Publicada em julho de 2020, essa novela é o sétimo livro do autor português e sua obra mais disruptiva até aqui.
Um dos aspectos mais interessantes de se ter um blog de literatura é a oportunidade de conhecermos os novos talentos da escrita. Jovens escritores e editoras em crescimento remetem seus livros para análise e, entre a multidão de materiais recebidos, sempre descobrimos uma ou outra obra de alta qualidade. Quando isso acontece, o crítico literário se sente como o olheiro que descobriu a nova promessa dos campos de futebol, como o jornalista que deu o furo de reportagem que será comentado por muito tempo ou como o garimpeiro que, depois de meses de trabalho árduo nos recôncavos da terra, achou uma grande pepita de ouro.
Pela perspectiva da literatura, o complicadíssimo ano de 2020 foi um período fértil de descobertas para o Bonas Histórias. Em janeiro, fiquei encantado com o romance “A Peste das Batatas” (Pomelo), uma sátira política das mais criativas de Paulo Sousa, escritor paulistano estreante nas narrativas longas. Em agosto, comentei no blog “Conte Outra Vez” (ebook independente), a bela coletânea de contos organizada por T. K. Pereira e com histórias que remetem às músicas de Raul Seixas. E em dezembro agora, fiquei de queixo caído com o espetacular “Passatempoemas” (Quelônio), a antologia poética de Carolina Zuppo Abed que une poesia e jogos de passatempo. Carolina não é uma novata na literatura, mas esse título é apenas a sua terceira publicação – a segunda em versos. Gostei tanto desta obra que irei comentá-la na quarta-feira da semana que vem, dia 16.
Entre os vários destaques, o escritor que mais chamou a minha atenção neste ano foi o português José Vieira. Ele lançou, em julho, sua sétima publicação, a novela “A Dor do Esquecimento” (Chiado Books). Ou seja, não se trata de um autor tão novato assim, mas como seu trabalho literário ainda não é muito conhecido, principalmente no Brasil, tomei a liberdade de chamá-lo de revelação. Dos novíssimos nomes da literatura portuguesa, os dois que mais gostei nos últimos anos foram justamente José Vieira (grata surpresa de 2020) e Gonçalo J. Nunes Dias (a revelação do ano passado), autor da trilogia “O Bom Ditador” - série narrativa que ainda ganhará uma análise no Bonas Histórias (prometo!). Dos veteranos, meus autores lusitanos favoritos ainda são António Lobo Antunes, Ana Teresa Pereira e, o hors concours, José Saramago.
José Vieira é o pseudônimo de Teresa Vieira Lobo, uma jovem de 31 anos. Nascida em Gaula, bairro do município de Santa Cruz, na Ilha da Madeira, ela é apaixonada desde pequena pela literatura. Não demorou muito para seu fascínio pela leitura se transformar em paixão pela escrita. Tímida e um tanto temerosa com a exposição de seus textos ficcionais, Teresa escolheu o nome do avô materno como assinatura quando se lançou na produção literária há seis anos. Atualmente, Teresa Vieira Lobo/José Vieira possui narrativas e poemas publicados tanto em revistas literárias quanto em livros e ebooks. À medida que seu portfólio foi crescendo e se consolidando ano a ano, a escritora portuguesa ficou em dúvida: manter o pseudônimo original ou adotar de vez o próprio nome. A escolha que homenageia o avô prevaleceu, apesar do receio de se expor ter ficado para trás. Assim, temos José Vieira como o nome artístico de Teresa Vieira Lobo. Como essa foi a opção da autora, vou me referir preferencialmente a ela sempre pelo seu pseudônimo masculino.
