No início dos anos 1990, Milan Kundera já era um dos autores europeus mais famosos de sua geração. Seu último romance, “A Insustentável Leveza do Ser” (Companhia das Letras), de 1983, tinha se tornado um best-seller internacional. A obra foi inclusive adaptada para o cinema em 1988. O filme recebeu duas indicações ao Oscar. O interesse pela literatura do tcheco era tanto que ele publicou, em 1986, “A Arte do Romance” (Companhia das Letras), um ensaio sobre sua produção ficcional. Não por acaso, esses livros foram analisados no Bonas Histórias nas duas últimas semanas. Esses títulos integram os posts do Desafio Literário de setembro, que ainda têm “A Brincadeira” (Companhia de Bolso), de 1967, e “Risíveis Amores” (Companhia de Bolso), de 1969.
Paradoxalmente, apesar de morar em Paris desde 1975, Milan Kundera continuava ambientando suas narrativas na Tchecoslováquia comunista das décadas passadas. Assim, inevitavelmente, suas tramas adquiriam um tom de forte crítica político-ideológica, por mais que o escritor tentasse destacar o lado filosófico de suas histórias. Esse quadro mudou de uma vez por todas com o lançamento de “A Imortalidade” (Companhia das Letras), seu sexto romance.
Esta publicação inaugura a nova fase da literatura de Kundera. Nesse segundo estágio da carreira, o escritor tcheco abre mão dos conflitos históricos de seu país natal e passa a construir narrativas contemporâneas ambientadas na Europa Ocidental, principalmente na França. Dessa forma, as reflexões existencialistas intensificam-se ainda mais nas páginas de seus novos livros. Além disso, Milan Kundera acrescenta em seus dramas uma pegada mais cosmopolita e uma intrincada mistura de realidade e ficção. Esse é o receituário narrativo de todos os seus romances a partir daí.
Publicado em 1990, “A Imortalidade” foi sucedido por “A Lentidão” (Companhia das Letras), de 1995, “A Identidade” (Companhia das Letras), de 1997, “A Ignorância” (Companhia das Letras), de 2000, e “A Festa da Insignificância” (Companhia das Letras), de 2014. Li “A Imortalidade” neste final de semana. Comecei a leitura na sexta-feira à tarde e a concluí no sábado à noite.
Nesta obra, um escritor nascido na Tchecoslováquia e que escreveu um livro chamado “A Insustentável Leveza do Ser” (sim, Milan Kundera torna-se uma personagem ficcional de si mesmo) é o narrador desta trama (o texto está na primeira pessoa). Ele observa do alto de um prédio uma mulher de 60 ou 65 anos na piscina do clube ao lado. Enquanto espera Avenarius, um amigo de longa data, para um encontro informal em Paris, o romancista acompanha com os olhos o comportamento da senhora em uma aula de hidroginástica. O que mais chama sua atenção naquela cena é o gesto de despedida da mulher para o professor, um rapaz bem mais jovem. Indiferente à discrepância etária, a aluna faz um aceno jovial e sexy para o professor no final da sessão. A imagem na piscina entra no imaginário do tarimbado escritor que passa a idealizar aquela figura feminina.
Agnes, como a senhora é batizada pelo narrador, é formada em matemática, mas optou por um emprego burocrático em um escritório qualquer. Ela é casada há muitos anos com Paulo, um advogado. Eles têm uma filha adulta, Brigite, que mora com os pais em um pequeno apartamento na capital francesa. A rotina entediante de Agnes é quebrada quando um sujeito misterioso aparece em sua casa. Dizendo ser de outro planeta/plano espiritual, o visitante quer saber de Agnes e de Paulo o que eles desejam para uma próxima vida: continuar vivendo juntos ou não se conhecerem? A questão suscita uma reflexão profunda no casal, principalmente em Agnes, a responsável pela tomada de decisão.
