Sophie Hannah é um dos principais nomes da literatura britânica na atualidade. Na iminência de completar 50 anos de idade, a escritora nascida em Manchester e moradora de Cambridge se destaca tanto pela produção de romances policiais quanto pela produção poética. Enquanto suas coletâneas de poemas são aclamadas pela crítica e recebem vários prêmios, as narrativas criminais da autora caem no gosto dos leitores e são adaptadas para a televisão. Em outras palavras, Hannah é o tipo de artista versátil (trafega tranquilamente entre a prosa e os versos) e bem-sucedida nas duas pontas do mercado editorial (agrada ao mesmo tempo a crítica literária e o público final).
A maior prova da excelência do trabalho literário de Sophie Hannah pode ser sintetizada em um fato ocorrido há quase uma década: a autora inglesa foi escolhida pela família de Agatha Christie para dar continuidade à série de romances de Hercule Poirot, uma personagem clássica da literatura universal (ele é, depois de Sherlock Holmes, o mais famoso detetive dos livros policiais). Curiosamente, Hannah é fã da ficção de Christie desde pequena, quando começou a ler as obras protagonizadas por Poirot e por Miss Marple, outra figura marcante da Rainha do Crime. Escrevendo novas tramas do detetive belga desde 2014, Sophie Hannah já lançou quatro livros com essa linha editorial: “Os Crimes do Monograma” (HarperCollins), “Caixão Fechado” (HarperCollins), “O Mistério dos Três Quartos” (Edições Asa) e “The Killings at Kingfisher Hill” (ainda sem tradução para o português).
Com essas credenciais colocadas à mesa, nada melhor do que conhecermos, no Bonas Histórias, um pouco mais do trabalho desta destacada autora da literatura contemporânea em língua inglesa. No post de hoje da coluna Livros – Crítica Literária, vamos tratar especificamente de “A Outra Casa” (Rocco), um dos títulos criminais de Sophie Hannah. Assim, deixamos de lado, por enquanto, sua poesia e suas histórias de Hercule Poirot e nos atentamos exclusivamente às tramas com personagens originais.
“A Outra Casa” é um romance policial que integra a série “Waterhouse e Zailer”, o maior sucesso literário de Hannah até aqui. Inaugurado em 2006, com o livro “Little Face” (sem publicação no Brasil), “Waterhouse e Zailer” apresenta a rotina de um departamento de polícia no interior do Reino Unido. Os protagonistas desta coletânea são Simon Waterhouse, um detetive brilhante e muito esquisitão, e Charlie Zailer, uma policial bonita, carismática e com mais traquejo social. Em cada título da série, que já contabiliza onze volumes (a maioria ainda não foi traduzida para o português), a dupla precisa solucionar um crime diferente. Para tal, Simon Waterhouse e Charlie Zailer têm a colaboração de um grupo de colegas com características bem peculiares. Sam Kombothekra, Colin Sellers, Chris Gibbs e Proust complementam o time de detetives. Ao mesmo tempo em que acompanhamos as investigações, assistimos aos dramas dos integrantes deste peculiar departamento de polícia.
Best-sellers na Inglaterra e nos Estados Unidos, “Point of Rescue” (sem publicação no Brasil), de 2008, e “The Other Half Lives” (também sem tradução para o português), de 2009, terceiro e quarto livros da série “Waterhouse e Zailer”, respectivamente, foram adaptados para a televisão britânica em um bem-sucedido thriller policial. O primeiro episódio da temporada inicial de “Case Sensitive”, como o programa de TV foi nomeado, foi visto por seis milhões de telespectadores no Reino Unido em 2011. A segunda temporada foi lançada no ano seguinte e teve público médio de quatro milhões de espectadores por episódio. Couberam a Olivia Williams e Darren Boyd interpretar a dupla Charlie Zailer e Simon Waterhouse nas telas. Roteirizado por Kate Brooke e Sheelagh Stevenson, “Case Sensitive” foi dirigido por Charles Martin.
