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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural – literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura, gastronomia, turismo etc. –, o Blog Bonas Histórias analisa de maneira profunda e completa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Livros: 1+1=2 2-1=0 – O premiado drama histórico de Fernanda Caleffi Barbetta

Foto do escritor: Ricardo BonacorciRicardo Bonacorci

Vencedor do Prêmio CEPE Nacional de Literatura de 2022 na categoria Melhor Romance, a sexta publicação literária da escritora paulistana que vive há anos nos Estados Unidos é uma narrativa original, sensível e surpreendente sobre o abandono na infância.

O livro 1+1=2 2-1=0 é o terceiro romance e a sexta publicação literária de Fernanda Caleffi Barbetta, escritora paulistana que vive há anos nos Estados Unidos

A CONTEXTUALIZAÇÃO


1.

Ao invés de cair na folia das Murgas do bairro portenho de Saavedra, li uma obra de ficção simplesmente impecável (de 292 páginas) neste Carnaval (feriado no Brasil de 4,5 dias). A leitura em questão foi “1+1=2 2-1=0” (CEPE Editora), o 3º romance e a 6ª publicação literária de Fernanda Caleffi Barbetta (autora cujo nome completo tem 23 letras, que estão distribuídas em 9 sílabas e 3 palavras).


2.

Talvez o mais correto teria sido eu iniciar meu texto analítico (que demandará entre 25 e 30 minutos de sua dedicação) utilizando o verbo “reler”.


3.

Re.ler (cinco letras):

1. verbo transitivo direto – ler de novo ou repetidamente. Exemplo: reli um livro depois de um ano e meio;

2. verbo transitivo direto – rever algo para se recordar ou estudar. Exemplo. Reli o material para me inteirar de seus detalhes;

 

3. verbo que não sei a transitividade – analisar com a devida calma algo que fora feito correndo no passado. Exemplo: reli uma obra de ficção simplesmente impecável neste Carnaval.


4.

Para ser bem franco com os leitores do Bonas Histórias, conheci “1+1=2 2-1=0” (eu não me equivoquei na escrita nem seus olhos estão delirando no Pós-Carnaval – é esse mesmo o curioso título deste livro!!!) na época de seu lançamento, em outubro do ano retrasado. Inclusive, o mencionei na coluna Mercado Editorial como uma das gratas novidades de nossas livrarias no penúltimo bimestre de 2023.


5.

Fernanda Caleffi Barbetta nasceu em junho de 1976 tem 48 anos, 9 meses e alguns dias. Natural da cidade de São Paulo, mora há quase seis anos no estado norte-americano de Michigan. É jornalista graduada pela Universidade Metodista de São Paulo e com pós-graduação na Cásper Líbero. Casada, não tem filhos. Atuou por mais de 20 anos com Jornalismo Empresarial e na Mídia no ABC Paulista. Na literatura, está há pouco menos de uma década. Nesse período, já publicou três romances, duas coletâneas de contos e uma antologia poética. Com a alma leve e a voz calma, se destaca pela generosidade com que partilha méritos, distribui elogios aos colegas e não titubeia em enviar sinceros agradecimentos a todos ao seu redor.

Contista, romancista e poeta, Fernanda Caleffi Barbetta é a escritora paulistana que conquistou o Prêmio CEPE Nacional de Literatura de 2022 na categoria Melhor Romance com o livro 1+1=2 2-1=0

6.

Ainda assim, confesso que achei pouco uma rápida citação no blog para o melhor trabalho até aqui de uma das boas revelações da literatura brasileira contemporânea. Na minha visão, é esse o status atual de Fernanda. Sua escrita me lembra bastante a de Veronica Stigger, outra de minhas escritoras nacionais favoritas. Tal qual a autora de “Os Anões” (Cosac Naify) e “Opisanie Swiata” (Cosac Naify), Fernanda Caleffi Barbetta navega com excelência por vários gêneros literários e produz textos extremamente originais, que muitas vezes subvertem a lógica dos elementos da narrativa ficcional. É impossível não nos apaixonarmos por artistas com tais habilidades.


7.

