Publicado em março de 2021, o primeiro título da escritora e ilustradora mineira traz uma narrativa sensível, autobiográfica e de cunho religioso.
No finalzinho de maio, recebi “A Menina que Viu a Lua” (Adonis), o primeiro livro infantil de Janeth Vieira da Silva. Juntamente com a obra veio uma carta muito bonita da escritora e ilustradora me convidando para conhecer sua estreia na literatura comercial. Janeth acabara de participar da Bienal Mineira do Livro e estava empolgada com a repercussão de seu trabalho em Belo Horizonte. Contudo, confesso envergonhado (Raul Seixas cantaria para mim: “Mas confesso abestalhado/que eu estou decepcionado”) que não consegui mergulhar na leitura de “A Menina que Viu a Lua” naquele instante. Muitas vezes, minha lista de títulos para ler é maior do que a minha capacidade para degustá-los. Como faço com todos os materiais que recebo e que me atiçam a curiosidade, coloquei o livro de Janeth Vieira da Silva na minha estante de “próximas leituras”. E no último final de semana consegui, enfim, dar a atenção que ele merecia. Posso até demorar um pouco para ler o que me chega, mas eu sempre leio!
E qual foi minha surpresa ao constatar que temos em “A Menina que Viu a Lua” uma bela trama infantojuvenil capaz de agradar aos paladares mais apurados. Digo que fiquei surpreso porque não conhecia a literatura dessa autora nem sua habilidade no fazer ficcional. Com fortes tintas autobiográficas, um texto sensível, ótimas ilustrações e intensa pegada religiosa, essa obra é voltada tanto para crianças quanto para adultos. Na verdade, a proposta de Janeth é que esse título seja justamente lido em conjunto por pequenos e grandinhos: pais com filhos, avós com netos, tios com sobrinhos e professores com alunos. Além de ter produzido a narrativa de “A Menina que Viu a Lua”, a escritora também desenvolveu as ilustrações que colorem as páginas da publicação. Em um primeiro momento é até difícil apontar o que chama mais atenção aqui: se o texto impecável e em prosa poética ou as imagens impactantes e de traços originais.
Lançado em março de 2021, “A Menina que Viu a Lua” foi publicado pela Editora Adonis, casa editorial localizada em Americana, interior de São Paulo, e especializada na literatura infantojuvenil. Com títulos voltados para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e a Formação Docente, a Adonis possui quase duas centenas de obras, mais de uma centena de autores e dezenas de ilustradores em seu portfólio. Quem curte boas tramas ficcionais direcionadas para a criançada e para os professores na certa ficará encantado(a) com a variedade e a qualidade do catálogo da editora americanense.
Bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), especialista em Plantas Ornamentais e Paisagismo pela UFLA (Universidade Federal de Lavras) e mestre em Engenharia do Ambiente, Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável pela UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro em Portugal), Janeth Vieira da Silva é arquiteta e professora universitária. Mineira de Belo Horizonte, a autora de “A Menina que Viu a Lua” cresceu e morou na maior parte do tempo na capital mineira. Ela ainda vive na belíssima e sempre agradável BH – por falar nisso, beijão Josi Ane!
Janeth sempre foi apaixonada pela literatura e pela ilustração. Contudo, com o trabalho na arquitetura por três décadas e na docência nos últimos sete anos, a paixão pela produção literária e o dom para os desenhos ficaram por muitos anos de lado. Em 2018, todavia, bateu forte a vontade de adentrar para valer no universo ficcional e, principalmente, nas engrenagens da literatura infantojuvenil. A ideia da belo-horizontina era atuar ao mesmo tempo como autora e como ilustradora. O resultado prático dessa iniciativa se chama ”A Menina que Viu a Lua”. O livro levou aproximadamente dois anos para ser desenvolvido. Janeth Vieira da Silva fez primeiramente a trama textual da garotinha Ray e só depois partiu para o desenvolvimento das ilustrações. Os desenhos da obra foram confeccionados no Carnaval de 2021.
Por falar na protagonista dessa publicação, vale a pena dizer que Ray é evidentemente o alter ego da escritora e ilustradora quando pequena. A rotina da garotinha sonhadora, aventureira, tímida, religiosa e que tinha uma conexão especial com a luz de “A Menina que Viu a Lua” foi baseada nas lembranças infantis de Janeth. Por isso temos o termo “baseado em uma história real” estampado na quarta capa. O cenário das aventuras de Ray foi inspirado na casa de Venda Nova, uma das regiões mais antigas de Belo Horizonte, e local onde a autora cresceu e que ainda hoje suscita saudades e lembranças positivas. O lar de Janeth ficava em um terreno com mais de mil m² e era habitada por incontáveis árvores frutíferas e bichinhos. Esse cenário paradisíaco aos olhos de uma criança foi decisivo para o crescimento e para a formação da artista.