Publicado em 2011, “A Outra Casa” é o sexto livro da série “Waterhouse e Zailer”. Ou seja, o leitor deste livro já pega a história dos policiais no meio (mas a trama criminal é nova). Curiosamente, este título marca exatamente a metade da coletânea – sexta obra das onze lançadas até agora. Neste ponto da narrativa, Simon Waterhouse e Charlie Zailer já se casaram e foram viajar de lua de mel para a Espanha. Enquanto a dupla de protagonistas está de férias, o inspetor Sam Kombothekra fica responsável por iniciar as investigações de um crime bastante peculiar. Não é preciso ter lido os volumes anteriores de “Waterhouse e Zailer” para compreender esta narrativa. Sophie Hannah tem a preocupação de contextualizar aos leitores novatos as características das personagens principais (dos policiais e de seus familiares) e os fatos anteriores mais importantes.
O enredo de “A Outra Casa” se passa basicamente entre 17 de julho de 2010 e 17 de setembro de 2010. Em uma madrugada de sexta-feira para sábado, Catriona Louise Bowskill, uma empresária de 34 anos que mora com o marido em Silsford (cidade fictícia no interior da Inglaterra), acessa um famoso site de venda de imóveis. Connie, como ela é chamada pelos amigos e familiares, está interessada em uma residência na Rua Bentley Grove, 11, em Cambridge. A casa foi colocada à venda recentemente pelo valor de 1,2 milhão de libras. Depois de conferir a planta e as fotos do imóvel, Connie clica no botão para fazer um passeio virtual pelo interior da construção. Ao assistir ao vídeo da parte interna da casa, ela leva um susto: no meio da sala tinha um corpo de uma mulher morta.
Desesperada, Connie acorda o marido, Christian Bowskill, que dormia naquele momento no quarto do casal. Ao ser levado para o computador da esposa, Kit (este é o seu apelido) não vê nada estranho. A cena da mulher morta não aparece mais no passeio virtual. Mesmo assim, Connie resolve telefonar para a polícia e uma investigação é iniciada. Como Simon Waterhouse está de férias (em lua de mel com Charlie Zailer pela ensolarada Península Ibérica), o caso é conduzido por Sam Kombothekra. Apesar de achar o episódio bizarro (quem mata uma pessoa e coloca as imagens do crime em um site de venda de imóveis?), o inspetor decide levar à sério os relatos de Connie.
Mal começa a investigação, Sam percebe que a história contada pelo casal Bowskill é muito mais esquisita do que aparentava de início. Connie consultava a casa em Cambridge escondida do marido. Eles não tinham a intenção de se mudar para outra cidade. Para completar, aquele imóvel da Rua Bentley Grove, 11 já tinha aparecido alguns meses antes no GPS do carro de Kit. Quando sua esposa pegou o veículo emprestado e solicitou o caminho até a sua casa, o GPS direcionou para Bentley Grove, 11. A partir daí, Connie começou a suspeitar que o marido a estivesse traindo.
Esse caso suscita alguns questionamentos interessantes. Existe crime sem que um corpo seja encontrado no local apontado pela testemunha? A cena vista ou o vídeo assistido em uma página de internet serve como prova de algo? Podemos falar em assassinato se ninguém sumiu efetivamente ou foi dado como desaparecido? Sem saber o que fazer, o inspetor Sam só tem uma alternativa: telefonar para Simon Waterhouse e pedir ajuda para o melhor policial do distrito. Para frustração de Charlie Zailer, que esperava passar quinze dias de tranquilidade e romantismo ao lado do maridinho, Simon passa a contribuir com o caso a distância. Quanto mais a polícia investiga o casal Bowskill, mais intrigante fica aquele caso. Para piorar ainda mais as coisas, Connie e Kit passam a se ver como inimigos. Cada um deles suspeita que o cônjuge esteja envolvido no possível assassinato.