Ao constatar a beleza e a força literária de “1+1=2 2-1=0”, prometi para Doutora Riolinda, minha psicóloga imaginária (é verdade verdadeira, tenho mesmo uma psicóloga imaginária com quem me encontro todas as quartas-feiras à tarde há quase dois anos), que iria contar tudo o que descobri desse romance. Obviamente, o espaço de registro de minha análise seria a coluna Livros – Crítica Literária. Riolinda se empolgou com a iniciativa de seu paciente brasileiro e, a partir daí, comecei a anotar nas folhas do caderno as principais impressões da leitura. Sim, ainda tenho e utilizo bastante os cadernos. Por que a surpresa, hein?!


8.

O problema é que dias se transformaram em semanas, semanas viraram meses, meses vestiram a roupa dos semestres e semestres brincaram de formar pares para dançar em volta da Estrela Brilhante. Aí já viu, né? O impaciente planetinha azul já tinha dado mais do que uma translação completa no salão do Sistema Solar e minha promessa se mantinha vergonhosamente pendente.


9.

O pior mentiroso é aquele que mente para si. O segundo pior é aquele que esquece a mentira contada. Talvez eu seja a única pessoa da história que ganhou simultaneamente a medalha de ouro e a medalha de prata numa mesma prova de desabilidade social.


10.

Para aqueles que possam achar que eu abandono meus compromissos literários (como faço com os vira-latinhas paulistanos que me veem como seus tutores), que substituo bons livros antigos por novos que entraram na moda (como me hacen las chicas de San Miguel) e que sou molenga demais para trabalhar (prefiro pensar que o tempo é que é um adversário célere demais para mim), protesto. Protesto, meritíssimo! Aí está a prova cabal da credibilidade das minhas nem um pouco confiáveis palavras.

Publicado em outubro de 2023, 1+1=2 2-1=0 é o romance de Fernanda Caleffi Barbetta que retrata o drama de uma menina de 8 anos que foi abandonada em um orfanato após a morte da mãe

11.

Há pessoas que abandonam cachorros.


12.

Há pessoas que fazem literatura.


13.

Há pessoas que abandonam a literatura para ficar com os cachorros.


14.

Há pessoas que abandonam os cachorros para fazer literatura.


15.

Seja bem-vindo(a) ao post do Bonas Histórias sobre o romance espetacular de Fernanda Caleffi Barbetta! Se você ainda não conhece essa autora, deveria conhecê-la. E para eu não ser cúmplice da desinformação alheia, dou uma de Gil Gomes e apresento aqui e agora o material que coletei sobre a escritora e seu livro mais reluzente. Para se obter ainda mais dados a esse respeito, recomendo a visita ao blog Entre Versos e Prosas. Nele, a própria Fernanda divulga seu trabalho, compartilha as iniciativas de colegas e mostra a repercussão de suas publicações.


16.

Atraso um ano e meio para cumprir minhas promessas? Atraso, sim! Porém, esqueço meus compromissos, senhoras e senhores? Nananinanão. As dívidas literárias são como as dívidas financeiras. Devo não nego, pago quando puder. Talvez eu esteja usando essa frase mais do que gostaria nos últimos anos deveria nesse comecinho do ano.


17.

Atraso (seis letras).

Dívida (seis letras).


18.

Paguei (seis letras).

Aí está (seis letras).

Vencedor do Prêmio CEPE Nacional de Literatura de 2022 na categoria Melhor Romance, 1+1=2 2-1=0 é o drama histórico de Fernanda Caleffi Barbetta, escritora paulistana que vive há anos nos Estados Unidos

A PREMIAÇÃO


1.

Entre 2021 e 2022, Fernanda Caleffi Barbetta produziu a história de Luiza Martins Luiza Couto Luiza, uma menina órfã que vivenciou a trágica experiência de sucessivos abandonos na infância. Uma vez concluído o romance, a autora colocou o nome de “1+1=2 2-1=0” e o inscreveu despretensiosamente no Prêmio CEPE Nacional de Literatura. Essa foi a primeira vez que ela tomou uma iniciativa desse tipo. Até então, a maioria de suas obras literárias tinha saído por autopublicação. Participar de concursos nacionais ou enviar os originais para avaliação das editoras? Fernanda sequer cogitara tais possibilidades.


2.

Em 2016, a jornalista começou a desenvolver sua primeira história ficcional, que logo em seguida seria dividida em dois livros. Assim, lançou “Futuros Roubados” (Publicação Independente) em 2017. Esse é o seu romance de estreia. Já no ano seguinte, foi impresso “Passados Revelados” (Publicação Independente), o romance de fechamento dessa saga. A tiragem foi de cem exemplares de cada título. Os livros foram basicamente distribuídos para amigos, conhecidos e familiares da escritora. Vendê-los?! Ninguém pensava nessa alternativa ainda.


