Publicada em agosto de 2020 na Inglaterra e lançada no Brasil em setembro de 2021, a ficção científica de Haig mistura conceitos filosóficos com a dinâmica dos universos paralelos.
No final de semana passado, li “A Biblioteca da Meia-noite” (Bertrand Brasil), o romance de maior sucesso de Matt Haig. Best-seller mundial com mais de dois milhões de exemplares comercializados, o livro do escritor inglês foi lançado no Brasil na segunda metade de 2021 e rapidamente alcançou as primeiras posições entre os mais vendidos em nossas livrarias. Para termos ideia de seu êxito comercial, “A Biblioteca da Meia-noite” foi o 10º título ficcional mais adquirido pelos leitores brasileiros no ano passado e ficou na 31ª posição no ranking geral das obras mais comercializadas por aqui na última temporada. Os dados são do Publishnews, a principal fonte do mercado editorial brasileiro na atualidade.
Vale a pena dizer que “A Biblioteca da Meia-noite” só não entrou no post dos livros mais vendidos no Brasil em 2022, que publiquei no mês passado na coluna Mercado Editorial, porque listei apenas os 20 títulos de maior saída independentemente da categoria. Se eu tivesse feito, por exemplo, o top 35 ou o top 40 dos best-sellers das livrarias nacionais no ano passado ou mesmo o top 10 da ficção literária em nosso país em 2022, essa obra de Matt Haig teria sido citada sem dúvida nenhuma.
Diante do enorme sucesso comercial e das críticas positivas que vi sobre “A Biblioteca da Meia-noite” desde o lançamento, eu estava curioso para conhecer esse romance em profundidade. Confesso que queria lê-lo há um tempão e ansiava por comentá-lo no Bonas Histórias. E agora consegui, enfim, me embrenhar em sua leitura e analisá-lo com o rigor necessário na coluna Livros – Crítica Literária. Para quem diz que eu dou prioridade aos clássicos da literatura ou privilégio aos títulos mais cults dos escritores renomados, hoje teremos o debate de um típico exemplar da ficção literária contemporânea da categoria entretenimento. Viu como o blog é eclético, hein?!
Classificado como ficção científica pelo autor e pela editora inglesa que o publicou originalmente, “A Biblioteca da Meia-noite” mistura de forma bem azeitada conceitos filosóficos (diferentes formas de se enxergar a vida, razão da existência humana, debate sobre arrependimento, drama dos suicidas, reflexos de nossas rotinas no dia a dia das outras pessoas etc.), elementos da física quântica (no caso, a dinâmica dos universos paralelos) e certa intertextualidade literária (relação da biblioteca com o purgatório e da vida humana com a produção de histórias infinitas).
O resultado é uma narrativa sensível, inteligente e inspiradora. Se o roteiro do romance não é lá muito original (esse é justamente o principal defeito da publicação de Haig: ele acaba sendo uma coletânea de clichês ficcionais e o pot-pourri de vários enredos dramáticos famosos), ao menos temos a boa execução da proposta editorial. Acredito que o livro conseguirá agradar aos leitores menos experientes e menos exigentes. Não à toa, “A Biblioteca da Meia-noite” pode ser visto como um título da literatura infantojuvenil ou da literatura young adult, como preferem os profissionais do mercado editorial.
Nascido em julho de 1975 em Sheffield, centro-norte da Inglaterra, Matt Haig cresceu em Newark, em Nottinghamshire. Após estudar Inglês e História nas Universidades de Hull e Leeds, o agora escritor viveu em Brighton & Hove, cidade litorânea no sul do Reino Unido, em York, município de North Yorkshire, e na Espanha. Depois de trabalhar em empregos comuns e empreender no ramo do Marketing Digital (numa época em que a Internet era uma novidade), Haig é atualmente romancista e escreve regularmente para jornais britânicos como The Guardian e The Independent.
Sua carreira no mercado editorial começou com o lançamento, em 2002, da obra não ficcional “How Come You Don´t Have an E-Strategy”, um guia de como usar a Internet nos negócios. Nos anos seguintes, ele publicou uma série de títulos sobre marcas e Marketing: “Brand Failures – The Truth about the 100 Biggest Branding Mistakes of All Time”, “Brand Royalty – How the World´s Top 100 Brands Thrive and Survive” e “Brand Sucess – How The World´s Top 100 Brands Thrive and Survive”. Nenhum desses livros foi traduzido para o português nem foi lançado no Brasil e em Portugal.
