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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorRicardo Bonacorci

Livros: A Noite da Espera – O início da trilogia O Lugar Mais Sombrio de Milton Hatoum

Publicado em outubro de 2017, este romance do escritor manauara é o primeiro volume da série literária sobre o drama de um exilado político brasileiro que vive na França na década de 1970.

Volume 1 da Trilogia O Lugar Mais Sombrio, o livro A Noite da Espera é o quarto romance de Milton Hatoum, premiado escritor e tradutor brasileiro

Em uma semana literalmente explosiva em Brasília (sete meses depois do querido Tio Paulo virar manchete nacional ao morrer sem concluir o tão sonhado empréstimo bancário em Bangu, agora foi a vez do amalucado Tio França ganhar os holofotes da mídia por brincar de foguetório de São João na porta do STF), li “A Noite da Espera” (Companhia das Letras), o quarto romance e a sétima publicação autoral de Milton Hatoum. O mais interessante é que este livro ficcional abre a Trilogia “O Lugar Mais Sombrio”, o trabalho literário mais ambicioso do premiadíssimo escritor manauara. Além disso, esta obra de Hatoum aborda com rara felicidade a polarização política e os tempos obscuros de um país engolido pelo terrorismo de extrema-direita. Queiramos ou não, é o presente e o passado dialogando intimamente, seja pelas páginas da literatura, seja pelas páginas dos jornais.


Confesso que “A Noite da Espera” estava adormecido na minha estante há muito, muito tempo (tal qual um defunto na agência bancária ou o corpo carbonizado na Praça dos Três Poderes). Sempre que o pegava para ler, uma leitura inesperada exigia minha atenção imediata. Ou a rotina e a ambientação doméstica não me pareciam suficientemente tranquilas para um bom mergulho dramático. Não sei se os leitores do Bonas Histórias também sentem algo parecido, mas eu preciso estar 100% focado para aproveitar os melhores títulos da literatura brasileira. Ainda mais quando tenho a certeza de que eles renderão posts para a coluna Livros – Crítica Literária, como foi o caso aqui.  


Essa é a justificativa (verdadeira, tá?) para a longa demora em degustar “A Noite da Espera” – desculpe-me o trocadilho involuntário; só o notei quando fiz a vacilante revisão textual. Sem o devido cuidado e sem a máxima concentração, adiava, adiava e adiava o encontro face a face com o volume 1 da série “O Lugar Mais Sombrio”. Para minha aflição (sim, sou do tipo que fica angustiado quando deixo bons títulos fechados na minha biblioteca), a procrastinação durou alguns anos...


Até que na última quarta-feira, milagrosamente, vários planetas do Sistema Solar se enfileiraram em um raro ballet cósmico. Terminei o trabalho simultâneo de edição de dois romances (não me pergunte como isso é possível!) para a EV Publicações pela manhã. E a casa estava assustadoramente calma depois do meio-dia. Como não tinha nada urgente para entregar, não queria fazer nenhuma atividade doméstica (mesmo com o lar imundo e a geladeira totalmente vazia) nem podia ganhar a rua (coisas de joelhos estragados pelas corridas com tênis errado), pensei com a alegria de um menino que está prestes a fazer arte: “poderia ler algo bom nessa agradável tarde de Primavera em Buenos Aires, né?”.

Escritor nascido em 1952 em Manaus, Milton Hatoum é autor de A Noite da Espera, romance histórico sobre um exilado político no período da Ditadura Militar brasileira

Ao jogar o olhar (verde é verdade, mas míiiiiiiiiiope de 10 graus) em direção à prateleira de livros da sala do apê em Saavedra, enfim eu e o livro de Milton Hatoum nos demos match. Uhu! Se não dá para conquistar o coraçãozinho da futura médica natalense da UBA, ao menos me contento em ter em mãos um dos melhores romances da ficção brasileira. Quem ainda duvida dos poderes de meus dois olhinhos claros e ceguetas, hein? E lá fui eu (com os óculos no rosto, claro!) para a tão aguardada leitura deste que é um clássico da literatura contemporânea nacional.