3.

Aos olhos da escritora atual, “Futuros Roubados” e “Passados Revelados” são obras com narrativas que tem mais da Fernanda jornalista do que da Fernanda literata. Por isso, a explosão de sentimentos contraditórios. Por um lado, o orgulho e a satisfação pelo passo inicial dado. Por outro, a vergonha natural pelo ainda pouco traquejo pela estrada ficcional.  


4.

Empolgada principalmente com o processo de produção da duologia, mas ciente do longo caminho que tinha para percorrer até chegar à excelência almejada, Fernanda Caleffi Barbetta entendeu que precisava se desenvolver no novo ofício. Assim, começou a fazer cursos de ficção e oficinas de Escrita Criativa. Também ingressou em coletivos de escritoras. Vale a pena lembrar que nessa época ela ainda morava no Brasil. Dessa maneira, saía de cena a experiente jornalista e entrava no palco a novata na literatura.


5.

A partir dos estudos e da interação com os colegas, Fernanda se sentiu mais à vontade para apresentar praticamente um livro por ano. Em 2019, lançou “30 Textos Para Descontrair” (Publicação Independente), coletânea de contos. Em 2020, já morando no exterior, trouxe ao público “Já Não Me Cabem as Rimas” (Publicação Independente), antologia poética. E em 2022, publicou “Iceberg” (Venas Abiertas), coleção de microcontos.

Ambientado nos anos 1970 e 1980 e enfocando uma menina órfã enviada para o orfanato, 1+1=2 2-1=0 é o livro ficcional que foi lançado nas livrarias brasileiras em outubro de 2023

6.

Escrito em tópicos, “1+1=2 2-1=0” é o relato ficcional de Izinha, apelido carinhoso de Luiza Martins (nome original da personagem principal do romance) ou de Luiza Couto (seu nome após adoção). A menina conta literalmente para sua psicóloga, Doutora Camila, os perrengues vividos na infância. Após a morte da mãe quando tinha só 8 anos, a narradora-protagonista passou por maus momentos seja na casa da tia má, seja no orfanato para onde foi enviada. Não por acaso, a perda materna é o que dá o pontapé inicial do drama histórico. Essa história é ambientada do final dos anos 1970 ao início dos anos 1990.


7.

Quase um ano após enviar os originais à CEPE Editora, a romancista paulistana se preparava para lançar seu novo livro de forma independente. Ela nem sequer se lembrava de ter se inscrito no concurso. Por isso, cuidava ela mesma da revisão do texto, do projeto gráfico e dos detalhes finais de sua sexta publicação.


8.

Uma das ideias era alterar o título do livro. Apesar de original, “1+1=2 2-1=0” continha traços de experimentalismo, o que poderiam afugentar o público leitor. Sabendo desse empecilho, ganhava força na cabeça da autora um novo nome: “Todo Fim é um Abandono”. Felizmente, um contato da CEPE Editora acabou com a pretensão da mudança de designação.


9.

Diferentemente da narradora-protagonista de seu principal romance (Luiza vivia dizendo que não era boa com as palavras e buscava compreender o sentido delas no dicionário), Fernanda Caleffi Barbetta sempre dominou a arte da escrita. Na mais tenra infância, era considerada pelas outras três irmãs e pelos pais a escritora da família. Mesmo não sendo uma voraz leitora como su hermana mayor, era ela a encarregada de produzir as dedicatórias de aniversário, as mensagens de final de ano e os textos das cartas para os parentes.


10.

Certamente a escolha pelo Jornalismo como profissão em meados da década de 1990 no fim da adolescência está ligada a essa proximidade com a palavra escrita. Contudo, após mais de 20 anos atuando na área, Fernanda notou que não era exatamente aquele o tipo de texto que ela queria fazer. Sua paixão estava nas imprecisões e na polifonia da literatura e não no rigor da checagem das informações nem na defesa do ponto de vista ideológico do veículo de comunicação em que trabalhasse.

Terceiro romance e sexta publicação literária de Fernanda Caleffi Barbetta, 1+1=2 2-1=0 é o primeiro livro comercial da versátil escritora paulistana

11.

Talvez a volúpia por fazer o que, enfim, fora talhada desde a infância gostava e a ânsia de se encontrar no novo ofício profissional na nova carreira a levou a se aventurar pelos mais diferentes gêneros literários – da poesia à prosa ficcional e da micronarrativa à série literária.