O sucesso de Matt Haig nas livrarias só veio quando ele largou as produções editoriais do universo empresarial e ingressou no mundo dos romances e da literatura infantojuvenil. Seu primeiro título ficcional foi o inusitado “The Last Family in England” (sem edição em português), a releitura de uma história shakespeariana. Na nova versão, a trama do Bardo foi contada pelo ponto de vista de um cachorro Labrador. Hilário!!! Essa obra foi publicada em 2004. Dois anos mais tarde, no segundo romance, o escritor inglês adaptou a trama de Hamlet para os tempos atuais. Em “Dead Fathers Club” (não publicado no Brasil), um menino de 11 anos recebe a visita do fantasma do pai recém-falecido. Nessas conversas, o finado revela ao protagonista que foi assassinado e que espera que o filho ainda criança vingue sua morte. Sinistro. Muito sinistro!!!
O primeiro trabalho infantojuvenil de Matt Haig foi o premiado “A Floresta Sombria” (Galera Record), de 2007. Vencedor do Gold Award no Nestlé Children´s Book Prize e indicado para o Waterstone´s Children´s Book Prize e para o Carnegie Medal, esse livro narra o drama de um casal de irmãos ingleses que vai morar na Noruega após ficar órfão. No novo país, o irmão precisa salvar a irmã que acabou aprisionada no mundo mágico e soturno de uma floresta. O sucesso de “A Floresta Sombria” foi tão grande que Haig lançou, em 2008, a sequência dessa história: “Runaway Troll” (sem edição em português).
Aliando elogios empolgados da crítica literária com o interesse ávido do público leitor, Matt Haig já tem 27 obras publicadas entre títulos ficcionais para adultos e crianças e títulos não ficcionais. Curiosamente, suas narrativas envolvem invariavelmente crianças órfãs, mortes trágicas, fantasia (elementos sobrenaturais), violências físicas ou psicológicas, doenças mentais e suicídio. Ou seja, o leque temático do autor britânico não é dos mais tranquilos e agradáveis. Os maiores êxitos comerciais de Haig são “A Floresta Sombria”, “A Possessão do Sr. Cave” (Record), “Os Radley” (Record), “A Sociedade dos Pais Mortos” (Record), “How to Stop Time” (sem edição em português), “Razões para Continuar Vivo” (Intrínseca) e “Observações Sobre Um Planeta Nervoso” (Intrínseca). E, obviamente, nessa lista está o best-seller internacional “A Biblioteca da Meia-noite”, seu último e portentoso sucesso.
“A Biblioteca da Meia-noite” foi publicado na Inglaterra em agosto de 2020, justamente no ápice da pandemia da Covid-19, e rapidamente alcançou as primeiras posições dos livros mais vendidos no Reino Unido. Em dezembro daquele ano, a BBC Radio 4 lançou um programa com dez episódios em que narra o drama da protagonista deste romance. Já no ano seguinte, a obra de Haig foi publicada em outros idiomas e se tornou um fenômeno do mercado editorial internacional com vendas na casa dos sete dígitos. Nos Estados Unidos, o principal mercado de livros do planeta, “A Biblioteca da Meia-noite” entrou na lista dos mais vendidos do New York Times, do Boston Globe e do Washington Post.
Para completar a saga bem-sucedida de Matt Haig, “A Biblioteca da Meia-noite” conquistou o Goodreads Choice Awards de 2020 na categoria ficção, foi finalista do Audie Award de 2020 (entre as obras ficcionais) e recebeu a indicação ao Livro de Ficção do Ano do British Book Award de 2021. Vale a pena dizer que essas são algumas das principais premiações literárias da Grã-Bretanha.
No Brasil, “A Biblioteca da Meia-noite” foi lançado nas livrarias em setembro de 2021 pela Editora Record através do selo Bertrand Brasil. A tradução para o nosso idioma foi realizada de maneira direta (do original “The Midnight Library”) por Adriana Fidalgo, tradutora, copy-editora, revisora de originais e assessora de imprensa graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para quem gosta de novidades, há uma edição nacional do livro de Haig que foi produzida pela Editora Record com verniz na capa. Com esse recurso extra, ele brilha no escuro. Contudo, eu não encontrei essa versão disponível à venda em 2023. Acho que ela se esgotou.