A especialidade de José Vieira está nas narrativas históricas. Navegando com o mesmo talento pelo romance, novelas, coletâneas de contos e coleção de poesias, o escritor madeirense apresenta os dramas familiares e amorosos de seus conterrâneos. Em seus textos, temos uma Ilha da Madeira completamente diferente do paraíso turístico que os brasileiros conhecem hoje. Esqueça, portanto, o pedaço do Bolo do Caco, o gole de Poncha ou do vinho da Madeira, o onipresente azul-profundo do oceano, o charme das encostas escarpadas, a estátua de Cristiano Ronaldo a dar as boas-vindas aos visitantes, o sotaque ilhéu carregado de chiados (até mais do que o dos lusitanos do continente), a pista do aeroporto que coloca à prova as emoções de viajantes e tripulantes, a brutalidade da natureza, as trilhas exuberantes dentro dos parques naturais, as estradas estreitas e vertiginosas, o clima britânico, as encantadoras toalhas de mesa bordadas à mão, o colorido do centrinho de Funchal, o saboroso (e feio) peixe-espada-preto, a deliciosa descida de carros de cestos, a viagem de bondinho, o verde profundo do jardim botânico... Apague de sua memória a realidade do século XXI!
A Ilha da Madeira de José Vieira é aquela do final do século XIX e do início do século XX. Nesse período, os povoados madeirenses eram essencialmente agrícolas e estavam quase totalmente isolados do continente. Seus habitantes viviam em intensa pobreza, padeciam de forte desigualdade social e eram afetados por tragédias climáticas, econômicas e humanas. Ou seja, tínhamos o cenário perfeito para o desenvolvimento de dramas épicos. E é justamente esse o enredo prioritário de Vieira. Ele mergulha nos conflitos antigos de seus conterrâneos, principalmente sob o ponto de vista feminino, e revive os tempos sombrios (que me desculpem os açorianos!) do mais querido arquipélago português (apesar do nome, a Ilha da Madeira é na verdade um arquipélago constituído de quatro ilhas).
Em um primeiro momento, as leituras dos livros de José Vieira me remeteram mais ao Alentejo do que a própria Ilha da Madeira. Em muitos casos, os cenários das narrativas do jovem escritor português são muito parecidos ao de “Aldeia Nova” (Caminho), coletânea de contos de Manuel da Fonseca, e de “Levantado do Chão” (Companhia das Letras), romance de José Saramago. Daí a minha impressão equivocada. Por isso, foi surpreendente descobrir que as tramas de Vieira não se passavam no continente e sim na terra natal dos meus avós maternos. Como neto de madeirenses (particularidade revelada no post do mês passado em que homenageio o centenário de nascimento de Amália Rodrigues), conheci desde pequeno o sofrimento dos meus antepassados, que diante de tanta adversidade preferiram encarar o Oceano Atlântico e aportar no Brasil. No caso dos Gouveia e dos Teixeira dos quais descendo, essa jornada marítima ocorreu na década de 1930, um dos períodos retratados por José Vieira. Confesso que essa semelhança me emocionou bastante. Assistir às personagens que poderiam ter sido meus bisavós, avós, tios e primos tornou minha leitura ainda mais intensa.
Além disso, ver os dramas de aldeias portuguesas tão pequenininhas e sofridas da segunda metade do século retrasado e da primeira metade do século passado é algo muito distinto da realidade dos leitores que moram hoje em cidades grandes do Novo Mundo. Em pleno século XXI, a minha cidade, São Paulo, tem 12 milhões de habitantes e a maioria de suas famílias é formada por imigrantes: portugueses, espanhóis, italianos, alemães, ucranianos, húngaros, japoneses, coreanos, chineses, turcos, sírios, libaneses, marroquinos, nigerianos, angolanos, moçambicanos, bolivianos, haitianos, paraguaios... Isso para não falar dos migrantes internos (nordestinos, nortistas, sulinos, mineiros, interioranos). De certa forma, a realidade construída por José Vieira em suas narrativas ficcionais dialoga intimamente com as histórias de muitas famílias paulistanas e brasileiras. Impossível não gostar e não se emocionar com uma literatura com essa pegada histórica e de diálogo interoceânico/multinacional.