12.

Curiosamente, Fernanda é uma autora de fases. Os Raimundos cantariam “Meu filho, aguenta/ Quem mandou você gostar/ Dessa mulher de fases?”. Ela já foi apaixonada pelos romances ao ponto de lançar dois quase simultaneamente (possuíam a mesma linha narrativa). Depois, se tornou obcecada pelos versos poéticos. Em seguida, enamorou os contos e os microcontos. Mais recentemente, voltou a flertar com os romances. “Complicada e perfeitinha/ Você me apareceu/ Era tudo que eu queria”. Raiva! Agora estou com essa música na cabeça.  


13.

“1+1=2 2-1=0” foi eleito o Melhor Romance do Prêmio CEPE Nacional de Literatura de 2022. Como premiação, a editora pernambucana lançou a obra nas livrarias nacionais no segundo semestre de 2023, além de pagar R$ 20 mil à autora. Com a conquista da honraria literária, ficou complicado para Fernanda mudar o título da obra, né? Assim, “Todo Fim é um Abandono” foi deslocado para outro lugar na narrativa (só não falo onde para não estragar a surpresa). Portanto, ele não foi abandonado. Apenas substituíram sua posição dentro da publicação.


14.

O primeiro evento de divulgação de “1+1=2 2-1=0” ocorreu na 14ª edição da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, em outubro de 2023. Essa data marcou uma mudança significativa na carreira de Fernanda Caleffi Barbetta. Enfim, ela deixava o universo da literatura independente e adentrava no metiê das boas editoras nacionais.


15.

A CEPE Editora está no meu grupo de casas literárias favoritas no Brasil. No Nordeste, não há dúvida, ela é a melhor! Sinto que todas as suas publicações possuem enorme qualidade. Até pouco tempo, consumia a sua revista mensal de arte e cultura, a Continente. Só parei de ler porque a excluíram do GoRead (minha plataforma de assinatura de revistas). A CEPE Editora está ao ladinho da paulista Editora Fósforo e da gaúcha Editora Dublinense como as empresas do mercado editorial que eu paro para conferir o que estão fazendo de novo. Porque sei que não vou me arrepender. Para mim, esse trio de editoras é o melhor do nosso país atualmente.

Após conquistar o Prêmio CEPE Nacional de Literatura de 2022 na categoria Melhor Romance, 1+1=2 2-1=0 foi lançado nas livrarias brasileiras em outubro de 2023 e representou a estreia de Fernanda Caleffi Barbetta na literatura comercial

16.

O título inusitado é uma referência clara aos relacionamentos humanos que, contraditoriamente, não possuem a lógica cartesiana da matemática. Duas pessoas juntas potencializam suas forças e vivências (1+1=2). Contudo, quando perdemos a pessoa amada, somos anulados (2-1=0). É ou não é incrível, senhoras e senhores, essa brincadeira numérico-social?!    


17.

“1+1=2 2-1=0” é uma das ótimas leituras que fiz nesse comecinho de 2025. Depois de ter me divertido com três excelentes publicações gringas, “Nós que Vivemos” (Minotauro), romance histórico de Ayn Rand, “Yo Te Cuento Buenos Aires – X” (Legislatura Ciudad de Buenos Aires), coletânea de premiados contos sobre a capital da Argentina feita por vários autores locais, e “Un Día” (Camalote), novela de Gustavo Cabezón, foi muito bom me entreter com algo de grande qualidade do meu país.


18.

Para não cometer nenhuma injustiça, além da publicação de Fernanda, também me deliciei nas últimas semanas com “Perfil – O Mundo dos Outros” (Manole), coleção de breves biografias produzidas por Sergio Vilas-Boas, e “O Mulato” (Principis), clássico naturalista de Aluísio Azevedo. Enquanto o primeiro livro faz parte dos meus estudos para ingressar no mundo da biografia (estou fazendo a lição de casa, pessoal da EV Publicações!), o segundo é a matéria-prima da próxima entrevista do Talk Show Literário (abraço, Darico Nobar!).


19.

Quem disse que o Carnaval é um período exclusivamente de agito e badalação fora de casa, hein? Aproveitar a calmaria do feriadão prolongado para colocar a leitura em dia e conhecer/reler os melhores títulos da literatura clássica e da literatura contemporânea também é muito prazeroso (principalmente para as almas que passaram das quarenta primaveras).


