Alguns temas são recorrentes na literatura de José Eduardo Agualusa: a força e a beleza dos sonhos; a mistura entre realidade e ficção; os enredos calcados no Realismo Fantástico; a denúncia do racismo, da exploração da pobreza, da corrupção, da desigualdade social e da truculência do estado policialesco; a influência do cenário político opressor na vida das pessoas comuns; as chagas ainda expostas e as feridas não cicatrizadas do passado de violência e de guerras no continente africano; o desenvolvimento de romances históricos marcantes e de dramas pessoais e coletivos emocionantes; a valorização da negritude e a busca pelas raízes culturais africanas; e a (inter)conexão das sociedades lusófonas dos três continentes (Europa, África e América do Sul).
Uma vez compreendida a riqueza deste panorama temático, “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” (Tusquets), o décimo quarto romance de Agualusa, entrega exatamente aquilo o que os leitores mais assíduos do principal escritor angolano da atualidade tanto apreciam. Não à toa, este livro é considerado um dos melhores do autor, apesar de não ter conquistado nenhum prêmio de relevância internacional. O que torna esta obra tão excelente é a combinação de um artista no auge da maturidade profissional, com total domínio das técnicas literárias e com um estilo narrativo já consolidado, e a coragem para denunciar aspectos sociopolíticos até então ocultos em seus títulos anteriores – o presente sombrio de uma nação aprisionada por uma ditadura militar excludente, corrupta, violenta, retrógrada, opressora e desconectada da realidade.
Publicado em 2017, “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” era, até 2020, o romance mais recente de José Eduardo Agualusa. Perceba que, na minha frase anterior, eu usei o verbo ser no pretérito! O posto de última narrativa longa de Agualusa, felizmente, foi suplantado há pouco. “Os Vivos e Os Outros” (Tusquets), título lançado em julho deste ano em Portugal (pela Quetzal Editores) e em novembro (isso mesmo, neste mês) no Brasil, é agora o romance mais recente do autor. Quem acompanha regularmente a coluna Mercado Editorial, irá notar que citarei esta obra no post de dezembro, espaço do Bonas Histórias dedicado a anunciar as novas publicações do último bimestre de 2020 em nosso país.
A ideia para a produção da trama de “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” nasceu em meados de 2014, quando Agualusa ainda escrevia “A Rainha Ginga” (Editora Foz), seu romance anterior. Em uma viagem à Natal, capital potiguar, o escritor angolano conheceu Sidarta Ribeiro, um neurocientista brasileiro especializado em sonhos. Depois de ganhar uma bolsa de estudos, José Eduardo Agualusa pôde acompanhar de perto as pesquisas do brasileiro por algumas semanas.
Ao regressar ao seu país, o autor de “Nweti e o Mar” (Gryphus Editora), livro analisado no último domingo, dia 22, no Bonas Histórias, encontrou uma Angola em ebulição. O presidente José Eduardo dos Santos (presidente em termos, porque ele se parece mais com um ditador; comanda a nação africana desde 1979 com mãos de ferro) enfrentava o maior levante populacional contra seu governo. A onda angolana de protestos foi similar àquela ocorrida na mesma época no Brasil (chamada por aqui ora de “Não Vai Ter Copa” ora de “Revolta dos 20 Centavos”) e parecida à Primavera Árabe, ocorrida quatro anos antes em países do Oriente Médio e do norte da África.
O movimento de protesto em Angola se concentrou em Luanda, sua capital, e foi organizado por um grupo de jovens. Liderada pelo músico Luaty Beirão, a juventude luandense estava descontente com a pouca liberdade política, os altos índices de desigualdade social, o desemprego crescente e os vários casos de corrupção do governo de José Eduardo dos Santos. A resposta do presidente ao movimento seguiu o padrão dos estados totalitários: bala e cassetete. Ao ser preso e torturado pelos militares, Beirão conseguiu aumentar a dimensão dos protestos. Ao fazer greve de fome na cadeia, ele mobilizou ainda mais seus colegas e gerou uma grande comoção nacional e internacional. A campanha rebelde dos jovens fez a ditadura militar angolana balançar como não tinha ocorrido desde o fim da Guerra Civil (infelizmente, ela balançou, balançou, mas não caiu).