“A Noite da Espera” é um romance histórico protagonizado por um exilado político que vive/viveu, no fim dos anos 1970, em Paris. Misturando dramas familiares e caos político na virada da década de 1960 para a década de 1970, justamente o momento mais tenso da Ditadura Militar brasileira, Hatoum descortina os passos de Martim, o narrador-protagonista recém-saído da adolescência, e de seus jovens amigos universitários. Em uma Brasília sob os efeitos do AI-5 (Ato Institucional Número 5) e da forte repressão policial, a juventude contestadora não mede esforços para confrontar os militares, enquanto vivencia as descobertas sexuais, os prazeres das drogas, as primeiras responsabilidades da vida adulta e a beleza das diferentes representações artísticas.


É bom dizer que o segundo volume de “O Lugar Mais Sombrio” se chama “Pontos de Fuga” (Companhia das Letras), cuja publicação aconteceu em novembro de 2019. Estranhamente, o público leitor ainda não recebeu a parte final desta coletânea. É isso mesmo o que você leu: o tão aguardado terceiro volume da trilogia ainda não foi lançado nas livrarias. Há exatamente cinco anos, o Mercado Editorial espera frustrado o desfecho desta trama de Milton Hatoum. Confesso que não vi a sinalização do autor nem da Companhia das Letras sobre quando o próximo livro da série será disponibilizado. Se algum(a) leitor(a) do Bonas Histórias mais bem informado(a) souber o motivo da longa espera, por favor, compartilhe conosco a solução deste mistério na caixa de comentários lá embaixo. Admito que tenho muita curiosidade para entender o que está atrapalhando a chegada do novo livro às lojas.


Quando publicou “A Noite da Espera” há sete anos, Milton Hatoum já era um dos principais escritores brasileiros. Nascido em 1952 em Manaus, o autor ficcional também é tradutor, professor de Literatura e colunista de jornal. O mais interessante é analisar o quão premiado é seu portfólio ficcional. Não à toa, ele é um dos literatos nacionais que mais admiro.


O primeiro romance de Hatoum é “Relato de Um Certo Oriente” (Companhia de Bolso), de 1989. O livro conquistou o Prêmio Jabuti como Melhor Romance daquela temporada. Nada mal para uma obra de estreia, né? A segunda narrativa longa é “Dois Irmãos” (Companhia de Bolso), título mais impactante até hoje de Milton Hatoum. Lançado em 2000, esse livro foi adaptado para a televisão, para o teatro e para os quadrinhos, além de ter sido traduzido para uma dezena de idiomas. O terceiro romance é “Cinzas do Norte” (Companhia de Bolso), de 2005. Só para variar, essa obra conquistou uma série de honrarias: Jabuti, Livro do Ano, Bravo!, APCA e Portugal Telecom. Tá bom ou você quer mais?!

A Noite da Espera, quarto romance de Milton Hatoum e primeiro volume da Trilogia O Lugar Mais Sombrio, é um drama histórico ambientado na fase mais violenta da Ditadura Militar brasileira

Além dos romances multipremiados, Milton Hatoum também publicou “Cidade Ilhada” (Companhia das Letras), coletânea de contos de 2006, “Órfãos do Eldorado” (Companhia das Letras), novela de 2008 (que alguns críticos literários enxergam como sendo um romance), “Um Solitário à Espreita” (Companhia de Bolso) coletânea de crônicas de 2013, e “A Natureza como Ficção” (Valer), o recente ensaio literário de 2024.


Assim, quando o renomado escritor do Norte do Brasil se propôs, em 2017, a apresentar uma trilogia ficcional, o mercado editorial e os leitores nacionais ficaram empolgados. A expectativa era que Hatoum mostrasse uma faceta mais madura, mais completa e mais impactante de um trabalho literário já sublime. Afinal, estamos falando de um autor com quase meio milhão de exemplares vendidos no país e no exterior. Não dá para fazer uma lista com os 10 ou 20 principais escritores ficcionais do Brasil da atualidade (e quiçá da língua portuguesa) e não colocar o manauara no bololo. Inclusive, não será surpresa nenhuma se ele receber em breve um Prêmio Camões. Entendeu agora o porquê esperei o melhor momento para ler o primeiro volume de “O Lugar Mais Sombrio”?!   


O enredo de “A Noite da Espera” começa em dezembro de 1977. Martim, o narrador-protagonista, vive em um pequeno apartamento em Paris. O rapaz de 26 anos dá aulas particulares de português para alunos franceses e toca música no metrô e em bares em troca de alguns trocados. Ele é um dos tantos exilados políticos brasileiros que precisaram fugir para a Europa. Do contrário, seriam presos, torturados ou mortos pela Ditadura Militar instalada em Brasília 13 anos antes. Mas por que Martim precisou deixar o país natal e se esconder no exterior, hein? É esse o primeiro mistério do romance, que a própria personagem se propõe a elucidar para os curiosos leitores. O jovem professor e músico datilografa na máquina de escrever do apertado apê parisiense sua história. Lembranças, sonhos, traumas e a antiga rotina no Brasil vem à tona enquanto o texto autobiográfico é produzido.   