20.

Dos títulos que tive a felicidade de ler até agora em 2025, o romance de Fernanda Caleffi Barbetta é o melhor. Ele conseguiu tirar a primeira posição de “Nós que Vivemos”. E eu que imaginei que tal façanha seria difícil.

Publicado em outubro de 2023 pela CEPE Editora, 1+1=2 2-1=0 é o drama histórico de Fernanda Caleffi Barbetta que mostra o relato de uma menina de 8 anos abandonada pela tia e que foi viver num orfanato

O ENREDO


1.

A trama de “1+1=2 2-1=0” começa em 8 de julho de 1985. Aos 14 anos, 9 meses e 1 dia, Luiza Martins Couto decidiu escrever contar sua história em um caderno (ou seriam em alguns cadernos?). A adolescente por vezes revoltada e inconsequente fora incentivada por sua psicóloga, com quem se reunia semanalmente, a colocar as lembranças da difícil infância no papel. Segundo Doutora Camila, ao pôr para fora as angústias e os traumas do passado, a jovem paciente não apenas poderia assimilar melhor os eventos antigos como teria a chance de compreender sua trajetória de vida por uma nova perspectiva. E a partir desse sábio conselho ouvido na quarta consulta, Luiza iniciou seu relato.


2.

Sua história é uma história de abandonos.


3.

As páginas de abertura do caderno são de apresentação. Luiza Martins Couto era uma garotinha de 7 anos aparentemente feliz. Nascida em 7 de outubro de 1970, ela morava com a mãe Ana em uma casa simples na cidade de São Paulo. Corria o ano de 1978. As duas viviam só, pois o pai de Luiza abandonara a família há muito, muito tempo. A menina não conhecia sequer a identidade do homem que a gerou. A mãe chamava o antigo companheiro de “canalha” e não entrava em mais detalhes de quem ele seria. A menina também não parecia lá muita interessada em descobrir as origens daquela figura que sempre fora totalmente ausente.


4.

Ca.na.lha (7 letras):

1. pessoa sem moral, desonesta; patife; infame;

2. reunião de pessoas desonradas e desprezíveis;

3. que se pode referir ao que é vil, sem valor; ordinário;

 

4. pai que abandona mulher, filha e cachorro nos capítulos iniciais do romance.


5.

Para ser bem franco com os leitores da coluna Livros – Crítica Literária, na casa de Ana e Luiza também vivia Pipo, um vira-lata preto e magricelo. Muito bonzinho, ele era o melhor amigo da pequena moradora daquela residência. A dupla era do tipo inseparável. Luiza e Pipo acompanhavam juntos o tratatatatata da máquina de costura de Ana. Costureira, ela trabalhava em casa por várias horas. Seu passatempo favorito era fazer palavras cruzadas na mesa da cozinha. Para Luiza, a melhor hora do dia era quando a mãe fazia pão na chapa pão queimado.   

Livro mais premiado de Fernanda Caleffi Barbetta, 1+1=2 2-1=0 é um romance original, sensível e surpreendente sobre o abandono na infância

6.

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7.

A menina também tinha uma bonequinha, presente de Natal de Ana, com uma só chuquinha de cabelo loiro no alto da cabeça. O corpinho de pano era coberto por um vestido azul. Até hoje, a boneca não possuía um nome, mas estava pendurada na estante do quarto de Luiza.


8.

Numa tarde, não teve tratatatatata da máquina de costura nem pão queimado. Ana foi levada às pressas ao hospital. Luiza ficou com a vizinha que tinha hálito de tangerina. A mulher pediu que a pequena rezasse. Afinal, Deus ouve melhor as crianças.


9.

Ele não ouviu ninguém. Ana morreu de doença ruim.


10.

A única parente de Ana que os vizinhos localizaram foi uma velha que morava longe. Tia Nanci vivia em Minas Gerais e teve que vir para São Paulo. Após acompanhar o enterro da sobrinha, levaria Luiza para sua casa. A garota iria morar com ela.


11.

As tias de nossas mães são nossas tias?! Sinceramente, nunca tinha pensado sobre isso e, infelizmente, não tenho uma resposta válida para essa intrigante questão.


12.

