Não é preciso dizer que 2020 acelerou algumas tendências que os especialistas em futurologia projetavam somente para daqui a algumas décadas. Home office, telemedicina, comércio digital, e-learning, comunicação virtual (teleconferências, chamadas por vídeo e lives) e automação residencial, para ficarmos em algumas citações mais concretas, tornaram-se atividades corriqueiras já no ano passado. Outros comportamentos até então inimagináveis viraram usuais: a reclusão social, o medo do contato físico e o esvaziamento das ruas das grandes metrópoles. O que parecia ser exclusivo das páginas da literatura ou das cenas do cinema acabou incorporado ao dia a dia de bilhões de pessoas. Até o finalzinho de 2019, se alguém dissesse que a vida contemporânea teria todos esses componentes simultaneamente, suspeitaríamos que esse indivíduo seria um profeta do apocalipse, teria enlouquecido ou estaria lendo muita ficção científica. Ou as três coisas ao mesmo tempo, né?
Estou trazendo esse tema para o Bonas Histórias porque li, nesta semana, “A Máquina Parou” (Iluminuras), uma das mais famosas novelas de E. M. Forster. Por mais incrível que pareça, o escritor inglês conseguiu retratar nesta narrativa ficcional nossa vida atual com surpreendente fidedignidade. E sabe quando ele escreveu essa trama?! Você não vai acreditar. Em 1909! Ou seja, há mais de um século, quando quase todas as tecnologias citadas na história nem sequer tinham sido inventadas, Forster criou um drama que emula a dinâmica social desse comecinho de anos 2020. Incrível, né? É como se um autor atual escrevesse sobre uma sociedade em 2130 e acertasse em cheio. Por isso, “A Máquina Parou” é uma leitura tão impactante e merecedora de nossa atenção.
Curiosamente, E. M. Forster não se destacou como um autor de ficção científica, como ocorreu, por exemplo, com Júlio Verne, Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Philip K. Dick e H. G. Wells. Nascido em 1879, em Londres, Edward Morgan Forster produziu romances, contos, novelas e ensaios cujos enredos giravam essencialmente em torno de dramas sexuais, mais especificamente de conflitos homoafetivos (o escritor era gay), de lutas de classes e do empoderamento feminino. Suas obras mais famosas foram “Passagem para a Índia” (Nova Fronteira), de 1924, “Um Quarto com Vista” (Globo), de 1908, e “A Mansão” (Círculo de Leitores), de 1910. Recentemente, alguns de seus títulos foram adaptados para o cinema, o que fez aumentar o interesse pela sua obra.
O maior legado que o autor britânico deixou foi para a Teoria Literária e para a Crítica Literária. Estudioso das engrenagens da literatura, E. M. Forster deixou alguns ensaios memoráveis sobre o fazer ficcional. É de sua autoria, por exemplo, a distinção conceitual entre personagens planas e personagens redondas, que apresentamos há alguns anos na coluna Teoria Literária. Pertencente ao Grupo de Bloomsbury, círculo de literatos ingleses do início do século XX com grande poder de mobilização (Virginia Woolf foi sua principal integrante), Forster teve por duas décadas um programa na Rádio BBC sobre a crítica literária.
Publicado em novembro de 1909 na Oxford and Cambridge Review, “A Máquina Parou” é uma das raras incursões de E. M. Forster na ficção científica. Reeditada no Brasil, em 2018, pela Iluminuras, esta obra faz parte da “Trilogia eCultura” da Coleção Livros do Observatório. Essa coletânea é organizada pelo Itaú Cultural e traz reflexões sobre tecnologia, cultura e sociedade a partir de vários pontos de vista e de diversos cenários possíveis. Além de “A Máquina Parou”, integram a “Trilogia eCultura” os seguintes títulos: “A Singularidade Está Próxima: Quando os Humanos Transcendem a Biologia” (Iluminuras), distopia de Ray Kurzweil; e “eCultura, a Utopia Final – Inteligência Artificial e Humanidades” (Iluminuras), ensaio de Teixeira Coelho.
O enredo de “A Máquina Parou” se passa em um futuro indeterminado. Nesse mundo dominado totalmente pelas máquinas, os seres humanos abdicaram da vida tradicional em sociedade e vivem reclusos cada um em sua casa. Usando os aparatos tecnológicos disponíveis, as pessoas conseguem conversar com os familiares e com os amigos em chamadas de vídeo, estudar, trabalhar, ser atendido pelos médicos, receber produtos... Graças aos modernos computadores, os cidadãos não precisam colocar os pés na rua para nada. Para se proteger do Sol, há muito tempo homens e mulheres passaram a viver em cidades subterrâneas.