Assim, retornamos dez anos no tempo. Em dezembro de 1967, Martim, então com 16 anos, vive no bairro do Paraíso, na cidade de São Paulo. Ele mora com a mãe (Lina, uma professora de francês muito carinhosa e mente aberta) e com o pai (Rodolfo, um engenheiro civil religioso, conservador e pouquíssimo emotivo). Contudo, a harmonia familiar (se é que podemos chamar a dinâmica daquela casa dessa maneira) é destruída com o pedido de separação da mãe de Martim.


Lina se apaixona por um pintor do interior de São Paulo e comunica sem pestanejar a Rodolfo que viverá com o novo amor em um sítio em Campinas. O abandono da mulher destrói psicológica e emocionalmente o pai do protagonista. E, claro, abala por consequência toda a estrutura familiar. Inclusive, o relacionamento de Lina com seus pais (os avós de Martim) que vivem em Santos é seriamente afetado. Ninguém concorda com sua decisão de romper o matrimônio. Lembremos que estamos na segunda metade da década de 1960, uma época muito, muito machista e religiosa. O divórcio era visto como uma mácula imperdoável, principalmente quando solicitado pela mulher.

Lançado no Brasil em outubro de 2017, A Noite da Espera é o romance mais ambicioso de Milton Hatoum, escritor e tradutor manauara com vários prêmios literários

Indignado com o que considera uma traição conjugal, Rodolfo se muda para Brasília com o único filho. Ele quer ficar o mais longe possível da ex-mulher. E leva o adolescente consigo mais como uma punição à mãe do rapaz do que por vontade ou afinidade com o garoto. Assim, Martim se vê de repente na capital do país, uma cidade nova e sem nenhum vínculo social. A correspondência com a mãe em Campinas, os telefonemas dos avós em Santos e as ligações e cartas de tio Dácio (irmão de Lina, que é fotógrafo em São Paulo) são as únicas interações mais afetivas que ele tem. Em casa, Rodolfo sequer se preocupa em ver e conversar com o filho. Os dois vivem cada um sua própria solidão e amargura.  


Ao entrar para a faculdade de Arquitetura do Instituto de Artes e Arquitetura da Universidade de Brasília (UnB), Martim faz amizade com uma trupe artística: Lélio (cujo apelido é Nortista), Dinah, Fabius, Lázaro, Angela, Vana etc. Os jovens se tornam inseparáveis. Eles integram a companhia de teatro de Damiano Acante e criam a Tribo, uma revista de literatura e artes. Os amigos de Martim (exceção a Nortista, um rapaz de origem humilde vindo de Manaus – daí o apelido) são de famílias ricas e ligadas ao poder de Brasília (congressistas, empresários, embaixadores, juízes etc.). Para se sustentar, o protagonista do livro consegue emprego na livraria Encontro, de Jorge Alegre, um empresário amante da cultura e com forte engajamento de esquerda.


Dessa forma, o filho de Lina e Rodolfo adentra o universo adulto. Ou melhor dizendo, se insere no mundo da juventude dos anos 1970. Além de se iniciar no sexo com Dinah, sua meio-namorada (a moça parece não ser fiel a nenhum parceiro), e nas drogas com os colegas universitários, o rapaz atua em apresentações teatrais e escreve e traduz poemas para a revista do grupo. Isso enquanto trabalha na livraria de Jorge Alegre e estuda arquitetura.


Contudo, o ambiente político do país começa a pesar. Com a decretação do AI-5 em dezembro de 1968, os militares que se apoderaram do poder passam a perseguir os opositores e a censurar as vozes dissidentes. Qualquer movimento artístico e social é visto como intriga dos subversivos e ação dos terroristas à pátria. Com medo de ser preso, Martim tem uma relação conflituosa com os amigos. Ao mesmo tempo em que não quer perdê-los, teme se envolver em excesso com as causas de esquerda. Além disso, o que o jovem universitário mais anseia é retomar a comunicação com a mãe, que misteriosamente parou de escrever cartas e jamais o visitou no Distrito Federal. Afinal, quais os motivos do distanciamento de Lina?