Logo de cara, Tia Nanci (que não era tia de Luiza coisa nenhuma, só da mãe da menina) mostrou toda a sua vilania. Ela não quis levar Pipo para Minas. O cachorrinho foi deixado em São Paulo aos cuidados da vizinha com hálito de tangerina. Assim, Luiza partiu no ônibus inconformada com o novo abandono. Dessa vez, ela teria que aprender a viver sem o melhor amigo. A única boa companheira naquela viagem foi sua boneca de vestidinho azul.

Lançado pela CEPE Editora no final de 2023, 1+1=2 2-1=0 é o melhor romance até aqui de Fernanda Caleffi Barbetta, uma das promessas da literatura brasileira contemporânea

13.

O que era ruim se tornou ainda pior. Tia Nanci se mostrou ainda mais maléfica quando chegou ao seu lar. A vida da garotinha virou um inferno em Minas Gerais. A velha não queria a presença da filha de Ana ao seu lado, não aceitava a responsabilidade de cuidar de alguém que mal conhecia e vivia reclamando das despesas extras que a nova moradora gerava. O drama estava instalado. Sem engolir desaforos, Luiza, com 8 anos recém-completados, não deixava barato e aprontava as suas. Quando queria, ela sabia ser bastante impertinente. Sua especialidade era promover pequenas vinganças à velha bruxa. O relacionamento das duas era terrível e se deteriorava a passos largos.


14.

O que é péssimo sempre pode piorar um pouquinho mais. Não se esqueça disso, senhoras e senhores!


15.

Novo abandono (12 letras).


16.

Certo dia, Bruxa Nanci exigiu que Luiza a acompanhasse em uma viagem de ônibus pela cidade. Longe de casa, as duas desceram num ponto em frente a um casarão. A velha precisava realizar algo ali perto e mandou que a menina a aguardasse sentada no degrau de uma escada. Sem alternativa, a garotinha obedeceu. Luiza permaneceu por horas esperando o retorno da tia de sua mãe. Em seu colo, balançava a boneca de vestido azul. Aos pés, havia uma sacola. Mais tarde, viria a descobrir que dentro da sacola tinha suas roupas.


17.

Quando escureceu, Luiza entendeu que Nanci não viria buscá-la. Nessa hora, a porta do casarão se abriu. De lá saiu uma moça ruiva. Ao ver a criança atirada na escada, ela não titubeou e gritou para dentro: “outra abandonada!”.


18.

O casarão era um orfanato. Nome: Orfanato Casa das Meninas de Luz. Ali viviam 32 delinquentes, vadias, desajustadas e vagabundas crianças. A partir desse ponto, iniciava-se uma nova fase da vida de Luiza Couto Luiza Martins. Agora ela era oficialmente uma garota abandonada pela família e, por extensão, uma das tantas moradoras dos abrigos para menores de idade.

Publicado em outubro de 2023, 1+1=2 2-1=0 é o romance de Fernanda Caleffi Barbetta que retrata o drama de uma menina de 8 anos que foi abandonada em um orfanato após a morte da mãe

19.

No meio da completa escuridão podem surgir feixes de luz. Diante da onipresença da tristeza, não se deve duvidar do aparecimento de fugazes momentos de alegria. E nem tudo é feiura neste mundo. Quando menos se espera, a beleza surpreende e brota.


20.

Entre as várias coleguinhas de orfanato, Luiza fez uma forte e sincera amizade com Helena Sobral. Helena quem? Tá bom, tá bom. Fez amizade com Lena. Lena é para os íntimos. Lena chegou ao casarão algumas semanas depois de Luiza. Como as duas meninas tinham a mesma idade e possuíam grande afinidade, logo se tornaram inseparáveis.


21.

Inseparáveis (12 letras).


22.

A relação de Luiza e Lena sempre foi pautada em um mix de admiração e inveja. A inveja, na minha visão, partia mais do lado de Luiza do que da amiguinha. Mesmo assim, era inegável que as duas se adoravam e haviam construído uma relação saudável de respeito, coleguismo, carinho genuíno e ajuda mútua.


23.

Isso até a Festinha de São João do Lar das Meninas de Luz. Naquela fatídica tarde, o orfanato recebeu a visita de um casal de grã-finos. José Carlos Couto era o respeitado dentista da cidade. E Janete Couto era a fisioterapeuta que precisou abandonar a profissão após uma tragédia familiar. Assim que eles colocaram os olhos em Lena, que era realmente encantadora e dançava alegremente no meio do salão, o casal se apaixonou pela menina. No dia seguinte, o boato que rolava entre as meninas era que os bacanas iriam adotar Lena.