A tecnologia se tornou um componente tão importante, mas tão importante na rotina dessa avançada civilização que as pessoas entregaram a gestão da sociedade à inteligência artificial. Assim, um computador central, chamado simplesmente de Máquina, adquire poderes supremos – alguém aí se lembrou de “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (2001 – A Space Odyssey: 1968)? Na trama de E. M. Forster, ora a Máquina age como um Deus (tecnologia como religião), ora ela atua como um déspota (tecnologia como governante máximo). A partir dos desígnios do grande computador e de seu livro (uma espécie de manual de instruções que as pessoas devem seguir), os indivíduos dos quatro cantos do planeta moldam suas vidas e seus afazeres diários embaixo da terra.
Nesse ambiente distópico, assistimos aos dramas de Vashti e Kuno. Vashti é uma mulher que vive no hemisfério Sul. Com uma rotina tranquila e sem qualquer preocupação, ela passa o dia totalmente fechada em sua casa subterrânea. Na pequena habitação, a protagonista conversa com os amigos em videochamadas, assiste a uma série de palestras, ministra conferências, ouve música e tenta ter uma ideia nova (uma espécie de trabalho da maioria das pessoas nesse novo mundo). Tudo parece estar caminhando bem até Vashti conversar à distância com Kuno, seu filho, que vive no Hemisfério Norte. O jovem parece estar se rebelando contra o status quo daquela sociedade. Ele anuncia que tem algo muito sério para revelar à mãe, mas que não dirá nada através dos meios eletrônicos. Kuno quer que Vashti o visite em sua casa no outro lado do planeta. Ele quer realizar um diálogo pessoalmente, como os seres humanos faziam antigamente.
Perplexa com a necessidade de ter que viajar para o outro lado do mundo para um simples bate-papo, Vashti se questiona se deve atender à extravagância do filho, em um dos raros pedidos dele, ou se deve permanecer no conforto e na segurança de seu lar. A decisão que ela precisará tomar não é fácil. O que pesará mais: o lado racional e lógico de uma mulher moderna ou o velho instinto materno?
A edição de “A Máquina Parou” da Iluminuras/Itaú Cultural tem 104 páginas. A novela de E. M. Forster está dividida em três partes: “A Nave Aérea”, “O Dispositivo Reparador” e “Os Desabrigados”. Esse é o conteúdo principal do livro, que ocupa aproximadamente 50 páginas. Além da narrativa ficcional do escritor britânico, a obra traz um prefácio e um posfácio produzidos por Teixeira Coelho, que ficou responsável também pela tradução. No prefácio, Coelho apresenta ao leitor a biografia de Forster e a importância de seus títulos. E no longo posfácio (maior até mesmo que a novela), Teixeira Coelho tece uma análise detalhada e impecável do texto de E. M. Forster. Essa última seção da publicação está dividida em nove temas: “A Tecnologia Antecipada”, “A Derrota do Sol”, “O Fim do Corpo”, “Viver Sozinho”, “O Humanismo de Forster”, “Fim da Experiência Direta, Começo da Transcendência”, “A Morte Ainda Vencida, Talvez Não Mais”, “A Humanidade Sobreviverá à Civilização” e “A Cultura da Catástrofe Existencial”. Levei cerca de duas horas para completar a leitura integral deste livro na noite da última terça-feira.
O que chama mais a atenção do leitor em “A Máquina Parou” é a contemporaneidade do seu texto. Não dá para acreditar que E. M. Forster tenha produzido essa narrativa há 112 anos. A quantidade de acertos do autor é admirável. O inglês apresenta vários elementos que se efetivaram: a destruição ambiental, o mergulho dos indivíduos no universo digital, o controle absoluto da rotina através de dispositivos eletrônicos, a onipresença da tecnologia na vida humana, os lares com apenas um indivíduo, o sedentarismo como consequência à automação, a padronização de produtos, do estilo de vida e da arquitetura das cidades, o deslocamento aéreo para grandes distâncias, a invenção de produtos e serviços que hoje são corriqueiros (tablets, chamadas de vídeo, telemedicina, avião) e a crença cega na inteligência artificial. Se olharmos a vida contemporânea durante a quarentena provocada pelo novo coronavírus, esse nível de acerto de Forster é até mesmo mais impactante: a reclusão social (à ponto de a Síndrome da Cabana ter se tornado uma doença comum), o medo do contato físico com outros seres humanos e o declínio das viagens aéreas e da circulação das pessoas pelas cidades.