Em 2022, a ficção científica de Matt Haig vendeu aproximadamente 30 mil unidades em nosso país (segundo o Publishnews). Se eu não estiver enganado, a Tag Livros também teve uma edição especial de “A Biblioteca da Meia-noite”, que saiu no meio do ano retrasado, antes mesmo que o romance chegasse às livrarias brasileiras. A publicação foi enviada, se minha memória não estiver falhando, aos assinantes da Tag Inéditos em julho ou agosto de 2021.
Em Portugal, “A Biblioteca da Meia-noite” chegou aos leitores lusitanos um pouco mais cedo, em maio de 2021. O romance foi editado pela TopSeller, selo de ficção da Penguin Random House Grupo Editorial. Falando nisso, o público português tem muito mais títulos de Matt Haig disponíveis no idioma local do que o público brasileiro. Por lá, o escritor inglês tem aproximadamente uma dezena de obras traduzidas para o português, entre livros infantojuvenis, adultos e de não ficção. Posso citar “Os Humanos” (TopSeller), “Como Parar o Tempo” (TopSeller), “O Livro do Conforto” (Albatroz), “O Papai Natal e Eu” (Booksmile) e “A Rapariga que Salvou o Natal” (Booksmile). Todas essas publicações são inéditas no Brasil.
O enredo de “A Biblioteca da Meia-noite” começa há 19 anos em Bedford, uma pequena cidade no interior da Inglaterra. Nora Seed é ainda uma criança e estuda no Hazeldene School. Prodígio na natação, com muito talento para a música e bastante inteligente, a menina tem vários sonhos e enorme potencial. O que Nora mais gosta na escola é poder conversar, nos horários dos intervalos das aulas, com a Sra. Elm, a bibliotecária. Na pequena biblioteca da instituição, as duas amigas conversam sobre tudo e jogam partidas desafiadoras de xadrez. A dupla adora pesquisar sobre o Ártico e ver imagens do Polo Norte. Aos olhos da pequena estudante, Sra. Elm é uma fonte inesgotável de conhecimento, inspiração e gentileza.
A partir da cena inicial do romance, a trama avança no tempo até os dias atuais. Agora Nora Seed é uma mulher de 35 anos. Contra todos os prognósticos da infância e adolescência, a protagonista de “A Biblioteca da Meia-noite” tem uma rotina extremamente melancólica e frustrante. Ela não se tornou a nadadora olímpica que o pai tanto almejava. Ela não explodiu na música com a Labyrinths, como sonhava o irmão Joe, um dos integrantes da banda juvenil de maior potencial do interior da Inglaterra. Ela não se casou com Dan Lord (Nora terminou o noivado dois dias antes do casório!) como acreditou que faria. Ela também não virou glaciologista e, assim, frustrou a previsão da Sra. Elm nos tempos de escola. A menina sonhadora e talentosa de outrora deu lugar a uma adulta ressentida que ainda vive na minúscula e pacata Bedford.
Graduada em filosofia, Nora Seed jamais atuou na área de formação. Ela trabalha há 13 anos como vendedora na Teoria das Cordas, uma loja de instrumentos musicais. Uma vez por semana, a moça dá aula de piano para Leo Thompson, um adolescente local. Sem falar com o irmão há dois anos (Joe jamais perdoou a irmã por ela ter desistido do Labyrinths justamente quando a banda ia assinar o primeiro contrato profissional), com os pais falecidos (ambos morreram precocemente), sem amigos (Izzy, sua melhor amiga, se mudou para a Austrália) e sem namorado (depois da frustação com Dan, ela nunca mais quis saber de ninguém), Nora tem uma rotina solitária e pacata. Sua única companhia parece ser Voltaire, o gatinho de estimação.