Antes de entrar na análise propriamente de “A Dor do Esquecimento”, o assunto central do post de hoje da coluna Livros – Crítica Literária (acredite, logo mais vou falar da novela recém-lançada), sinto a necessidade de apresentar a trajetória de publicações de José Vieira. Afinal, nem todo mundo o conhece (ainda). E essa breve retrospectiva do portfólio do autor português irá nos ajudar a entender o quão diferente é “A Dor do Esquecimento” se comparado aos títulos anteriores.
José Vieira estreou na literatura comercial, em 2014, com “Estranhas Coincidências” (Chiado Editora), uma coletânea de contos. Em quatro narrativas curtas (“A Partida de Judite”, “Samuel, o Pastor Envelhecido”, “Amor Perdido” e “Estranhas Coincidências”), o livro apresenta antigas tragédias pessoais e familiares dos habitantes da Ilha da Madeira. As tramas de “Estranhas Coincidências” são embaladas pela variação das estações do ano e por severas críticas sociais e políticas (temos um narrador engajado que não se omite – ele dá a sua opinião). O mais legal de tudo é notar que o autor madeirense sabe fazer os acontecimentos tristes do passado se tornarem bonitos quando transformados em dramas literários. Além disso, desde a sua estreia, Vieira parecia demonstrar grande maturidade artística e ciência total do que escreveria dali em diante.
Meu livro preferido é o segundo, “Dedicação, Palavra e Honra” (ebook independente), lançado dois anos mais tarde. Nesse romance histórico impecável, assistimos a uma mistura de dramas sentimentais (encontros e desencontros amorosos) com uma belíssima crônica da aldeia. Com uma prosa poética, dramas genuínos, boa reconstituição de época e retrato forte das mulheres madeirenses, José Vieira consegue surpreender o leitor até o final (confesso que achei que Joana fosse engravidar do médico Afonso, para indignação de Francisco...). Quanto ao título, “Dedicação, Palavra e Honra” me lembrou os nomes longos dos romances de Jane Austen. Sem dúvida nenhuma, este é o melhor livro do autor até aqui (principalmente por ter conseguido dar fôlego a uma história – esta é a única narrativa longa do seu portfólio).
Em 2017, José Vieira publicou “Adágios” (Chiado Editora), outra coletânea de contos. Nas cinco histórias dessa obra (“O Milagre de Adelaide”, “A Tristeza de Josefina”, “As Lágrimas de Guilhermina”, “As Vivências de Eva” e “O Triste Fado de Graça”), encontramos o mesmo padrão estabelecido em “Estranhas Coincidências” e “Dedicação, Palavra e Honra”: narração feita, na maioria das vezes, em terceira pessoa; narrador onisciente e onipresente que fica indignado com a situação difícil dos madeirenses; foco narrativo colado a personagens femininas; mortes prematuras (viuvez precoce, orfandade, perda dos filhos ainda pequenos); muita solidão; amores frustrados/abreviados; sensação de aprisionamento (vontade de fugir da ilha); nomes quase sempre bíblicos; desfechos melancólicos; ambiente opressivo da cidade pequena/aldeia isolada (eterna vigília da moral e dos bons costumes dos moradores); suicídio como caminho para aplacar as dores da mente; loucura como sinal de arrependimento; sexo como ato pecaminoso e imoral (quando feito fora do casamento); sociedade influenciada fortemente pelo conservadorismo do catolicismo; casamento e filhos como a grande meta da vida das mulheres (visão machista da época); crítica social (apontamento das injustiças, da fofoca, do machismo, da violência, das contradições religiosas); construção de personagens femininas fortes e marcantes (tenho a impressão que as madeirenses são assim mesmo); desenvolvimento de personagens planas; maniqueísmo acentuado das tramas; e tendência para sumarizar algumas boas passagens narrativas que poderiam muito bem se transformar em cenas.
