no roteiro que deixaram a trama mais dinâmica para a nova plataforma. O que não aceitei foi terem mudado a essência da história (novo narrador e desfecho distinto!!!).
Os pontos positivos de “La Uruguaya” são a ótima interpretação do casal de protagonistas (Sebastián Arzeno e Fiorella Bottaioli têm boa química e convencem na materialização de Lucas Pereyra e Magalí Guerra), a trilha sonora é maravilhosa (algumas canções foram compostas pelo próprio Pedro Mairal, como a deliciosa “La Vidita”, tema central do filme) e a pegada de road story que o livro já trazia (posso dizer que visitei Montevidéu por um dia). A duração mais enxuta da produção (apenas 70 minutos) também vi como algo pertinente (mais do que isso poderia tornar a experiência no cinema cansativa).
Em resumo, o que senti saindo da sessão e escutando os comentários do povo ao meu redor (Paulo, fui sozinho ao cinema em Belgrano no sábado porque Paloma me deu um pé na bunda e preferiu sair com a sua Rúbia por Palermo) é que quem não conhecia o livro gostou do filme. Já quem o tinha lido saiu da sala aparentemente frustrado. Foi o meu caso (e do casal de senhores ao meu lado que se olhava indignado com o começo e o final distintos do longa). Porém, uma coisa não podemos contestar. Trata-se de uma produção muito bem realizada. Principalmente se considerarmos como “La Uruguaya” foi viabilizado e materializado. Ou você acha que deve ter sido tranquilo e rápido o trampo para contentar quase duas mil pessoas palpitando no roteiro e nas filmagens, hein? Acho que Ana García Blaya é uma heroína do cinema independente sul-americano.
Acho que por hoje é só, pessoal. Posto à mesa o cardápio multicultural argentino, só me resta agora consumir as empanadas servidas de entrada, o assado de tira com papas fritas de refeição principal e o alfajor de doce de leite de sobremesa. Mas isso eu posso cuidar sozinho. Até a próxima!
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