Enquanto assiste à trama ficcional construída na França contemporânea, o leitor de “A Imortalidade” é levado a acompanhar em paralelo uma história real do século XIX: a relação tumultuada de Goethe, um dos autores mais famosos da Alemanha, com Betina von Arnim, uma amiga muitas décadas mais jovem. Apesar de Goethe estar casado com Cristiana Vulpius e já ser um sessentão, Betina, que também era casada com o escritor Achim von Arnim, insistia em sua paixão platônica pelo artista mais célebre. Ela enviou centenas de cartas apaixonadas para Goethe e chegou a morar, antes de se casar, um período na casa do poeta, em Weimar. Betina só saiu de lá após uma briga marcante com Cristiana, que não aguentou de ciúmes e expulsou a visitante impertinente. A partir daí, a postura de Goethe em relação à mulher de Achim von Arnim variou entre a amizade amistosa e o estabelecimento de uma distância protocolar.
Se em um primeiro momento a história do início do século XIX não tem aparentemente qualquer relação com a trama do final do século XX, o narrador do romance estabelece as semelhanças e as diferenças entre o matrimônio de Agnes e Paulo e o relacionamento de Betina e Goethe. Para tal, o escritor tcheco (nesse caso, o narrador-personagem de “A Imortalidade”) mergulhará na psicologia e no comportamento de suas personagens, figuras, vale a pena salientar, ora reais ora imaginárias. Assim, o autor constrói uma teia narrativa que ligará os dramas separados em mais de 150 anos.
“A Imortalidade” é um romance parrudo. Ele possui 408 páginas e está dividido em 7 partes e em 114 capítulos. Os capítulos são normalmente curtos. Eles têm em média entre 3 e 4 páginas. Quanto à sua temática, esta publicação aborda assuntos corriqueiros da literatura de Milan Kundera: envelhecimento, individualismo/particularidade, Deus, fé, privacidade, solidariedade, morte, suicídio, eutanásia, solidão, liberdade, beleza versus feiura, amor, paixão, ódio, ideologias, razão versus emoção, sexo, loucura e infidelidade conjugal. Nesse sentido, não temos muitas novidades em relação aos livros anteriores do escritor tcheco. Esses temas são tratados de maneira filosófico-existencialista em todas as histórias de Kundera.
Contudo, o objeto principal de análise do autor dessa vez, como o próprio título da obra expressa, é a questão da imortalidade. Não por acaso, os melhores debates deste livro são referentes justamente a esse assunto. De novidade do ponto de vista temático (ao menos na literatura de Milan Kundera), temos uma interessante discussão sobre o papel do jornalismo (que atua como um quarto poder e, em muitas oportunidades, descamba para o sensacionalismo barato) e sobre os malefícios do consumismo (proliferação de marcas nos países capitalistas e acúmulo desnecessário de bugigangas por seus habitantes).
O que mais gostei em “A Imortalidade” foi da mistura bem azeitada entre ficção e realidade. Página a página, somos surpreendidos com a junção dos dois planos aparentemente tão diferentes. Onde começa (e termina) o real e onde começa (e termina) a invenção literária, hein? É preciso fazer uma leitura atenta e interpretativa para construirmos os muros entre as duas perspectivas. Esta é justamente uma das novidades da segunda fase da literatura de Milan Kundera. Em alguns momentos, a trama de “A Imortalidade” me lembrou muito a pegada dos livros do uruguaio Juan Carlos Onetti, que embaralhava os planos da realidade e da ficção de maneira sublime.
As outras novidades trazidas em “A Imortalidade” são: a trama se passa em Paris (França do final do século XX) e em Weimar (Alemanha da primeira metade do século XIX), cenários mais cosmopolitas do que a Tchecoslováquia comunista das obras anteriores; e o conflito desvinculado dos contextos político-ideológicos da Guerra Fria (que, quando muito, são citados rapidamente pelo autor em suas reflexões filosóficas), uma marca dos primeiros títulos de Kundera.
Também gostei bastante da maneira como o autor construiu as personagens e desenvolveu as cenas deste livro. Muitos episódios e várias figuras retratadas têm, em um primeiro momento, a aparência de banalidade (pouca importância). Entretanto, alguns capítulos à frente, esses mesmos elementos (cenas, situações e indivíduos) adquirem papel central na trama. Nada em “A Imortalidade” é por acaso. O leitor só entende uma determinada passagem da história ou um comportamento específico de uma personagem se fizer a relação com algo que o narrador contou despretensiosamente lá atrás ou que citará corriqueiramente lá na frente. É incrível perceber essas conexões acontecendo no meio do livro.