Em 2018, Vieira publicou dois livros: “(In)Constante” (ebook independente), coleção de poesias, e “Paralelismos” (ebook independente), sua terceira coletânea de contos. “(In)Constante” é uma bela obra poética, principalmente se considerarmos que seu autor é mais fluente na prosa. Em muitos versos, José Vieira incorpora as vozes de suas personagens e de seus narradores ficcionais. Em outros versos, ele parece dar voz aos anseios e angústias da própria Teresa Vieira Lobo. O resultado dessa mescla é satisfatório. Admito que eu não entendo nada (ou quase nada) de poesia (sou especialista em prosa), mesmo assim adorei “(In)Constante”. Com grande liberdade formal (típico da poesia moderna/pós-moderna), o escritor português trabalha questões como a morte, a busca pela felicidade, a vontade de partir/fugir, a dureza da vida das pessoas que têm pouco, os prazeres simples da vida (viver perto da natureza e encontrar boas amizades e amores memoráveis) e as angústias íntimas.
Em “Paralelismos”, Vieira continua retratando os dramas femininos maravilhosamente bem ao mesmo tempo em que apresenta as crônicas ácidas da aldeia. Achei os três contos desta coletânea (“Maria e Seus Sete Colares”, “A Libertação de Olívia” e “O Pecado de Madalena”) superiores às narrativas das outras coletâneas de contos. Essa evolução fica nítida quando reparamos que o autor português conseguiu, neste livro, imprimir intrigas ainda mais fortes e construir protagonistas redondas. As histórias de “Paralelismos” são impecáveis! Depois de “Dedicação, Palavra e Honra”, esse é o melhor trabalho literário de José Vieira.
“Alecrim” (ebook independente), novela lançada no ano passado, é a sexta publicação do madeirense. Nessa obra, acompanhamos o relato de uma história real colhida na família de José Vieira. Este livro me lembrou o desfecho de “Amor de Perdição” (Ática), clássico de Camilo Castelo Branco. Afinal, o romance romântico diz, em seu desenlace, ser um enredo inspirado na vida do tio-avô de Castelo Branco. No caso das tramas ficcionais de Vieira, tive a impressão de que todas elas (contos, novelas e romance) foram desenvolvidas a partir de histórias reais (o que demonstra o quanto são verossímeis). Em “Alecrim”, achei que o jovem escritor lusitano perdeu uma boa oportunidade para construir uma narrativa mais longa (romance). A história é ótima, as personagens são excelentes e o conflito dramático consegue cativar o leitor. Se algumas passagens mais sumarizadas fossem transformadas em cenas, aí sim teríamos um romance.
Uma vez conhecido o repertório literário de José Vieira, me pareceu que “A Dor do Esquecimento” é o seu livro mais disruptivo (sim, agora vamos falar do seu recente lançamento!). Nessa novela, temos uma trama contemporânea, uma narração em primeira pessoa e uma história com elementos de thriller psicológico, três características até então inéditas ou pouco exploradas na literatura de Vieira. Por outro lado, alguns aspectos não mudam: personagens femininas fortes; enredo com uma sucessão interminável de tragédias pessoais e familiares capaz de emocionar até mesmo os corações mais duros; e prosa extremamente elegante, típico de alguém que domina as ferramentas da narrativa ficcional.
Confesso que, no início, fui pego de surpresa com o conteúdo de “A Dor do Esquecimento”. Não esperava um livro que fugisse tanto do estilo estilístico de José Vieira (ainda mais porque tinha me apaixonado por suas tramas históricas). Entretanto, depois do susto inicial, acredito que seja válido essa mudança de caminho narrativo. A busca por novas temáticas e por outros gêneros narrativos só indica que estamos diante de um escritor pouco acomodado e tentando descortinar novas trilhas dramáticas. Sob tal ponto de vista, é salutar os riscos assumidos por Vieira de fazer algo tão diferente e que fugisse tanto de sua zona de conforto. Se enxergarmos essa novela como uma história experimental, ela possui mais aspectos positivos do que negativos.