Cartão de visita de Janeth Vieira da Silva, “A Menina que Viu a Lua” serviu também de motivação para a escritora abandonar a arquitetura e investir no ofício de ilustradora. Com a proposta de ilustrar os mais diferentes projetos editoriais voltados para crianças e idosos, Janeth criou o Estoriando. Por sua empresa própria, ela faz as ilustrações de livros para outros escritores e elabora retratos, desenhos e estampas a partir de fotografias. Seus clientes são normalmente famílias, casais, eventos e editoras.
O enredo de “A Menina que Viu a Lua” começa com o nascimento de Ray, uma garotinha esperta, sonhadora e disposta a se aventurar pelo mundo. Ela vive em uma casa com um enorme quintal cheio de árvores e bichinhos. A paisagem da residência e as histórias contadas pela avó-madrinha alimentam a já fértil imaginação de Ray. A infância idílica da menina ganha com o tempo a companhia de duas irmãzinhas: Alva e Lily. Mesmo sob o carinho do seio familiar, a segurança do ambiente doméstico e a harmonia da rotina infantil, ainda assim alguns perigos rondam a vida da protagonista. Por isso, ela ganha a proteção de um anjo da guarda de cabelos cor de sol. É ele quem ajudará a pequena amiguinha a fugir de algumas enrascadas pelo quintal de casa.
O que o anjo da guarda não poderá evitar é o surgimento das primeiras frustrações em Ray. Ao crescer e sair do ambiente doméstico e familiar, a garota acaba conhecendo novas pessoas e fazendo novos amiguinhos. Seja na escola, seja na vizinhança, Ray nota o quanto os indivíduos podem ser diferentes um dos outros e ter ações e pensamentos distintos aos seus. À medida que fica exposta às novas interações sociais, ela evidencia comportamentos erráticos e questionáveis, o que a faz refletir sobre a essência da alma humana e as injustiças do mundo. Definitivamente, a vida fora de casa não é tão tranquila e harmônica quanto aquela que ela tinha em seu lar.
Apesar das adversidades e das primeiras frustrações, algo que não muda na menina é a vontade de conhecer o mundão e de se aventurar por novos lugares. Diante desse anseio desbravador, Ray recebe, certa noite, a visita em seu quarto de uma amiga muito especial. Lunita é uma entidade mágica que faz revelações sobre os detalhes da alma humana, o que conforta a menina de certa forma. Além disso, Lunita possibilita que Ray viaje pelas mais diferentes paisagens do planeta em sonhos sinestésicos e extremamente coloridos. Assim, a garota pode conhecer lugares distantes sem correr os perigos do contato com indivíduos indelicados. Inicia-se, a partir daí, as aventuras oníricas e mágicas da personagem principal do livro por cenários grandiosos e exuberantes. Em cada passeio, as duas amigas vão refletir sobre a beleza do universo, as particularidades das emoções das pessoas e a força divina. Com a tutela de Lunita, Ray poderá entender e sentir o mundo de um jeito que os adultos não conseguem.
“A Menina que Viu a Lua” possui 48 páginas e vem em edição bilíngue (texto em português e inglês). Exatamente por isso, o correto teria sido eu chamar desde o início desse post da coluna Livros – Crítica Literária a obra de Janeth Vieira da Silva pelo seu nome completo: “A Menina que Viu a Lua/ The Girl Who Saw The Moon”. Contudo, para fins de simplificação, optei por me referir apenas ao título em nosso idioma. Espero que a autora me perdoe. E já que estamos falando do texto em inglês, a profissional responsável pela versão da narrativa foi Tereza Cristina Brandão Godói Godinho. Por falar em Tereza Cristina, foi a tradutora que convenceu Janeth a batizar a protagonista do livro de Ray. Ou seja, a interação entre escritora e tradutora foi além da mera adaptação textual. Muito legal isso, né?