O gritante choque entre o que imaginou para si lá atrás e a vida que tem atualmente se mostrou um fardo demasiado para a personagem principal do livro de Matt Haig. Não por acaso, Nora Seed tem fortes crises depressivas e já tentou se suicidar. O quadro psicológico da moça se agrava quando uma série de infortúnios acontecem sucessivamente. Logo de cara, ela descobre que Voltaire morreu em uma das saídas de casa. Provavelmente, o gatinho foi atropelado na rua. Algumas horas mais tarde, Nora é demitida da Teoria das Cordas. O patrão não aguenta mais o mau-humor da funcionária, que espanta a freguesia. Para completar o que podemos chamar de “Um Dia de Fúria” da Srta. Seed, ela perde o único aluno de piano. A mãe de Leo se revolta com o não cumprimento dos horários da professora e cancela definitivamente as aulas do filho.
Provando que tragédia pouca é bobagem, Nora tem mais algumas revelações bombásticas que fazem daquele dia o fundo do poço de sua existência. O vizinho idoso que ela ajudava disse que não precisava mais de seu auxílio. Ele arranjou outra pessoa para fazer as compras no supermercado e na farmácia. Em mensagens de celular, Dan Lord revela à ex-noiva que jamais superou o trauma de ter sido abandonado pouco antes do casamento. Ravi, amigo de infância de Nora e Joe e ex-integrante de Labyrinths, parece nutrir ressentimento pelo que eles deixaram de vivenciar como músicos.
Por falar em Joe, ele visitou Bedford há poucos dias, mas não quis ver a irmã. Ele é outro que não perdoa Nora por ela ter desistido da carreira do show business musical e, por consequência, ter atirado a todos em uma rotina sem dinheiro e fama. Ao saber que Joe não quis vê-la, a protagonista de “A Biblioteca da Meia-noite” se afunda em pensamentos sombrios. E para completar a escalada em direção à tragédia pessoal, Nora é ignorada pela melhor amiga. Vivendo na Austrália, Izzy parece não ter tempo ou paciência para responder as mensagens dos compatriotas. E imaginar que o plano de Nora e Izzy eram se mudar juntas para a Oceania. Não é preciso dizer que na última hora, Nora pulou fora do barco (no caso, do avião!) e Izzy acabou viajando sozinha.
Diante do que acredita ser o fim da linha, Nora Seed resolve se suicidar. E assim que toma a atitude mais radical possível, que colocará um ponto final em seus problemas mundano-existenciais, ela acorda em uma biblioteca. Mas aquele não é um lugar comum. Ele está situado entre a vida e a morte. Por isso mesmo, o tempo não avança lá dentro. Os relógios estão eternamente parados à meia-noite. Daí o nome do local: Biblioteca da Meia-noite. Para perplexidade de Nora, a Sra. Elm está ali para atendê-la.
A antiga funcionária da Hazeldene School explica à nova visitante que as estantes infinitas do estabelecimento contêm livros que narram as diferentes trajetórias de vida de Nora. Cada obra relata o que a moça fez a partir das várias decisões tomadas desde que nasceu. Como são incontáveis os caminhos escolhidos ao longo de 35 anos e cada decisão leva a múltiplas outras decisões dali para frente, o acervo bibliográfico é infinito. Além dessas publicações, a biblioteca acolhe o Livro dos Arrependimentos. Como o próprio nome diz, ele registra todas (das pequenas às maiores) frustrações, amarguras e lamentações de Nora.
Em outras palavras, a Biblioteca da Meia-Noite guarda as várias vidas paralelas das pessoas. Aquela ali é exclusivamente de Nora Seed. O mais interessante é que a moça pode escolher qualquer título da estante para vivenciar a nova realidade. E se ela tivesse se casado com Dan Lord? Será que ela seria feliz, hein?! E se não tivesse abandonado o Labyrinths? E se tivesse seguido a carreira de nadadora profissional? E se não tivesse deixado Voltaire sair de casa naquele fatídico dia? E se tivesse embarcado na profissão de glaciologista? E se fosse morar com Izzy na Austrália? E se, e se, e se... O legal de tal processo é que uma vez curtindo a nova vida, Nora poderia viver para sempre naquele universo paralelo. Contudo, se ela sentisse qualquer tipo de arrependimento, ela voltaria para a Biblioteca da Meia-noite para escolher uma nova vida. E em hipótese nenhuma, ela poderia voltar para a vida que já experimentara (e abandonara).