O enredo de “A Dor do Esquecimento” se passa quase totalmente em um asilo para idosos. Madalena, uma médica pediatra de 58 anos, acabou de ser internada. Ela registra em uma espécie de diário as angústias por estar presa ali e a injustiça de ser a mais jovem paciente da clínica. Madalena tem raiva principalmente de João, seu irmão caçula. Foi ele quem a abandonou sem a menor piedade no meio de tanta gente desconhecida. A antiga doutora passa os dias entre colegas senis e um mar de mulheres de uniforme azul. A diretora da instituição até tenta explicar para Madalena que ela está muito doente, por isso está internada no asilo. Porém, a paciente novata se sente com a saúde perfeita, não acreditando no que lhe é dito.
Enquanto relata seu desespero atual, a narradora-protagonista aproveita para recordar as boas e as más lembranças de sua vida: a infância inocente, as férias encantadoras na quinta dos avós, a primeira paixão, o aborto realizado na juventude, a tristeza pela morte dos familiares mais próximos (pais e avós), a ótima relação com o irmão, o casamento com o homem que amava, o trabalho como pediatra em um hospital, os sete anos de intensa felicidade ao lado do marido, a descoberta da infertilidade, a doença do esposo e a viuvez precoce.
Em contraste com o cenário belíssimo da clínica, uma construção grandiosa que fica em meio à natureza exuberante, assistimos ao turbilhão emocional de Madalena. Casado e com três filhas, João é o único parente direto da personagem principal que ainda está vivo. Por isso mesmo, Madalena sente tanta falta do irmão, em um sumiço inexplicável. Por que será que ele a abandonou naquele lugar impessoal, frio e com pessoas tão duras? Esse é um dos mistérios que os leitores vão descobrir ao longo do texto de José Vieira.
“A Dor do Esquecimento” é um livro curtinho. Ele possui apenas 92 páginas. Levei aproximadamente uma hora para percorrer todo o seu conteúdo no último final de semana. Comecei a leitura no sábado às quatro horas da tarde e às cinco já estava com o livro fechado.
Em termos estruturais da narrativa, “A Dor do Esquecimento” tem duas fases. Na primeira metade da novela (nas 50 páginas iniciais), temos um thriller psicológico. Essa é a parte mais interessante do livro. A pergunta que o leitor se faz é: o que está acontecendo com a protagonista?! Madalena está confusa, não sabe o motivo de sua internação no asilo e está evidentemente desesperada para obter respostas para seus questionamentos. Pouco a pouco, começamos a descobrir o que está acontecendo com ela. Curiosamente, nós, os leitores, fazemos descobertas relevantes antes mesmo da personagem principal. Esse recurso literário é excelente e foi muito bem usado por José Vieira. Quando entendemos que Madalena é uma narradora pouquíssimo confiável, a obra ganha em dimensão e embarcamos para valer em seus dilemas psicológicos.
A segunda fase da novela é o drama existencial de Madalena. Estendendo-se pelas 42 páginas finais do livro, essa etapa da narrativa inicia-se após João aparecer na clínica e contar para a irmã o que está efetivamente se passando com ela. A cena da conversa das duas personagens é um dos capítulos mais fortes e impactantes dessa publicação. Após esse diálogo, o mistério se dissolve completamente. Aí a pergunta que o leitor se faz é: o que acontecerá a partir de agora com Madalena? Em termos narrativos, o livro perde um pouco de fôlego nessa nova fase, apesar de reservar boas surpresas até o desfecho.
Para mim, o principal problema de “A Dor do Esquecimento” está justamente na revelação precoce do que se passa com Madalena. Se João não tivesse estragado o suspense contando-nos o que está acontecendo com a irmã, teríamos a manutenção do mistério até o finalzinho. Além disso, a cena em que a narradora-protagonista retorna do hospital e encara a placa na frente do asilo teria um potencial dramático bombástico (até mais forte do que o diálogo no meio da trama), capaz de derrubar o leitor da cadeira. Como já sabíamos o que estava acontecendo com Madalena, infelizmente, essa cena perde grande parte de sua força. Na minha visão, essa passagem deveria ser o clímax do livro (e não o depoimento de João entre as páginas 47 e 49).