A partir daí, o romance caminha em duas linhas temporais distintas: Martim vivendo na França (espécie de presente ficcional) e Martim relembrando sua vida em Brasília (passado ficcional). No primeiro caso, a trama do livro vai da virada de 1977 para 1978 até o inverno parisiense de 1979. Ou seja, a história caminha em torno de dois anos. E no segundo enfoque, ela vai da virada de 1967 para 1968 até dezembro de 1972. Portanto, o caminhar dessa parte é um pouco mais longo: cinco anos.

Romance inaugural da Trilogia O Lugar Mais Sombrio, A Noite da Espera é o livro ficcional de Milton Hatoum que relata o drama de Martim, um jovem que se vê abandonado pela família e que precisa se exilar em Paris na década de 1970

“A Noite da Espera” é um romance de tamanho mediano – à título de curiosidade, “Pontos de Fuga”, o segundo título de “O Lugar Mais Sombrio”, é 50% mais volumoso. Essa abertura da trilogia de Milton Hatoum tem 216 páginas, que estão divididas em 26 capítulos. Deles, 25 são numerados e um atua como introdução ou preâmbulo. Levei aproximadamente quatro horas e meia para percorrer integralmente o conteúdo desta obra. Para tal, recorri a duas sessões de leitura de pouco mais de duas horas cada na quarta-feira passada. O intervalo entre as seções também teve mais ou menos essa duração. Assim, comecei o livro às 14 horas e às 21h já o tinha finalizado.


Afinal, o que achei de “A Noite da Espera”, hein? Para começo de conversa (um começo de conversa que já está entrando na quinta lauda – coisa da coluna Livros – Crítica Literária), confesso que fiquei ligeiramente frustrado. Que Hatoum me desculpe pela franqueza excessiva (característica necessária para quem faz análise ficcional séria e independente), mas acho que criei uma expectativa muito grande em relação a esta obra. Quando isso acontece, geralmente as chances de decepção crescem bastante (beijo, Caro). Pelo menos comigo é batata. Então quer dizer que se trata de um romance ruim? Não! Não foi isso o que escrevi. Favor reler minhas últimas frases se você chegou a tal conclusão, querido(a) leitor(a) do Bonas Histórias.


“A Noite da Espera” é uma publicação interessante, forte e sensível. E, claro, tensa e dramática. Só não acho que seja melhor que, por exemplo, “Dois Irmãos” e “Cinzas do Norte”, estes sim títulos espetaculares que deixam os leitores embasbacados. Note que a comparação foi feita propositada e elegantemente dentro do portfólio literário de Milton Hatoum – que apresenta um nível altíssimo de excelência. É verdade também que minha opinião tem como viés o fato de eu não ter concluído a série. Dessa maneira, meu comentário é referente apenas a experiência de leitura de “A Noite da Espera” e não considera a segunda e a terceira partes da trilogia “O Lugar Mais Sombrio” – nem sequer li “Pontos de Fuga”.  


Decepção à parte, vamos combinar que este romance de Hatoum tem vários elementos narrativos positivos. Começamos pela metalinguagem ficcional. Martim, o narrador fictício, utiliza seu passado para construir um livro. Temos, portanto, uma obra literária dentro de outra obra. O mais legal é sentir que o autor real (Milton Hatoum) flerta o tempo inteiro com a autobiografia. Ainda assim, não dá para sabermos o que é verdade (passado do escritor) e o que é ficção (passado de sua personagem). Por exemplo, durante boa parte da leitura, achei que Martim fosse o alter ego do romancista. Às vezes, tive a impressão de que Lélio (o Nortista) tinha alguns elementos do autor real. Como um fã da Teoria Literária, confesso que adoro ser desafiado a tentar enxergar as várias camadas da Realidade Ficcional.    


Outro elemento marcante de “A Noite da Espera” é que a trama acontece em vários espaços narrativos. O romance começa em Paris (Introdução/Preâmbulo). Depois, segue para São Paulo (Capítulo 1) e, enfim, chega à Brasília (Capítulo 2). Mesmo permanecendo quase sempre no Distrito Federal, a história passeia por Santos (Capítulo 3), Campinas (Capítulo 8), Goiânia (Capítulo 12), Ouro Preto (Capítulo 14) e Taguatinga (Capítulo 15). E, claro, vai e volta para a França, onde Martim está no presente ficcional. Quem gosta de um road story, é um prato cheio!