Levei cerca de trinta minutos para percorrer o conteúdo de “A Menina que Viu a Lua”. Basicamente, li o livro de uma tacada só na tarde do último sábado. Obviamente, as crianças, o público-alvo principal da publicação, devem investir mais tempo nessa leitura – imagino que entre uma e duas horas dependendo do estágio delas no processo de letramento. No caso de uma leitura conjunta de pais e filhos (ou adultos e crianças), a interação entre os leitores, o diálogo que a história suscita e a apreciação das ilustrações de “A Menina que Viu a Lua” irão também contribuir para uma evolução mais cadenciada.
O primeiro aspecto que gostaria de comentar sobre esse título de estreia de Janeth Vieira da Silva é em relação ao seu conteúdo. A trama permite que a molecadinha reflita sobre questões delicadas da primeira infância que todos nós passamos (com maior ou menor intensidade): o ingresso na escola, as primeiras amizades e, principalmente, as difíceis interações com indivíduos tão diferentes da gente. Afinal, não é fácil deixar a segurança do ambiente doméstico e se distanciar do olhar protetor da família. Ao se aventurar por ambientes desconhecidos e interagir com novas pessoas, a meninada vivencia experiências por vezes complicadas e angustiantes. Porém, mais interessante do que a temática em si de “A Menina que Viu a Lua” é a maneira inteligente, sensível e não maniqueísta que a autora e ilustradora mineira propõe o debate sobre as diferenças individuais e familiares. Não à toa, essa particularidade da narrativa é, na minha humilde opinião, a maior riqueza do livro.
Mais legal ainda é que “A Menina que Viu a Lua” não é apenas um livro interessante. Ele também é lindo! As ilustrações de Janeth Vieira da Silva têm traços originais e marcantes. As imagens dialogam intimamente com o universo infantil, onírico e religioso. Na maioria das vezes, a escritora e ilustradora utilizou cores primárias e traços bem definidos. Gostei bastante dos desenhos dela. As ilustrações foram desenvolvidas à mão e à lápis de cor aquarelado sobre o papel Canson. A ideia de Janeth era justamente transmitir a emoção de sua narrativa para os leitores de um jeito menos padronizado e menos digital. Não por acaso, a sensação é que as imagens foram feitas e pintadas à mão e na hora em que folheamos a obra. O efeito disso torna a publicação realmente bonita e singular tanto aos olhos infantis quanto aos olhos dos adultos. Impossível não nos emocionarmos com o casamento bem azeitado de conteúdo textual e composição visual.
Outro elogio que precisa ser feito é para a diagramação do livro. Muitas vezes quando a obra é bilíngue, temos uma poluição visual com os textos dos diferentes idiomas brigando entre si e com as ilustrações ao longo das páginas. Isso não aconteceu em “A Menina que Viu a Lua”. As escolhas visuais e a diagramação dos textos estão primorosas. Nesse ponto, os méritos da belíssima estética do livro devem ser compartilhados com a Editora Adonis e com Paula Leite, a designer gráfica encarregada desse projeto editorial.
Voltando ao conteúdo propriamente dito de “A Menina que Viu a Lua”, gostei também do narrador em terceira pessoa colado à protagonista. Ele tem uma postura crítica aos acontecimentos relatados e um comportamento bastante efusivo. Invariavelmente, o narrador age de maneira calorosa, reagindo e se emocionando com a história de Ray. Ele conversa com os leitores, o que confere certo ar de diálogo ao texto e de transmissão de lições de moral. O uso do tempo verbal no passado (adequadíssimo por sinal) proporciona uma sensação de saudosismo à trama. É como se um adulto contasse suas próprias experiências infantis para a gente. A união dessas características dá maior força narrativa ao livro. Afinal, quem não gosta de confidências pessoais, de um narrador passional e de um texto com pegada dialógica, né? Eu, por exemplo, adoro essa combinação na literatura.
Em “A Menina que Viu a Lua”, temos referências aos elementos celestiais da primeira à última página. Repare na citação recorrente à Lua, ao Sol, às nuvens, aos astronautas, ao anjo da guarda, aos pássaros e a Deus. A impressão é de estarmos o tempo inteiro olhando para cima. O próprio nome da protagonista, se traduzido ao pé da letra para o nosso idioma, remete aos aspectos do céu e da natureza. Até mesmo quando os componentes mais mundanos entram em cena (árvores e montanhas, por exemplo), temos uma perspectiva de grandiosidade e de altura excessiva. Adorei isso! É como se tudo fosse gigantesco para as crianças. Se pensarmos bem, essa é a perspectiva de mundo que elas devem ter na infância. Ou seja, a narrativa abraça para valer o ponto de vista dos pequenos.