Mesmo com esse probleminha de ordem narrativa, “A Dor do Esquecimento” é um suspense de alto nível e, na sequência, um drama emocionante. Como enredo, essa última publicação de José Vieira lembra “Leite Derramado” (Companhia das Letras), um dos livros mais populares de Chico Buarque (ambas as obras têm narradores idosos e nada confiáveis), “O Rabino” (Rocco), o romance de estreia de Noah Gordon (Madalena me lembrou Leslie, a esposa doente de Michael Kind) e “O Silêncio das Montanhas” (Globo), a terceira narrativa longa de Khaled Hosseini (a relação entre Madalena e João é parecida ao dos irmãos Pari e Abdullah no desfecho do romance do escritor afegão). Em uma analogia mais distante, “A Dor do Esquecimento” pode lembrar “Água para Elefantes” (Sextante), romance mais famoso de Sara Gruen (na parte, obviamente, em que a história se passa dentro do asilo de idosos), de “Um Estranho no Ninho” (Record), de Ken Kesey (Madalena age às vezes como R. P. McMurphy) e “Veronika Decide Morrer” (Objetiva), trama de Paulo Coelho (quando a narradora tenta se matar).
O ponto alto de “A Dor do Esquecimento” está em seu narrador em primeira pessoa pouquíssimo confiável. Sutilmente, somos apresentados aos problemas da protagonista e às contradições de sua versão da história. Cabe ao leitor a montagem do quebra-cabeça textual que lhe é exposto despedaçado/desmontado. Sempre que José Vieira embaralha as coisas e não tem a preocupação de ser didático, sua trama eleva-se diante do leitor mais exigente.
Outro aspecto que merece ser elogiado é o projeto gráfico de “A Dor do Esquecimento”. Repare na beleza da ilustração da capa e na força da cor (violeta ou roxo) da quarta-capa. A imagem da capa faz referência ao ditado popular “memória de elefante” – uma contradição bem-vinda em relação ao drama da protagonista da novela. O mais legal é que o visual do livro acompanha a elegância do texto de José Vieira. A capa é sensacional (simples e belíssima). Se pensarmos bem, há até mesmo uma forte intertextualidade literária na imagem do elefante. Confesso que me recordei de alguns títulos importantes da literatura portuguesa, como “A Viagem do Elefante” (Companhia das Letras), romance de José Saramago, e principalmente de “Memória de Elefante” (Alfaguara), um dos primeiros livros de António Lobo Antunes.
Para o leitor brasileiro, enveredar pelo português de Portugal é um dos atrativos irresistíveis da leitura de José Vieira (ainda mais para quem adora as variantes idiomáticas). Há desde termos mais comuns e de fácil compreensão (cancro, reforma no sentido de aposentadoria, carrinha e atraiçoado) até outros mais distantes da nossa realidade (genica, utente, vindima, sanita, medrica e deambular). Acertadamente, a editora e o autor não colocaram um glossário no livro. Cabe ao leitor nascido no além-mar descobrir por conta própria o significado de cada palavra. Quem me acompanhou, nas últimas semanas, na leitura de José Eduardo Agualusa, escritor luso-angolano que foi analisado no Desafio Literário de novembro, não terá quaisquer dificuldades com a linguagem do escritor madeirense.
Para encerrar os aspectos positivos de “A Dor do Esquecimento”, preciso citar seu excelente início (a novela começa no ponto certo, sendo impossível parar a leitura), a ótima ambientação (o contraste entre a beleza do cenário e a agonia mental e emocional da narradora), a riqueza das reflexões de Madalena (o livro ganha em profundidade quando a protagonista rememora seu passado trágico e quando divaga filosoficamente sobre a passagem do tempo, o saudosismo, as memórias, a velhice), a diminuição do tamanho dos capítulos à medida que a narrativa evolui (refletindo, obviamente, a condição interna de Madalena cada vez mais precária) e a omissão de várias datas no diário da personagem (que acompanha, porque não, suas confusões e contradições).