O enredo de A Noite da Espera, sétima publicação de Milton Hatoum, se passa entre os anos 1960 e 1970 e apresenta os dramas familiares e políticos de um jovem que precisa fugir do Brasil

Outra curiosidade desta obra é o tipo de narrador. Por mais que tenhamos um relato em primeira pessoa feito pelo protagonista, a sensação que tive durante a leitura era que estava diante de um romance com múltiplas vozes. Como Milton Hatoum conseguiu esse efeito estilístico? Em primeiro lugar, temos várias cartas sendo apresentadas nos capítulos. Como consequência, não é apenas Martim que fala diretamente para os leitores. Além disso, “A Noite da Espera” é um romance com muitos (e ponha muitos aí!) diálogos. Poderia descrevê-lo até mesmo como um livro com mais conversas do que ações ou descrições. Assim, a impressão é de estarmos diante de uma polifonia e não de um monólogo.


Por falar no discurso, Milton Hatoum utiliza-se das aspas para apresentar as conversas de suas personagens. Isso se dá neste livro e nos outros romances do autor. Confesso que acho um tanto estranho esse recurso, mais comum na literatura norte-americana do que na literatura europeia e sul-americana (que preferem recorrer ao bom e velho travessão). Gostos à parte, não há nenhum problema em usar essa ou aquela sinalização de diálogo (há até quem não use nenhuma). Trata-se do estilo narrativo do romancista que precisamos respeitar e ponto final. Ainda assim, como estamos em uma análise literária que se propõe a esmiuçar os elementos da narrativa ficcional, destaco que não é tão comum de se encontrar na literatura brasileira as aspas.


O que eu gostei bastante neste livro foi a mistura cronológica. O romance caminha em duas linhas temporais separadas por um hiato de uma década: a linha macro parte de dezembro de 1977/janeiro de 1978 e a linha 2 começa em dezembro de 1967/janeiro de 1968. O mistério é entender o que levou o jovem Martim, que foi viver com pai em Brasília, acabar exilado na Europa dez anos mais tarde. Para o leitor não correr o risco de se perder no meio do quebra-cabeça temporal, a abertura dos capítulos e das seções dentro dos capítulos informam previamente onde a trama acontece e quando o relato se sucede.


No meio do parágrafo anterior, citei que o mistério de “A Noite da Espera” é o que o narrador-protagonista fez para precisar fugir do país – questionamento que liga as duas linhas cronológicas do enredo. Como o livro se passa no período mais violento da Ditadura Militar brasileira e conhecemos o círculo de amizade de Martim, não nos parece tão difícil assim fazer elucubrações. Agora se Milton Hatoum irá caminhar para a obviedade ou se irá nos surpreender lá na frente, não sei. Admito que minha intuição diz que será a segunda hipótese – não acredito que o exílio tenha motivos apenas políticos e que esteja relacionado com os colegas universitários de esquerda!  


Por falar nisso, apontar tal suspense como o único mote do romance é uma meia-verdade. Outra curiosidade que mexe com o público leitor é entender os motivos que levaram a mãe de Martim a abandonar a comunicação e o convívio com o filho único. Não faz sentido Lina, uma mulher carinhosa e próxima à família, virar as costas para seu rebento. Por mais que criamos teorias para justificar esse fato (algumas até bem evidentes), ainda assim o livro mantém o mistério da verdadeira razão do abandono materno. Outra vez repito: Hatoum não é um autor que caia no senso comum. Minha vontade é ler “Pontos de Fuga” o quanto antes para entender quais as surpresas que essa história nos reserva.

Publicado em outubro de 2017, A Noite da Espera é o romance histórico de Milton Hatoum que descortina os tempos sombrios da Ditadura Militar Brasileira nas décadas de 1960 e 1970

Já que estamos falando de mistério e suspense, preciso comentar o ritmo narrativo e o clima de tensão que permeia “A Noite da Espera”. Por um lado, a ação da trama é muito lenta. A sensação é que não acontece nada ou quase nada ao longo de vários e vários capítulos. Os leitores mais ansiosos certamente vão reclamar que as personagens ficam num trelelé danado e que nada de bom (ou ruim) se sucede. E quando acontece algo aparentemente impactante (prisão de Martim ao remar no Lago Paranoá, cerco da polícia aos integrantes da Tribo etc.), o desfecho não é tão trágico ou significativo como prevíamos. Se tivesse um termômetro para medir o clima dessa história, diria que ela dificilmente fica morna.