“A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” mistura o olhar poético e mágico para a questão dos sonhos (parte mais lúdica e leve) com a denúncia do que se passou em Angola durante os protestos de 2014 (parte mais crítica e pesada). De certa maneira, este livro junta o tom fantástico e belo de “O Vendedor de Passados” (Tusquets) e “As Mulheres do Meu Pai” com o engajamento social e a pegada de denúncia política de “A Conjura” (Gryphus Editora) e “Nação Crioula” (Gryphus Editora). E Agualusa faz essa mescla ao abordar corajosamente as mazelas angolanas do presente (ao invés de focar apenas nos conflitos do passado, como ocorreu na maioria dos seus livros anteriores, que eram romances históricos). Por isso, não é errado enxergarmos esta obra como a crítica mais contundente tanto ao governo atual de Angola quanto à postura pouco elogiosa do presidente (presidente?) José Eduardo dos Santos durante o movimento revoltoso de seis anos atrás.
Li “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” neste final de semana. Se você estiver acompanhando o Desafio Literário, saiba que esta é a sexta e última obra de José Eduardo Agualusa que analisamos em novembro. Confesso que no começo achei esta trama meio morna. A primeira metade do romance trata prioritariamente da questão dos sonhos e quase não aborda o cenário político de Angola. Porém, na segunda metade da narrativa, há uma inversão de prioridades: o conflito político salta para o primeiro plano. Além disso, os debates oníricos ganham um sentido dentro do contexto macroambiental. Dessa forma, a narrativa de Agualusa se torna espetacular. Ela é um tapa na cara de quem ainda tem a coragem de defender regimes políticos pouco democráticos e baseados na força militar (sim, este tipo de pessoa ainda existe tanto em Angola e Moçambique quanto no Brasil).
“A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” é narrado majoritariamente por Daniel Benchimol, um jornalista angolano de 55 anos. Separado recentemente de Lucrécia, uma socialite luandense, ele tem uma filha adolescente, Lúcia, mais conhecida pelo apelido de Karinguiri (nome de um pássaro). Daniel mora sozinho em um apartamento na capital. Sozinho não! Baltazar, seu gato, também vive ali. Depois de ter vivenciado uma fase promissora no jornalismo local (foi editor do caderno cultural do Jornal de Angola e correspondente no país de um jornal português), o protagonista do romance perdeu os empregos por causa de críticas feitas ao governo angolano. Agora, ele trabalha para um pequeno jornal independente e online de Luanda, o Pensamento Angolano, além de escrever peças teatrais e fazer traduções técnicas para as empresas do seu país.
Com uma rotina extremamente pacata, Daniel Benchimol só fica perturbado com os tipos de sonhos que tem frequentemente. Ao dormir, o jornalista sonha com personalidades famosas (que lhe dão entrevistas bastante íntimas e muito reveladoras), e, o que é até mais surpreendente, com pessoas desconhecidas (mas que depois ele virá a conhecer). Ao invés de ter sonhos rápidos e tranquilos, ele passa a conhecer detalhes das biografias desses indivíduos (como se acompanhasse um longa-metragem ou um documentário sobre personalidades reais). A situação fica ainda mais estranha quando Daniel descobre, ao conhecer realmente as pessoas sonhadas, que seus sonhos descreviam episódios verídicos. Para completar, parte dos desígnios, mensagens e diálogos que recebe quando está dormindo, logo mais se concretizam e ganham sentido.
Qual a função desses sonhos? Quais as explicações científicas e filosóficas para essas experiências oníricas tão intensas e reais? Enquanto busca respostas para tais questões, Daniel Benchimol conhece algumas pessoas que também são afetadas pelos sonhos de um jeito pouco usual. O primeiro deles é Hossi Apolónio Kaley, um ex-militar de cinquenta e poucos anos que lutou ao lado dos capitalistas na Guerra Civil de Angola (vencida pelos comunistas). Hossi, agora proprietário do Hotel Arco-Íris em Cabo Ledo, aparecia, quando jovem, nos sonhos de várias pessoas, sempre com uma capa roxa. Nessas aparições, ele revelava segredos e curiosidades do dia a dia para a pessoa que sonhava com ele. Ao saber desse seu poder quase paranormal, os militares angolanos enviaram-no para Cuba, onde passou por teste clínicos por vários meses. Os comunistas acreditavam que poderiam utilizar os poderes oníricos de Hossi Apolónio Kaley como uma arma de guerra ou um novo jeito de fazer espionagem internacional.