Outro ponto que merece nossos elogios é a tradução precisa de Teixeira Coelho. O tradutor brasileiro optou por termos genéricos, como no original, para designar produtos (tablets, aviões, computadores) e serviços (Skype, Zoom, redes sociais, telemedicina, Internet, inteligência artificial) que não existiam na época em que E. M. Forster escreveu sua história. A opção pelas palavras abrangentes dá mais concretude e força à narrativa. Assim, aeromoça é chamada simplesmente de atendente, o avião é nave aérea, computador é máquina, tablet é “placa redonda com luz azulada” e assim por diante.
O conflito de “A Máquina Parou” está nas crenças distintas de mãe e filho. Enquanto Vashti aceita a realidade em voga e a versão transmitida pela tecnologia/computador central, Kuno, como um típico jovem, é crítico do status quo e do estilo de vida dos seus contemporâneos. Em outras palavras, se ela é descrente e acomodada, ele é sonhador e contestador. A mãe vê o filho como um louco inconsequente e o filho enxerga a mãe como uma conservadora passiva. O antagonismo de crenças e de visão de mundo dos dois únicos personagens da novela é o que move a trama, que reservas boas surpresas até o desfecho.
Outra questão a ser analisada é o quanto o apreço pela tecnologia pode se tornar uma atitude que se assemelha à fé religiosa. São incontáveis as associações entre a crença cega na modernidade, no progresso da civilização e nos maquinários do homem do futuro e a crença passional na figura divina. Não à toa, o livro que a Máquina tem, uma espécie de manual de instruções com regras que devem ser seguidas pelas pessoas (um paradoxo em relação ao manual de instruções tradicional, que explica como a máquina deve ser operada), é uma espécie de Bíblia/Alcorão/Torá para aquela sociedade. A fé cega nas palavras de uma obra produzida pela máquina é um dos contrapontos tragicômicos dessa história.
A narração de “A Máquina Parou” está em terceira pessoa, algo corriqueiro na ficção científica. Esse recurso permite a descrição pormenorizada dos cenários (o que ficaria inverossímil em um texto na primeira pessoa) e a possibilidade de exploração da ação de mais de uma personagem (nesse caso, apresenta-se simultaneamente o que aconteceu com Vashti e com Kuno).
Algo que pode incomodar um pouco o leitor que não está familiarizado com a dinâmica da ficção científica é o excesso de descrições. E. M. Forster utiliza boa parte do texto da novela para detalhar os cenários, as ações das personagens e o contexto social daquela sociedade futurista. Se por um lado esse recurso trava um pouco a ação da narrativa, por outro lado esse expediente sustenta a ambientação da história. Não dá para pensar em ficção científica sem que o autor reserve uma parte substancial de sua trama às descrições. Ainda mais para uma narrativa tão disruptiva. O que pode explicar um pouco as possíveis reclamações dos leitores nesse sentido é o grau de acerto de Forster. Não duvido que muita gente leia esse livro acreditando que ele foi escrito no ano passado ou há uma ou duas décadas.
Não dá para falar desse livro e não dizer que o posfácio de Teixeira Coelho é excelente. Em uma primeira impressão, confesso que me assustei com o seu tamanho. Sempre fico com um pé atrás com análises que se tornam mais extensas do que as obras enfocadas. Contudo, à medida que fui lendo, entendi o objetivo do crítico literário e tradutor. Teixeira Coelho não apenas esmiuçou a narrativa de Forster (destacando os acertos premonitórios do inglês) como construiu um retrato interessante sobre a sociedade contemporânea. Não cometa o erro de não ler essa parte final da publicação. Ela reserva interessantes argumentações.
“A Máquina Parou” é uma leitura instigante, surpreendente e gostosa para se fazer nesse começo de 2021. Quem gosta de tramas rápidas, algo intrínseco à natureza das novelas, que podem ser feitas em uma única tarde/noite ou em poucas horas, essa narrativa de E. M. Forster é ideal.
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