Nesse sentido, este livro de Milton Hatoum me lembrou bastante “Gentlemen” (Record), o romance noir que consagrou o Klas Östergren (que também demorou uma eternidade para publicar a sequência de sua trama mais ambiciosa). Apesar de não acontecer nada de mais nessas duas histórias (acompanhamos a rotina besta de adolescentes/jovens bestas), ainda assim não conseguimos desgrudar os olhos das páginas. Tanto o autor sueco quanto o autor brasileiro são mestres em tornar o cotidiano sem graça e pueril em algo significativo e sedutor.


Porém, o elemento que dá liga a “A Noite da Espera” é a tensão dramática. Seguimos a leitura porque desconfiamos que algo de muito ruim irá acontecer em breve com o protagonista. A certeza disso é o destino de Martim em Paris. Entretanto, não sabemos o que se passou com ele em Brasília (e com sua mãe em Campinas). O clima de pânico social, desmandos políticos, violência estatal, injustiça social, caos matrimonial e angústia familiar é o que transforma a ambientação do livro em uma narrativa pesada e asfixiante. O clima é de um legítimo romance de terror


Aí surge algumas reflexões sagazes em minha nada tranquila mente. Em primeiro lugar, ouço muita gente falar que o Brasil atual vive um momento de grande polarização política e de tensão institucional (abraço, Tio França, e galerinha do Rio do Sul!). Só fala isso quem não conhece a nossa história e não sabe o que foi realmente o auge da Guerra Fria e a fase mais quente da Ditadura Militar Brasileira. Perto daquela época, muito bem retratada por Milton Hatoum em sua trama ficcional, os tempos contemporâneos parecem calmos e românticos (mesmo com uma ou outra ação terrorista no Distrito Federal).


Outra questão que preciso comentar é que muitas pessoas têm a mania de florear os anos 1960 e 1970 como se eles não tivessem sido tensos e extremamente violentos. Minha impressão é que o clima bélico estava o tempo inteiro no ar. Sei da visão negacionista de parte da sociedade brasileira porque fiz, há alguns anos, um post sobre “O Casamento” (Nova Fronteira), único romance de Nelson Rodrigues, para a coluna Livros – Crítica Literária. E, para minha surpresa, alguns leitores do Bonas Histórias afirmaram que o período da Ditadura Militar foi alegre, harmônico e sossegado (beijo, Regina Duarte!). Quem não acredita em mim, vá lá e veja com seus próprios olhinhos os comentários no final da análise. É assustador. Eu e Nelsão fomos acusados até mesmo de esquerdistas por denunciar o período de grande efervescência do país.

A Noite da Espera, quarto romance de Milton Hatoum e primeiro volume da Trilogia O Lugar Mais Sombrio, é um drama histórico ambientado na fase mais violenta da Ditadura Militar brasileira

Por isso, gostei do retrato panorâmico que Milton Hatoum deu para “A Noite da Espera”. Apesar de Martim vivenciar o período de descobertas, amores e aventuras artísticas (a juventude é geralmente a melhor fase da vida), algo que mexe com a imaginação e os sentimentos de qualquer um, não dá para dizer que o Brasil daqueles anos era uma maravilha nem um mar de tranquilidade. Se alguém pensa/pensava de maneira romântica ou idealizada, é porque está/estava brigando com a realidade. Aí não é uma questão de ideologia política ou preferência partidária. É uma mera constatação de um período em que dois lados antagônicos disputavam o poder de um jeito brutal e inconsequente. Note que usei o termo “dois lados” na minha última frase.


Voltando para a narrativa propriamente dita, uma das sacadas geniais de Milton Hatoum em “A Noite da Espera” foi equiparar o ambiente externo (do país) ao ambiente interno (do lar do protagonista do romance). O clima na família de Martim é idêntico ao do Brasil ditatorial. A separação de Lina e Rodolfo é daquele tipo que causa grandes abalos sísmicos e provoca ações e reações intempestivas de todos os lados. O engenheiro civil representa o conservadorismo, a religiosidade e a falta de diálogo da direita. Por sua vez, a professora de francês encara o espírito progressiva, hedonista e inconsequente da esquerda. No meio do caminho tinha um filho. Tinha um filho no meio do caminho. Tal qual milhões de brasileiros inocentes, o pobre Martim se sente oprimido, solitário e abandonado pela família em meio às brigas políticas da nação e do mundo. Encarar a trama do romance pela perspectiva do subtexto potencializa a leitura.