“A Outra Casa” é um livro volumoso. Ele possui 464 páginas, que estão divididas em 29 capítulos (27 capítulos numerados mais um prefácio e um posfácio). Levei três tardes/noites para concluir esta leitura. Inicie a obra na segunda-feira no finalzinho da tarde e a terminei na quarta-feira à noite. Devo ter levado ao todo entre dez e onze horas para percorrer suas páginas.
De modo geral, “A Outra Casa” é um bom romance policial. Com uma trama original, boa construção de personagens (tanto dos suspeitos quanto dos policiais), um clima constante de suspense e mistério, boas doses de humor e várias reviravoltas no enredo, esta obra de Sophie Hannah não decepciona os fãs deste gênero narrativo. O principal mérito de “A Outra Casa” está em manter o leitor preso às suas páginas o tempo inteiro. Diante de um caso tão intrigante, simplesmente não conseguimos nos desgrudar desta história. À medida que evolui, a narrativa reserva mais mistérios e mais surpresas. Impossível não gostar de um título assim!
O clima de suspense de “A Outra Casa” é potencializado pelo uso de alguns expedientes narrativos interessantes. Sophie Hannah inicia mostrando a planta da casa da Rua Bentley Grove para os leitores, antes mesmo de apresentar a parte textual do livro. Confesso que fiquei analisando os traços da construção, como se pudesse encontrar algo de suspeito logo de cara. Depois, a escritora começa o prefácio (que também pode ser chamado de capítulo zero) com um texto aparentemente desconexo envolvendo o(s) criminoso(s)/suspeito(s) e as vítimas. Impossível não querer descobrir o que está se passando naquela cena. Por fim, temos ao longo dos capítulos do romance as evidências policiais coletadas pelos investigadores. Mesmo não compreendendo onde aquelas peças se encaixam no quebra-cabeça narrativo, ficamos ainda mais curiosos para acompanhar os próximos passos da história.
Simultaneamente à trama policial de bom nível, assistimos a um retrato factual e ácido da realidade no interior da Inglaterra. Possivelmente, esse seja o elemento mais surpreendente desta obra de Sophie Hannah. Em uma crônica de costumes com tintas pesadas, a escritora apresenta o drama de se morar em uma pequena cidade inglesa. Famílias superprotetoras, relacionamentos tóxicos, mães castradoras e carreiras limitadas são os inimigos de muitas personagens, fadadas a passar o restante da vida presos em uma realidade monótona. Não à toa, os problemas psicológicos e as frustrações inundam o dia a dia e os relacionamentos dessas pessoas.
Para quebrar o tom pesado da narrativa (afinal, estamos falando de assassinato, de cotidianos melancólicos e de indivíduos perturbados psicologicamente), Sophie Hannah acrescenta muito humor ao seu livro. “A Outra Casa” tem várias passagens engraçadas. Os melhores momentos são os que Connie Bowskill está na casa dos pais com a irmã, o cunhado e o sobrinho. A tragicomédia de sua rotina familiar consegue cativar o leitor. Além de nos divertirmos com as bizarrices da família de Connie, acabamos nos solidarizando com a moça. Ninguém merece viver desse jeito! O humor do romance é tipicamente inglês (que divide tanto as opiniões – há quem adore e há quem o abomine).
Outro ponto que gostei em “A Outra Casa” foi da construção das personagens. Invariavelmente, Sophie Hannah cria figuras redondas. Inclusive os principais policiais da série são pessoas contraditórias, com pontos positivos e pontos negativos. Isso fica mais claro em Simon Waterhouse. O que podemos dizer de um brilhante detetive que deixa sua esposa frustrada em plena lua de mel, hein? Ele simplesmente não quer fazer sexo com ela. Incrível! Waterhouse é o oposto do estereótipo dos policiais e dos agentes secretos presentes na literatura do século XX, que exalam testosterona e que não titubeiam antes de pular na cama da primeira mulher bonita que passou a sua frente. Se por um lado Simon deixa qualquer machão constrangido pela possível falta de libido, por outro lado ele é o tradicional sabichão (ao melhor estilo Sherlock Holmes e Hercule Poirot), capaz de desvendar qualquer mistério com sua mente privilegiada. Neste livro, o detetive de Hannah acaba lembrando bastante as habilidades de Miss Marple (assim como a detetive de Agatha Christie resolvia os mistérios sem sair de casa, Simon Waterhouse passa mais da metade do romance distante da Inglaterra).