Podendo escolher o melhor caminho e com a chance de selecionar apenas as melhores decisões, na certa Nora Seed será a mulher mais feliz do mundo, né? Sabe de nada, inocente! Aí estão as surpresas da publicação de Matt Haig. Mesmo com todas as possibilidades em mãos, ainda sim a protagonista do romance passará por maus bocados.
“A Biblioteca da Meia-noite” possui 308 páginas e está dividido em 75 capítulos. Levei em torno de cinco horas e meia para concluir integralmente seu conteúdo no último final de semana (fiz algumas paradas no meio do caminho). Comecei a leitura na noite de sábado e terminei no domingo à tarde. Ou seja, dá para lê-lo em um único dia. Quem não gosta de longas sessões de leitura, aí a opção mais adequada é utilizar dois dias ou mesmo três noites consecutivas para percorrer as páginas deste romance.
De maneira geral, gostei de “A Biblioteca da Meia-noite”. Apesar de não possuir um enredo muito original (tenho a impressão que a temática dos universos paralelos está um tanto batida atualmente) e de trazer um desfecho extremamente previsível (dá para sacar qual será o final do romance antes mesmo de se chegar à metade do livro), a obra de Matt Haig permite reflexões interessantes (com um pé na autoajuda). “A Biblioteca da Meia-noite” também tem uma narrativa gostosa (permitindo a leitura acelerada), apresenta um drama genuíno (muita gente se enxergará no conflito vivenciado por Nora Seed), exibe personagens verossímeis (que poderiam ter sido extraídos da realidade) e possui forte intertextualidade filosófica (componente sempre charmoso e enriquecedor).
Em suma, esse título de Haig não é uma produção memorável capaz de entrar para os cânones da literatura internacional. Contudo, o livro do escritor inglês é sim uma publicação ficcional leve e contundente com capacidade para arrebatar o gosto dos leitores contemporâneos por enredos que dialogam com conceitos mais comerciais da Filosofia. Não por acaso, temos aqui um best-seller mundial, que encantou o público e a crítica literária nos quatro cantos do planeta.
Comecemos falando dos pontos positivos de “A Biblioteca da Meia-noite” neste post da coluna Livros – Crítica Literária. Adorei a construção das personagens do romance. As figuras retratadas por Matt Haig são normalmente indivíduos melancólicos, fracassados, desiludidos e infelizes. Repare que não é apenas Nora Seed, a protagonista, que possui tais características. As principais personagens parecem carregar enormes fardos nas costas e uma infinidade de ressentimentos e frustrações. Por isso mesmo, acabei me lembrando bastante das obras literárias de Nick Hornby, romancista inglês célebre por construir tramas com pessoas amargas e infelizes. Do ponto de vista da lógica narrativa, as figuras ficcionais de “A Biblioteca da Meia-noite” remetem aos protagonistas de “Alta Fidelidade” (Companhia das Letras), “Uma Longa Queda” (Companhia das Letras) e “Um Grande Garoto” (Rocco). Por tal perspectiva, Nora seria a versão feminina e contemporânea de Rob (de “Alta Fidelidade”), JJ (de “Uma Longa Queda”) e Will Freeman (de “Um Grande Garoto”).
Também é preciso elogiar o ritmo narrativo do livro de Haig. Os capítulos curtos, as excelentes escolhas de quando encenar e de quando sumarizar (decisões que parecem triviais à primeira vista em um romance, mas que são complexas e exigem maturidade e habilidade do autor) e a linguagem na maior parte do tempo simples tornam a leitura fácil, gostosa e rápida. Nem mesmo o loop (quase) infinito que Nora Seed faz ao longo da trama, a pegada por vezes poética da narrativa e as reflexões existencialistas que o texto suscita atrapalham a velocidade e o impacto do enredo de “A Biblioteca da Meia-noite”.
Por falar em pegada poética, temos ótimas passagens nesta obra. De cabeça, posso citar duas que me marcaram: “Entre a vida e a morte, há uma biblioteca”; e “Você não precisa entender a vida. Precisa apenas vivê-la”. No primeiro caso, é maravilhoso imaginar uma biblioteca, uma locadora de filmes, uma galeria de arte, um restaurante como cenários do purgatório. Já o segundo dispensa explicações, né? Para ser exato em minhas palavras, temos em “A Biblioteca da Meia-noite” mais reflexões existencialistas do que inspirações poéticas. Os trechos que destaquei nesse parágrafo devem ser vistos mais como conceitos filosóficos do que poéticos. De qualquer maneira, que é bonito ver tais frases em um título em prosa isso é.
