No último final de semana, li “A Brincadeira” (Companhia das Letras), o romance de estreia de Milan Kundera. O escritor tcheco que completou recentemente 90 anos foi muito popular nas décadas de 1980 e 1990, mas atualmente anda meio esquecido do grande público. Exatamente por isso, a ideia de tê-lo como foco do Desafio Literário de setembro. Assim, ao longo deste mês, serão analisados no Bonas Histórias os seis principais livros de Kundera (quatro romances, uma coletânea de contos e um ensaio). E nada mais natural do que começarmos essa investigação literária pelo primeiro sucesso do autor.
O texto de “A Brincadeira” foi concluído em 5 de dezembro de 1965. Contudo, a obra só foi publicada apenas em 1967, em Praga. Até então, Milan Kundera só havia lançado três coletâneas de poemas na década de 1950 (títulos que não foram traduzidos para o português). Esses livros poéticos tiveram forte orientação socialista e eram inspirados no trabalho de Konstantin Biebl, um dos maiores poetas e cineastas surrealistas da Tchecoslováquia. Os poemas de Kundera tiveram uma tímida recepção tanto da crítica quanto do público em seu país natal. Por isso, quando “A Brincadeira” chegou às livrarias tchecas, seu autor era uma figura totalmente desconhecida dos leitores. Apesar disso, o sucesso do primeiro romance de Milan Kundera foi quase que instantâneo. Em poucos meses, “A Brincadeira” já tinha vendido mais de 120 mil exemplares. Em 1968, a obra ganhou um prêmio literário da União de Escritores Tchecos e foi adaptado para o cinema pelo diretor Jaromír Jireš. Do dia para noite, Milan Kundera se tornou um best-seller na Tchecoslováquia.
Curiosamente, o romance de Kundera criticava abertamente o Partido Comunista tcheco. Nesta obra, uma personagem masculina era injustamente acusada de inimiga pelas autoridades socialistas. Lembremos que o país do leste europeu havia instalado um Estado socialista após a Segunda Guerra Mundial e que o escritor era um ferrenho defensor dos ideais marxistas até a década de 1950. Evidentemente, Milan Kundera mudou de opinião na primeira metade dos anos 1960.
Por seu texto subversivo, “A Brincadeira” (tanto na versão literária quanto na versão cinematográfica) foi censurado logo depois da União Soviética invadir a Tchecoslováquia em agosto de 1968. Quando este livro foi publicado alguns meses depois no Ocidente, ele adquiriu uma conotação política, algo que Milan Kundera sempre refutou. Para o autor tcheco, seu romance de estreia era antes de tudo uma história de amor. Segundo Kundera, somente agora o público e a crítica voltaram a ver esta obra da maneira correta:
“Hoje, os exploradores da atualidade esqueceram há muito a Primavera de Praga, bem como a invasão russa, e graças a esse esquecimento, paradoxalmente, ‘A Brincadeira’ poderá voltar enfim a ser o que sempre quis ser – apenas um romance, e nada mais do que um romance".
De certa forma, o escritor tcheco utilizou-se de elementos autobiográficos para construir esta narrativa. Assim como o protagonista de “A Brincadeira”, Milan Kundera precisou interromper seus estudos acadêmicos na década de 1950 por causa de acusações de práticas antissocialistas. Como consequência, ele foi expulso da universidade e, a partir de então, passou a ser malvisto pelas autoridades da Tchecoslováquia e, mais tarde, da União Soviética. A publicação deste romance só aumentou o mal-estar entre o artista e os governantes. Em virtude desse clima de grande animosidade, o escritor precisou emigrar para a França na década de 1970. Ele fugiu da censura e da perseguição política em seu país natal.