Por fim, destaco a forte intertextualidade artístico-cultural. As personagens estão sempre debatendo literatura, teatro, cinema, música e artes plásticas. O romance de Milton Hatoum se transforma quase que em um guia cultural da época retratada. É bom que se diga que as figuras ficcionais não apenas discutem como se propõe a produzir arte. Aí é um tal de peça de teatro para cá e uma tradução de poesia para lá. Dale gravação de documentário e lançamento de revista literária. E sempre há espaço para um mergulho na comercialização de livros e na busca pelo mecenato artístico.


Impossível não achar incrível uma obra ficcional com tal qualidade, né? Porém, repare que é preciso sensibilidade e um olhar atento para entender as nuances da criação literária e a riqueza da composição narrativa. Certamente as almas mais afoitas e a galerinha com os paladares menos refinados para a produção artística sentirão falta de ação e adrenalina. Até pode ser. Mas não dá para falarmos que o livro é ruim ou mesmo que está abaixo da média do que encontramos nas estantes das livrarias nacionais. A literatura de Milton Hatoum é, mesmo que não surpreenda logo de cara, impecável.


Reafirmo: ainda acho que os maiores e imprevisíveis lances da trama de “O Lugar Mais Sombrio” estão reservados para a segunda e terceira partes. No caso, “A Noite da Espera” é somente a peça introdutória. Se encarada como a apresentação da saga de Martim e de seus amigos, o resultado é brilhante. Contudo, se visto como uma publicação isolada (algo que nunca foi o seu propósito, vamos combinar, né?!), aí temos algumas reticências.

Milton Hatoum é o escritor e tradutor brasileiro que, entre outras obras premiadas, lançou em outubro de 2017 A Noite da Espera, primeiro romance da série literária O Lugar Mais Sombrio

Talvez o único elemento que senti algum desconforto mais significativo foi com o desfecho do romance. Porém, aí é outra vez um gosto pessoal meu. Não aprecio séries literárias que não tenham desenlaces conclusivos a cada obra. Mesmo sabendo que a história prossegue, gosto de ser impactado por um fechamento, mesmo que aberto. Como exemplos deste expediente narrativo, posso citar as séries “A Contrapartida” (Valentina), de Uranio Bonoldi, “O Bom Ditador” (Publicação independente), de Gonçalo J. Nunes Dias, e “As Aventuras do Inspetor Espinosa” (Companhia das Letras) de Luiz Alfredo Garcia-Roza, para ficarmos dentro da literatura contemporânea em língua portuguesa. Afinal, não quero o compromisso de ter que seguir com a coletânea de livros para chegar a um entendimento mesmo que parcial.


Para não choverem pedras (ou fogos de artifício e bombas) sob minha frágil e inquieta cachola, destaco que essa observação está longe de ser uma verdade da Teoria Literária ou um pré-requisito do Mercado Editorial. Há coleções de romances incrivelmente bons que usam a interrupção brusca como mola propulsora da leitura. De cabeça (ainda no lugar), me recordo de “A Tetralogia Napolitana” (Biblioteca Azul), de Elena Ferrante, “Millenium” (Companhia das Letras), de Stieg Larsson, e “A Bicicleta Azul” (BestBolso), de Régine Deforges. Nesses casos, usei como referência o melhor da literatura internacional.


Infelizmente, não sei quando (ou se) vou ler “Pontos de Fuga”. Porém se eu prosseguir com a Trilogia “O Lugar Mais Sombrio”, saibam que vou compartilhar minhas impressões na coluna Livros – Crítica Literária. Ao mesmo tempo em que fiquei curioso para conhecer os próximos passos da misteriosa trama de Milton Hatoum, sei que as imposições de outras leituras podem atrapalhar meus planos. Além do mais, o apê de Saavedra está para receber nas próximas semanas uma enxurrada de visitantes do Brasil, o que abalará consideravelmente a pacífica rotina desse que vos escreve. Para ser bem franco com os leitores do Bonas Histórias, talvez espere o autor manauara lançar a última parte de sua coleção mais ambiciosa para aí sim me aventurar pelas próximas páginas.


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