A segunda pessoa é Moira Fernandes, uma artista plástica e fotógrafa moçambicana de 33 anos que vive na Cidade do Cabo, África do Sul. Ela utiliza seus sonhos como matéria-prima de sua arte. Seus quadros e fotografias são encenações do que se passou à noite em sua mente enquanto dormia. Daniel a conheceu por acaso. Ele achou, na praia, uma máquina fotográfica que Moira perdeu há alguns anos no mar.
Por fim, a terceira personagem que Daniel Benchimol conheceu e que está relacionada com suas preocupações mais íntimas é Hélio de Castro, um neurocientista mineiro que realiza estudos com sonhos em um instituto de pesquisa na cidade de Natal, no Brasil. Hélio e sua equipe desenvolveram uma máquina capaz de filmar os sonhos das pessoas enquanto elas dormem. Intrigado com essa tecnologia, o jornalista angolano viaja até o Nordeste brasileiro para ver de perto o funcionamento e a eficiência da máquina.
Enquanto aprofunda seus estudos e conexões sobre a força dos sonhos, Daniel Benchimol recebe uma notícia estarrecedora: sua filha, Karinguiri, foi presa pelos militares angolanos. A jovem liderou protestos em Luanda que exigiam a renúncia do presidente, um corrupto contumaz que está há mais de 30 anos no poder. Presa ao lado de seis amigos, Karinguiri foi declarada terrorista pelas autoridades. Desesperado para livrar a filha das garras do estado ditatorial, o jornalista usará seus novos amigos e os conhecimentos sobre os sonhos para tirar os integrantes dos protestos de trás das grades. Inicia-se, assim, um embate dos amigos e dos familiares do protagonista contra as forças mais poderosas de Angola – o presidente e o aparato militar.
As 256 páginas de “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” estão divididas em 42 capítulos. Levei aproximadamente cinco horas e meia para percorrer todo o conteúdo do livro. Minha leitura aconteceu em um único dia, no último domingo, 22 de novembro. Comecei esta obra de manhãzinha e à noite já a tinha finalizado (com várias paradas no meio do caminho). Para quem não é chegado a uma imersão literária como esta, é possível ler este título com mais tranquilidade em dois dias ou mesmo em três noites.
Do ponto de vista da literatura de José Eduardo Agualusa, o grande diferencial do enredo de “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” está no enfoque dos problemas políticos atuais de Angola. Até então, o autor preferiu tratar os conflitos sociais angolanos da época colonial, do período da busca pela independência e durante a longa Guerra Civil. Ele não tinha chegado a criticar com tanta ênfase a situação sociopolítica do seu país nos dias de hoje. Esse acerto de contas com o presente me parece acertado. Escancarar as atrocidades cometidas pela ditadura militar angolana é um ato de altruísmo e de utilidade pública, principalmente se entendermos que muitos dos leitores de Agualusa são brasileiros e portugueses (e, como consequência, não conhecem tão a fundo os problemas africanos contemporâneos).
Se por um lado escancarar a violência e a corrupção do governo de José Eduardo dos Santos me parece um acerto, por outro lado essa opção temática é ousada e extremamente perigosa para o escritor angolano. Falar mal do rei em uma monarquia absoluta (ou de um ditador em um regime militar) traz muitas vezes mais complicações do que benefícios ao artista em seu dia a dia. Lembremos que Agualusa passa parte do ano em sua terra natal e outra parte do ano em Portugal. Dessa maneira, sua escolha narrativa me pareceu muitíssimo corajosa. Independentemente de acharmos bom ou ruim este livro, se gostarmos ou não gostarmos de sua história, precisamos aplaudir de pé a atitude do escritor de denunciar os poderosos de sua nação.
A impressão que tive durante a leitura de “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” era que seu narrador-protagonista é o alter ego do escritor. Afinal, há incontáveis semelhanças entre Daniel Benchimol e José Eduardo Agualusa. Vejamos algumas delas: eles são jornalistas; nasceram em Huambo, em 1960; são separados do primeiro casamento; tiveram um filho desse relacionamento anterior; se apaixonam por uma artista moçambicana; usam cavanhaque; relutaram por muitos anos em criticar publicamente a ditadura militar de seu país; adoram nadar; e sempre estiveram envolvidos intimamente com o universo oníricos (o enredo de “O Vendedor de Passados”, por exemplo, surgiu após uma visita do protagonista ficcional, Félix Ventura, ao escritor em um sonho). Ouso dizer que Daniel Benchimol é a personagem de Agualusa que mais se parece com ele.