O enredo de “A Brincadeira” inicia-se quando Jahn Ludvick, um rapaz de 37 anos, retorna depois de quinze anos para a sua cidade natal na Morávia. A volta dele não tem um caráter nem um pouco nobre. Ele só está ali para se encontrar com Helena Zemanek, uma jornalista de Praga que viajou até a Morávia para cobrir a Cavalgada dos Reis, um evento folclórico local. Ludvick conheceu Helena há poucos dias em Praga, onde ambos moravam. No início, ele não gostou da moça, mas quando soube que ela era esposa de Pavel Zemanek, um antigo amigo seu dos tempos de faculdade, as coisas mudaram de figura. Para se vingar de Pavel, Ludvick começou a dar em cima de Helena. A viagem da moça é a oportunidade ideal para o protagonista do romance levá-la para a cama e, assim, colocar um par de cifres no antigo amigo.
A rixa com Pavel vem dos tempos de faculdade. Ludvick credita parte da sua expulsão da universidade à postura do antigo amigo, que não se esforçou em defendê-lo na época da acusação de ser um trotskista. O ocaso de Jahn Ludvick se deu após o envio de uma carta a uma namorada. Nessa mensagem, ele brincava (daí o título da obra) com a amada: “O otimismo é o ópio do gênero humano! O espírito sadio fede a imbecilidade. Viva Trotski! Ludvick”. O conteúdo epistolar foi sabiamente apresentado na capa da nova edição do livro publicado pela Companhia das Letras. Achei acertadíssima essa escolha.
Voltando para o conteúdo da obra, o problema é que a carta de Ludvick foi parar nas mãos do comitê comunista da universidade. Aos olhos dos intransigentes stalinistas da academia, Jahn não passava de um traidor da pátria. Por isso, ele foi expulso da instituição e enviado para trabalhos forçados nas minas de Ostrava. A condenação colocava fim às esperanças do rapaz de ter dias melhores e o atirava a uma existência marcada pelo sofrimento e pela melancolia.
Depois de uma década e meia de sofrimentos, Ludvick vê a chance de se vingar de Pavel Zemanek. Colocar uma mácula no casamento até então irretocável do antigo amigo é um prazer mínimo que Jahn Ludvick acredita merecer depois de tantos anos de amargura. Mesmo não sentindo nenhuma excitação ou simpatia por Helena, ele a levará para a cama. Para criar um clima romântico, o morávio pede emprestado, assim que chega à sua cidade natal, o apartamento de um antigo amigo, Kostka. Kostka não nega a solicitação de Ludvick. Os dias que Jahn Ludvick passará em sua terra farão o seu passado voltar à tona. Essas lembranças permitirão que a personagem reflita sobre sua existência e faça uma retrospectiva de sua vida sentimental.
“A Brincadeira” possui 352 páginas. Este romance de Milan Kundera está dividido em sete partes e têm 72 capítulos. Cada parte é narrada em primeira pessoa por uma personagem. Ludvick, Helena, Jaroslav (outro antigo amigo do protagonista) e Kostka se revezam nesse papel. O predomínio da narração é de Ludvick, que apresenta seu ponto de vista e suas lembranças em uma parte sim e outra não. Apenas na sétima e última seção do livro temos um pot-pourri de narrativas (cada capítulo é narrado ora por Jahn Ludvick, ora por Helena Zemanek e por Jaroslav). Demorei dois dias para concluir essa leitura. Iniciei a “A Brincadeira” no sábado de manhã e no domingo a tarde já tinha chegado à sua última página. Confesso que gostei muito do seu conteúdo e de sua estética narrativa.
O primeiro elemento que chamou minha atenção neste romance foi o teor filosófico de seu texto. Milan Kundera aborda questões existencialistas com uma pegada niilista. Ele faz isso em meio à narrativa ficcional. As personagens de “A Brincadeira” discorrem sobre liberdade, otimismo, revolta, máscaras sociais, vingança e cinismo, por exemplo. Falam de várias dicotomias: velhice/juventude, tradição/modernidade, democracia/ditadura e razão/fé. E analisam a essência humana e os aspectos da identidade pessoal de cada indivíduo (quem somos?). Por esse forte teor filosófico do texto de Kundera, lembrei bastante, durante esta leitura, das obras e da literatura de Albert Camus.