Apesar de seus incontáveis méritos, “A Dor do Esquecimento” também possui pontos negativos. O texto elegante de José Vieira, ponto forte de suas narrativas históricas, e a organização temporal do livro, divisão dos capítulos pelo número de dias, não combinam muito com o caos psicológico vivido por Madalena. Sabe quando o texto é certinho demais para uma trama tão caótica? É o que encontramos nessa novela. Parece-me inverossímil uma narradora com tantos problemas de memória estruturar um relato tão linear e “limpo” como o que encontramos em “A Dor do Esquecimento”. Juro que fiquei me perguntando: será mesmo que Madalena teria condições (mesmo que equivocadamente) de listar os dias de sua permanência no asilo? Acho que não. Por outro lado, se encontrássemos uma narrativa desordenada e com ideias embaralhadas, como por exemplo em “A Obscena Senhora D” (Companhia das Letras), novela de Hilda Hilst, não apenas teríamos um suspense maior como teríamos uma trama muito mais densa.
Outra questão que me incomodou foi a série de contradições do texto, que prejudicam a construção da verossimilhança. E não estou me referindo aos tropeços da narradora (esses sim são ótimos e fidedignos). Estou falando de pontos falhos do enredo. Ora Madalena não se lembra das coisas antigas (o que é natural), ora se lembra muito bem de tudo o que aconteceu há pouco (o que já não é tão natural assim). A memória de curto prazo é a primeira a ser perdida para quem sofre – cuidado, aí vai o spoiler! – do Mal de Alzheimer. Ou seja, é correto ela não se lembrar de todas as visitas do irmão à clínica. Beleza! Porém, qual é a explicação lógica para ela se lembrar das visitas recorrentes ao quarto de uma colega de asilo, hein?! Nessa trama, há algumas passagens que não colam (não fazem tanto sentido aos olhos de um leitor mais crítico).
Além disso, a narração da protagonista de “A Dor do Esquecimento” é, em alguns momentos, falha. O tom de voz não é tão pertinente à realidade vivenciada pela personagem. Por exemplo, acho que Madalena jamais falaria: “Eu continuo a achar que não estou doente”. Ninguém fala desse jeito. O mais real seria: “Eu não estou doente, já disse!”. Nesse sentido, uma ou outra parte do texto ficcional é feita do ponto de vista do leitor e não do ponto de vista da narradora-protagonista (o que seria o mais correto em se tratando de literatura).
Outra coisa que me deixou um pouco desconfortável foi o excesso de sinalização do discurso. Nos diálogos desta obra (discurso), temos travessão, aspas e itálico – tudo ao mesmo tempo! Meu Deus, para que tanta sinalização?! Uma delas já bastaria – o uso das três simultaneamente me soou redundante (se bem que na primeira parte do livro, não temos o travessão, que aparece misteriosamente na segunda metade da obra). Essa crítica pode parecer algo simples, mas afeta a estética e a elegância do texto da novela.
Em suma, “A Dor do Esquecimento” não é o melhor livro de José Vieira. Se comparado a “Dedicação, Palavra e Honra” e “Paralelismos”, ele deixa a desejar. Por outro lado, confesso que gostei de ver algo diferente sendo produzido pelo autor. Por mais que goste de suas narrativas históricas, achei interessante acompanhar um thriller psicológico ambientado no presente. A minha torcida é que José Vieira/Teresa Vieira Lobo continue criando muitas histórias, sejam elas dramas antigos, suspenses contemporâneos ou enredos de gêneros narrativos ainda não explorados por ele/ela. E assim caminha a novíssima literatura portuguesa. Como é bom conhecer as promessas da escrita ficcional que despontam aqui e acolá!
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