De resto, “A Imortalidade” segue o padrão dos romances anteriores de Milan Kundera: as personagens são normalmente figuras melancólicas, solitárias, infiéis e com vazio existencial; é difícil encontrar alguém feliz e plenamente realizado com sua vida e seus relacionamentos; o casamento continua sendo um fardo pesado demais para ser carregado e as traições conjugais se proliferam; os dramas dos protagonistas são essencialmente de natureza existencialista; há muitas cenas eróticas; o livro é dividido em sete partes; analisa-se uma mesma cena várias vezes por perspectivas distintas (e complementares); há o detalhamento da banalidade das vidas dos protagonistas; e a narrativa central é envolta com muitas e longas divagações filosóficas.
Se as três últimas características citadas no parágrafo acima dão profundidade e riqueza ao romance, por outro lado, elas quebram o ritmo da história. Os leitores mais ansiosos na certa vão chiar. Sabendo disso, Milan Kundera brincou com essa característica de “A Imortalidade” (e de todos os seus livros) no próprio texto. Esta é uma das partes mais engraçadas da obra - o autor transmutado em seu narrador-personagem justifica aos leitores o seu estilo. É espetacular!
Nota-se, em “A Imortalidade”, uma forte intertextualidade literária, musical, política e pictórica. Nas páginas deste livro, são citados inúmeros autores (Hemingway, Goethe, Shakespeare, Robert Musil, Voltaire, Achim von Arnim, George Orwell, Agatha Christie, Miguel de Cervantes, Fiódor Dostoievski, Alexandre Dumas, Rodin, Arthur Schnitzler, Salinger, Franz Kafka, André Breton), músicos (Wagner, Bach, Beethoven, Chopin), políticos (François Mitterrand, Adolf Hitler, Valéry Giscard d´Estaing, Jimmy Carter, Napoleão, Nixon, Stalin, Robespierre, Lênin, Kennedy, Fidel Castro) e pintores (Salvador Dalí, Pablo Picasso, Rembrandt, Delacroix, Manet, Monet, Bonnard, Matisse, Cézanne, Braque, Miró, Ernest).
Por falar em intertextualidade, Milan Kundera cita direta ou indiretamente muitas de suas obras no meio da narrativa de “A Imortalidade”. Na maioria dos casos, ele não expressa nominalmente seus títulos anteriores, mas os deixa no ar. Ele faz isso usando palavras chaves: brincadeira refere-se a “A Brincadeira”, risíveis a “Risíveis Amores”, valsa a “A Valsa dos Adeuses” (Companhia das Letras), riso e esquecimento a “O Livro do Riso e do Esquecimento” (Companhia das Letras). Somente “A Insustentável Leveza do Ser” é citado explicitamente. Veja, a seguir, um trecho do livro em que isso acontece:
“Avenarius guardou um silêncio embaraçado, depois perguntou gentilmente:
- E qual será o título do seu romance?
- A Insustentável Leveza do Ser.
- Mas esse título já está tomado.
- Sim. Por mim! Mas na época me enganei de título. Ele deveria pertencer ao romance que estou escrevendo agora.
Continuamos em silêncio, atentos somente ao gosto do vinho e do pato”.
Milan Kundera é o tipo de autor que pega cenas corriqueiras do cotidiano (gesto de despedida de uma mulher mais velha para o professor de hidroginástica ou a correspondência insistente de uma amiga para o escritor famoso) e constrói romances filosóficos a partir da interpretação dos comportamentos das pessoas comuns. Para gostar da literatura do tcheco, é preciso compreender essa pegada analítica de suas narrativas. Mais importante do que a história em si, é o jeito como o escritor olha para os dramas de suas personagens. Nessa perspectiva, os romances de Milan Kundera se tornam sensacionais. Com sensibilidade, acuracidade e extrema profundidade, ele descortina as angústias existencialistas de homens e mulheres do século XX. Sob essa ótica, gostei muito de “A Imortalidade”.
Darei continuidade ao Desafio Literário de setembro com a análise do último romance de Milan Kundera, “A Festa da Insignificância” (Companhia das Letras). Lançado em 2014, esse é o livro mais recente do autor. O post de “A Festa da Insignificância” estará disponível no Bonas Histórias na próxima quinta-feira, dia 26. Não perca!
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