Já que eu trouxe a Filosofia para o debate, o enredo de Matt Haig traz princípios dessa área muitas vezes áridos e complexos sem soar pedante, acadêmico ou hermético. O romancista inglês utiliza conceitos existencialistas mais populares e simplificados. Ou seja, “A Biblioteca da Meia-noite” é mais parecido às narrativas ficcionais de Jostein Gaarder, autor de “O Mundo de Sofia” (Companhia das Letras) e “Através do Espelho” (Companhia das Letras) do que às tramas de Albert Camus, autor de “A Queda” (Record), “O Estrangeiro” (Record) e “A Peste” (Record). Se por um lado temos um livro menos profundo e esclarecedor no que se refere à teoria filosófica (algo que as obras de Camus são imbatíveis!), por outro lado a publicação de Haig é mais popular e convidativa para o grande público (méritos trazidos pelos títulos de Gaarder).
Tornar o texto de “A Biblioteca da Meia-noite” mais palatável não é uma crítica negativa que faço e sim um dos aspectos que mais gostei nesse livro. As reflexões filosóficas trazidas por Matt Haig são ótimas. A partir do drama genuíno de Nora Seed, podemos enxergar a relação da vida e da morte de um jeito diferente. Também conseguimos digerir melhor nossas frustrações, entender o legado de nossa existência e compreender os impactos (e as limitações) de nossas ações na vida das outras pessoas.
Outra questão que preciso comentar é a série de boas surpresas que os capítulos de “A Biblioteca da Meia-noite” trazem. Sempre que a trama tende a cair no marasmo, surge uma novidade capaz de apimentar a narrativa. Como exemplos, posso citar o aparecimento de Hugo, um dos sliders presentes nas intersecções de metaversos (leia “A Biblioteca da Meia-noite que você entenderá o que estou dizendo), e a falta de uma realidade plena e harmônica (algo que só existe em nossa imaginação). Para o público brasileiro e paulistano, ainda temos a cidade de São Paulo como cenário de uma das vidas paralelas de Nora Seed. É legal ver a metrópole paulista, a arquitetura de Oscar Niemeyer, a gastronomia nacional (pão de mel) e alguns figurantes nascidos em nosso país justamente em um dos capítulos mais esperados do livro (quando Nora embarca na carreira de artista da música e vira de fato a líder do Labyrinths).
Repare no começo deste romance. Achei ele brilhante! Em relação à estética e ao efeito no leitor, a exposição de Haig me lembrou bastante as páginas iniciais de “Bonsai” (Cosac Naify), a premiada novela do chileno Alejandro Zambra. Afinal, desde a primeira linha de “A Biblioteca da Meia-noite” já sabemos o que a personagem principal fará. Note o que romancista inglês escreveu na página de abertura: “Dezenove anos antes de decidir morrer, Nora Seed estava sentada no aconchego da pequena biblioteca da Hazeldene School, na cidade de Bedford (...)”. Se ela decidiu morrer, quer dizer que irá se suicidar, né? Curiosamente, mesmo sabendo o que Nora fará, o suspense e a tensão do livro não diminuem (só aumentam, à la Hitchcock). Acho incrível quando o autor já fala o que irá acontecer (algo que Zambra é mestre!!!) e mesmo assim ficamos hipnotizados com o texto.
O narrador de “A Biblioteca da Meia-noite” é em terceira pessoa e fica colado o tempo inteiro na protagonista, tendo acesso ilimitado às suas ações, aos seus pensamentos, às suas lembranças e às suas emoções. De tão grudado que ele está em Nora Seed, temos às vezes a impressão de que o texto está em primeira pessoa (em um efeito estilístico típico das obras de J. M. Coetzee). Mas não está não (é em terceira pessoa mesmo). Em relação ao Foco Narrativo, “A Biblioteca da Meia-noite” é um romance impecável. Eu não achei qualquer problema em relação as ações, ao alcance, às intervenções e às observações do narrador. Se você encontrar, por gentileza, me avise.