Outro ponto interessante da literatura do escritor tcheco é a valorização do discurso direto. Sempre que um diálogo é apresentado diretamente aos leitores, ele possui uma forte carga conceitual (tanto de ordem filosófica quanto narrativa). As conversas menores (menos importantes) são feitas quase sempre em discurso indireto. Assim, ficamos com a impressão de uma força grande dos diálogos apresentados. Incrível (e ousado) esse recurso!
Muitas vezes, o texto de “A Brincadeira” é caracterizado por longas frases. Essa escolha estética de Kundera dá a impressão de estarmos acompanhando o fluxo de consciência das suas personagens. Acredito que era essa a ideia do autor. Gostei disso. Essa característica fica mais evidente exatamente quando os narradores rememoram passagens marcantes e decisivas do passado. Repare nisso. Nesses momentos, as frases do romance podem adquirir o tamanho de parágrafos.
Concordo com o autor quando ele fala que a parte principal do enredo de “A Brincadeira” está na retrospectiva sentimental de seu protagonista. Através das lembranças e das ações de Jahn Ludvick ao longo dos capítulos, acompanhamos seus relacionamentos com Marketa, Lucie e Helena (para não citar as prostitutas de Ostrava). Com cada uma dessas mulheres, a personagem principal age de uma maneira distinta. Aí nos perguntamos: o que Ludvick sentiu por elas pode ser definido como amor?! Esta é a grande questão por trás desta trama de Kundera. Exatamente por isso, o final do romance foi para mim surpreendente. Se por um lado o desfecho pode ser classificado como aberto em relação ao destino do protagonista, por outro lado ele é categórico em responder à questão chave que intriga o leitor.
Além do amor, um ponto central de “A Brincadeira” é a forma como suas personagens encaram o sexo. As relações sexuais têm funções variadas e distintas para o protagonista do livro. A prática sexual pode ser sinônimo de violência, de aceitação, de amor, de comércio, de piedade, de obrigação e de ódio/vingança dependendo da situação e dos parceiros. Não por acaso, Jahn Ludvick desempenha o papel de anti-herói do romance. Ele é odiado por quase todas as personagens da trama e vive em uma rotina solitária, melancólica e vazia. É difícil gostar realmente dele. Acredito que até mesmo os leitores ficam com um pé atrás.
Apesar de compreender o ponto de vista do escritor tcheco quando ele apresenta seu romance como um drama amoroso, concordo também com os leitores e com os críticos de Kundera que viram em “A Brincadeira” uma obra literária com grande viés político. É profundamente instrutivo assistir às angústias de pessoas comuns engolidas pelos sistemas autoritários e pouco justos da União Soviética e dos países da Cortina de Ferro durante boa parte da segunda metade do século XX. Nesse cenário que hoje parece extraído de uma ficção científica distópica, temos a oposição à Igreja, o medo das denúncias anônimas, a mão forte do governo, um sistema judicial parcial, uma sociedade corrupta e o clima de censura e medo. Quem mais tarde abordaria essas questões com brilhantismo em sua literatura foi a romeno-alemã Herta Müller. Não dá, portanto, para desassociar este livro do contexto histórico e ideológico. A realidade de um país comunista é extremamente chocante e injusta para os leitores de ontem e de hoje.
Por fim, não dá para analisar “A Brincadeira” sem mencionar a intertextualidade musical, literária, cinematográfica, religiosa e matemática. Esses elementos enriquecem a história e compõem o universo central das personagens retratadas.
O Desafio Literário de setembro começou de uma maneira incrível, né? “A Brincadeira” é um romance intenso e delicioso. Ou seja, não poderíamos ter uma obra melhor para iniciar esta análise literária de Milan Kundera. O próximo livro do escritor tcheco que será comentado no Bonas Histórias será “Risíveis Amores” (Companhia de Bolso), a coletânea de contos publicada em 1969, dois anos depois de “A Brincadeira”. O post de “Risíveis Amores” estará disponível no blog na próxima terça-feira, dia 10. Não perca a continuação da investigação da literatura de um dos principais escritores europeus do final do século XX.
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