O desfecho do livro de Janeth Vieira da Silva está simplesmente espetacular. De um jeito meigo, humilde e poético, a autora convida os pais e as crianças para que eles continuem experimentando novas histórias. Há inclusive um espaço na última página de “A Menina que Viu a Lua” para que os leitores coloquem imagens das próximas aventuras literárias que eles vão participar. Por essa linha de pensamento, o mundo maravilhoso da ficção e a descoberta do mundo pelas crianças não terminam com o fechamento dessa obra, né?
O texto de “A Menina que Viu a Lua” está impecável tanto na parte em português quanto na parte em inglês. Para ser sincero, só achei alguns probleminhas pontuais na diagramação (uma ou outra linha que não foram puladas no meio do discurso), mas nada que prejudique a experiência de leitura. Se você for ler essa obra na versão digital, para o Kindle, na certa não encontrará esses tropeços, pois eles foram corrigidos (algo impossível de ser feito na primeira edição dos exemplares impressos).
Por falar em equívocos, fiquei um pouco incomodado com o fato de a trama ser dirigida ao mesmo tempo para as crianças (filhos) e para os adultos (pais). Normalmente, a falta de uma definição clara do público acaba prejudicando a narrativa. Afinal, quem fala para muita gente acaba não falando para ninguém. E, infelizmente, foi o que aconteceu em “A Menina que Viu a Lua”. As partes que são dirigidas aos adultos me pareceram meio pueris e simplórias, em oposição à profundidade reflexiva e filosófica das partes voltadas para a criançada. Nesse caso, falar para um adulto que ele precisa estar atento às ações das crianças e que deve participar da rotina delas é um tanto óbvio. Por outro lado, procurar mostrar para à meninada o motivo do comportamento errático daquele coleguinha mais impertinente é uma belíssima sacada.
Gostei mais da primeira metade do livro (agruras da construção dos relacionamentos humanos fora de casa e na escola) do que da segunda metade (maravilhas do mundo mágico apresentado a Ray por Lunita). Achei que a obra iria mergulhar com mais intensidade nos dramas de relacionamento de Ray e as descobertas sociais da protagonista na primeira infância. Não é que a segunda parte de “A Menina que Viu a Lua” (viagem mágica da garotinha ao lado da grande amiga) seja ruim, mas ela não é tão rica e profunda quanto à do começo da publicação. É tudo uma questão de expectativa. Como minha expectativa era outra, ficou uma pontinha de decepção. Quem for realizar a leitura do livro de Janeth Vieira da Silva com a mente totalmente aberta (sem tentar adivinhar o caminho narrativo como eu fiz) não deverá cair no meu erro (nem se frustrar).
Outra questão que não gostei foi da forte religiosidade da trama (algo que apareceu com mais força na segunda metade do livro). Ao invés de abordar aspectos práticos de uma determinada religião (ir à missa, adorar Jesus Cristo, rezar à noite...), o texto poderia abrir-se mais para a espiritualidade do que para a religiosidade em si. Afinal, nem todos os leitores comungam das mesmas visões religiosas. Por outro lado, a maioria deles acredita em muitos aspectos convergentes (apesar de cada religião dar um nome diferente para as mesmas coisas). Se pensarmos bem, até os ateus e os agnósticos têm certa espiritualidade. Abordar a religião e não a espiritualidade acabou fechando algumas portas. É uma pena pois o conteúdo de “A Menina que Viu a Lua” merece ser lido por todo mundo independentemente da religião (ou da ausência de religião) dos leitores.
Como já disse, gostei muito desse livro. Ele surpreendeu tanto a criança que tenho internamente dentro de mim quanto o adulto que muitas vezes insiste em monopolizar as ações do meu cotidiano. Acredito que “A Menina que Viu a Lua” é um bom título infantojuvenil para adultos e crianças lerem juntos nessas férias escolares de Inverno. Por falar nisso, é importante salientar que a parada na escola no meio do ano não é motivo para ninguém desgarrar da literatura e dos livros ficcionais, não é mesmo?! Boas férias escolares e muita literatura para os pequenos leitores!
Gostou deste post e do conteúdo do Blog Bonas Histórias? Se você é fã de literatura, deixe seu comentário aqui. Para acessar as demais análises literárias, clique em Livros – Crítica Literária. E aproveite para nos acompanhar nas redes sociais – Facebook, Instagram, Twitter e LinkedIn.