Como um bom romance policial, há muita intertextualidade literária nesta obra. Os investigados e os investigadores estão sempre citando autores, títulos e textos literários. A maior parte das citações engloba a poesia inglesa (um campo que Sophie Hannah domina como ninguém, além de ser uma referência). Por não ser especialista em poesia (muito menos em poesia britânica), admito que fiquei boiando durante as citações dos versos e dos poetas pelas personagens do livro. Se eu conhecia uma ou duas obras poéticas comentadas foi muito.
Para apreciar “A Outra Casa” é preciso colocar na cabeça que este romance possui um duplo conflito: o crime propriamente dito e a dinâmica policial para investigá-lo. Esse é uma das principais qualidades da série “Waterhouse e Zailer”. Por isso, não se assuste quando uma das partes da trama for interrompida para a outra se sobressair. A própria estrutura do livro foi pensada para contemplar essa dinâmica da narrativa. Note que os capítulos pares abordam um aspecto da história enquanto os capítulos ímpares enfocam o outro aspecto. Enquanto a trama de Connie e Kit é narrada em primeira pessoa (por ela), a trama dos policiais é narrada em terceira pessoa (por um narrador observador do tipo onisciente e onipresente quanto à realidade dos investigadores).
De aspecto negativo, tive a impressão de ter encontrado alguns equívocos na tradução de “A Outra Casa”. Essa sensação surgiu principalmente na escolha de alguns tempos verbais e de alguns sujeitos das orações. Sinceramente, não sei se o problema está no texto original ou em sua tradução (feita pelo competente Alexandre Martins). Como não tenho certeza sobre a origem desses tropeções, preferi construir a primeira frase desse parágrafo usando o termo “tive a impressão”. Vai ver que o equívoco seja mais da minha parte (no processo de leitura) do que no texto propriamente dito (produção do original ou da tradução). Se for essa última alternativa, peço desculpas desde já à Sophie Hannah e ao Alexandre Martins (foi mal, pessoal!).
Outra questão delicada deste livro está no gasto de muita tinta (palavras) para contextualizar a história dos detetives para os leitores que não estão envolvidos com a série. Se por um lado esse expediente deixa o romance mais didático (ideal para quem não conhece os outros títulos da coletânea), por outro ele acaba alongando o texto (para desespero de quem sabe o que está acontecendo e já conhece bem as personagens retratadas). Há a sensação de que o livro se estende mais do que deveria.
De qualquer forma, “A Outra Casa” é um romance policial que vale a leitura. Sophie Hannah é uma autora que precisa ser conhecida por quem gosta da moderna literatura internacional. Além disso, “Waterhouse e Zailer” é uma série criminal interessante e original. Se as editoras brasileiras publicassem os demais livros da saga de Simon Waterhouse e Charlie Zailer (principalmente, “Point of Rescue” e “The Other Half Lives”, que merecem a tradução para o português) em ordem cronológica/sequencial, acredito que muitos leitores nacionais poderiam embarcar nessa saga com mais afinco.
Por enquanto, temos que nos contentar com “Uma Certa Crueldade” (Rocco), o romance publicado em 2012 (sétimo volume da coletânea) e que dá sequência à trama imediatamente depois de “A Outra Casa”, “A Vítima Perfeita” (Rocco), de 2015 (nono título) e “O Portador” (Rocco), de 2019 (o décimo primeiro e último episódio da coleção). Quem souber de mais novidades sobre essa série, por gentileza, me avise. Valeu!
Gostou deste post e do conteúdo do Blog Bonas Histórias? Se você é fã de literatura, deixe seu comentário aqui. Para acessar as demais análises literárias, clique em Livros – Crítica Literária. E aproveite para nos acompanhar nas redes sociais – Facebook, Instagram, Twitter e LinkedIn.