Em relação aos pontos negativos, o principal demérito de “A Biblioteca da Meia-noite” está em seu enredo pouquíssimo criativo. A falta de originalidade do romance está na união do tema dos universos paralelos (conceito da física quântica que vem sendo usado de maneira abusiva nas produções literárias e cinematográficas nas duas últimas décadas) com a rotina vazia, sufocante e pouco edificante da protagonista (um lugar comum nas obras artísticas do século XXI).
De certa maneira, a trama do livro de Matt Haig é uma mistura dos roteiros de “Efeito Borboleta” (The Butterfly Effect: 2004), “Matrix” (The Matrix: 1999), “Feitiço do Tempo” (Groundhog Day: 1993) e “A Vida Secreta de Walter Mitty” (The Secret Life of Walter Mitty: 2013). Para ser franco com os leitores do Bonas Histórias, enxergo “A Biblioteca da Meia-Noite” como a versão contemporânea e literária de “A Felicidade Não Se Compra” (It´s a Wonderful Life: 1947), clássico cinematográfico de Frank Capra que foi produzido há mais de 75 anos. Eu disse 75 anos!!! Se alguém disser que o enredo de “A Biblioteca da Meia-noite” é original, só posso pensar que essa pessoa não possui repertório suficiente no universo do cinema.
Quando a comparação fica restrita ao campo da literatura, posso listar uma série de livros da ficção brasileira e da ficção internacional que abordam o tema dos multiversos: “Refém da Memória” (produção independente), novela de Helio Martins Jr, “1Q84” (Alfaguara), trilogia de Haruki Murakami, “Outlander” (Saída de Emergência), coletânea literária de Diana Gabaldon, “Livro” (Feminas), prosa poética de Lúcia Leal Ferreira, “Se Eu Ficar” (Novo Conceito), best-seller de Gayle Forman, e “A Vida Nova” (Editorial Presença), romance de Orhan Pamuk. Repare que só citei títulos que já foram analisados no Bonas Histórias. Se eu não tivesse feito isso, passaria as próximas cinco horas detalhando livros e mais livros que exploram os caminhos e descaminhos dos universos paralelos.
Outra questão que me incomodou bastante foi o desenlace extremamente previsível. Juro que assim que Nora Seed começou a vivenciar a realidade alternativa no universo paralelo da Biblioteca da Meia-noite, já consegui prever o que aconteceria no capítulo final do romance. E eu não havia chegado sequer à metade da leitura. Ai, ai, ai. É muito frustrante quando uma história deságua exatamente no lugar em que você previu lá no início da leitura e não traz qualquer novidade e surpresa para sua experiência literária. É verdade que acertei o desfecho do livro porque ele não difere da maioria dos filmes e livros com essa temática. Um leitor menos experiente e com menor repertório nesse campo talvez ache graça e se sinta impactado pelo final de “A Biblioteca da Meia-noite”. Eu confesso que fiquei muuuuuito frustrado.
Em menor escala, achei alguns errinhos de ordem narrativa ao longo do romance. Não sei se posso chamar tais passagens de erros efetivos. Talvez a denominação mais correta seja estranhamentos. O fato é que esses estranhamentos afrontam um pouco o pacto ficcional estabelecido entre o autor e os leitores. Um exemplo evidente das contradições narrativas são as cenas em que Nora Seed chega aos universos paralelos. Na maioria dos casos, ela não sabe o que está acontecendo e precisa se inteirar da nova vida. Até aí beleza pura! Entretanto, em algumas situações específicas (um ou dois momentos), ela já sabe, inexplicavelmente, o que fazer, para onde ir e quem é quem na nova rotina que acabou de embarcar. Não encontrei lógica para a súbita contextualização da protagonista nesses casos.
Repare que os equívocos de “A Biblioteca da Meia-noite” não são extensos (porém, são bem profundos). Se você conseguir renegá-los (algo que dá para fazer numa boa durante a leitura recreativa), você se deparará com um bom romance. Esse livro de Matt Haig se tornou um best-seller nos dois últimos anos não por acaso. Ele traz reflexões interessantes, boas cenas, ótimas personagens e um drama, como já disse, genuíno. Vale a pena conhecê-lo. Entre acertos e erros de Haig, “A Biblioteca da Meia-noite” é um dos principais exemplares do que a literatura inglesa está oferecendo aos leitores.
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