Essa associação íntima entre o protagonista do livro e o escritor escancaram ainda mais a relação simbiótica entre a ficção e a realidade da narrativa de “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”. Não por acaso, esta é uma das características mais marcantes da literatura de José Eduardo Agualusa. Suas tramas caminham o tempo inteiro com um pé no mundo imaginário e com o outro pé no mundo concreto (sim, as narrativas do angolano são bípedes!). Essa junção se torna interessante porque estamos falando simultaneamente de um texto com elementos de Realismo Fantástico e com críticas políticas contemporâneas e factuais.
Por isso, lembrei-me bastante, durante esta leitura, dos romances de Isabel Allende, principalmente de “A Casa dos Espíritos” (Bertrand Brasil) e “Eva Luna” (Bertrand Brasil). Vale a pena destacar que a escritora chilena sempre foi mestre em misturar tramas mágicas a enredos calcados no horror real da ditadura militar de seu país (característica essa da primeira fase da ficção de Allende). Não ria de mim, por favor, mas também me recordei, nas páginas finais de “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”, de “Metrô Linha 743”, uma música famosa de Raul Seixas. Na canção lançada em 1984, já no final da ditadura militar brasileira, o cantor baiano faz uma crítica bem-humorada e com pegada de Realismo Fantástico a opressão do estado policialesco das décadas de 1970 e 1980 em nosso país. Assista, a seguir, à impagável animação desenvolvida por Thalles Humberto que narra o drama dessa música:
“A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” tem, em algumas cenas e trechos, um tom meio kafkaniano (principalmente quando sua história mergulha na burocracia e na complexidade estatal) e meio surrealista (quando a trama se aventura pelos sonhos inusitados das personagens). Daí a lembrança do livro “O Processo” (Companhia das Letras) e do filme “Um Cão Andaluz” (Un Chien Andalou: 1928).
Como já tinha acontecido em “Nação Crioula” (escrito em primeira pessoa por Fradique Mendes, mas com trechos narrados por outras personagens - Eça de Queiroz e Ana Olímpia, por exemplo), “O Vendedor de Passados” (narrado principalmente pela osga Eulálio, mas com inserções de outras personagens ao longo do texto) e “As Mulheres do Meu Pai” (narrativa com múltiplas vozes - pelo menos quatro personagens revezam-se no relato desta história), “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” apresenta vários narradores distintos. Quem comanda a narrativa na maior parte do tempo é Daniel Benchimol. Porém, em algumas partes deste romance, os relatos são conduzidos por Hossi Apolónio Kaley (nos capítulos 3, 7, 16, 23, 25 e 36 entramos em contato com seus diários), por Moira Fernandes (nos capítulos 10, 21, 28 e 35 lemos sua correspondência eletrônica) e por Lucia Benchimol/Karinguiri (no capítulo 31 ela escreve uma carta ao pai).
Dos romances adultos de Agualusa lidos para este Desafio Literário, “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” é aquele que apresenta o menor nível de intertextualidade cultural. Mesmo assim, é possível encontrar algumas citações literárias, fotográficas, musicais, cinematográficas e teatrais. Prova maior disso é que ao final do livro há uma lista de canções citadas pelos quatro narradores.
Admito que gostei muito de “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”. Entretanto, este livro não é a minha leitura preferida de José Eduardo Agualusa. O primeiro lugar do pódio agualusiano continua sendo ocupado por “O Vendedor de Passados” e a segunda colocação por “As Mulheres do Meu Pai”. Talvez a trama de “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” suba sim ao pódio, mas apenas no terceiro degrau mais alto.
O Desafio Literário de novembro se encerrará na próxima segunda-feira, dia 30. Nessa data, voltarei ao Bonas Histórias para apresentar a análise completa da literatura de José Eduardo Agualusa. Minha ideia é relatar brevemente a biografia do autor, discutir alguns detalhes de sua bibliografia e, a partir daí, aprofundar o debate sobre as suas principais características estilísticas. Quem curte o trabalho ficcional de Agualusa, um dos principais nomes da literatura angolana e da literatura contemporânea em língua portuguesa, não pode perder o próximo post do Desafio Literário. Até lá!
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