24.

Ao antever um novo abandono, Luiza sentiu um turbilhão de emoções. Emoções contraditórias, no caso. Por um lado, ficou feliz de ver que a melhor amiga poderia sair do orfanato e ganhar uma família próspera. Quem não sonha com um bom futuro para aqueles que se ama, hein? Por outro lado, saber que perderia a companhia diária da menina mais legal do orfanato não foi um processo fácil, ainda mais para alguém tão fragilizada emocionalmente. Como seria para Luiza viver sem a amiguinha que ela tanto gostava e admirava, né? 


25.

Com esse dilema moral na cabeça, a narradora desta obra tomou uma atitude surpreendente que mudou para sempre sua vida. Não apenas a vida dela foi radicalmente transformada como as de Lena e do casal Couto também foram. Seu comportamento na segunda visita de José Carlos e Janete divide opiniões até hoje. Teria Luiza agido corretamente ou incorretamente?! Era esse o grande conflito ético que a agora adolescente carregava no peito e tentava detalhar para Doutora Camila. E é esse o suspense do livro de Fernanda Caleffi Barbetta que deixo para você, oh curioso(a) visitante do Bonas Histórias.      

Vencedor do Prêmio CEPE Nacional de Literatura de 2022 na categoria Melhor Romance, 1+1=2 2-1=0 é o drama histórico de Fernanda Caleffi Barbetta, escritora paulistana que vive há anos nos Estados Unidos

A ANÁLISE


1.

As 292 páginas de “1+1=2 2-1=0” estão divididas em 86 capítulos. Levei aproximadamente 4 horas e meia para concluir a leitura desta publicação no sábado carnavalesco. Foram basicamente duas sessões: a primeira no começo da tarde de 1 hora e meia; e a segunda entre o fim da tarde e o começo da noite de cerca de 3 horas. Portanto, dá para ir da capa à contracapa em meio período. Convenhamos que é uma leitura extremamente rápida, principalmente se considerarmos que temos em mãos um romance de quase três centenas de páginas.


2.

Para quem gosta de longas sentadas literárias, dá para concluir este título de Fernanda numa manhã, numa tarde ou mesmo numa única noite. Para quem não curte ficar muitas horas com os olhos grudados nas páginas, é perfeitamente possível finalizar o livro em dois dias ou em três noites consecutivas. Aposto que quem avança pelo primeiro capítulo pelos primeiros capítulos irá direto até o final. Certeza! Foi o que aconteceu comigo nas duas vezes em que degustei “1+1=2 2-1=0” – no fim de 2023 e agora, início de 2025. Em ambas as oportunidades, só fiz um intervalo no meio da leitura porque sou esfomeado e vivo procurando algo para comer.


3.

É só comigo ou ler dar fome em todo mundo?


4.

A velocidade de leitura é alta por alguns motivos. Em primeiro lugar, a história é muito, muito boa. Naturalmente ficamos curiosos para saber o que irá acontecer mais à frente e não conseguimos fechar a obra. Além disso, a apresentação do enredo em estrutura de tópicos e os capítulos curtinhos aceleram ainda mais o caminhar dos olhos. A função desses recursos textuais é justamente dar celeridade à leitura.


5.

Para completar, o ritmo narrativo também é extremamente ágil. Ocorrem muitas coisas em pouquíssimas páginas. Em dois capítulos, ficamos sabendo que Luiza se tornou órfã na infância. Três capítulos depois, a menina estava sob os cuidados da megera Tia Nanci e sem a companhia de Pipo. Cinco capítulos mais tarde, a garotinha já fora abandonada na porta do orfanato. Se isso não é rapidez narrativa, não sei mais o que seria uma trama veloz.

Ambientado nos anos 1970 e 1980 e enfocando uma menina órfã enviada para o orfanato, 1+1=2 2-1=0 é o livro ficcional que foi lançado nas livrarias brasileiras em outubro de 2023

6.

Preciso fazer um elogio à equipe da CEPE Editora que cuidou desta publicação. O projeto gráfico e a diagramação de “1+1=2 2-1=0” estão primorosos. Além de lindo, o romance não economizou espaço (um mal que, infelizmente, aparece em vários títulos de editoras comerciais). Ao invés de pensarem na economia de páginas (ah, essa mania de cortar custos onde não se deve!), os designers se preocuparam fundamentalmente com a experiência de leitura. Assim, o visual do livro também é um convite sedutor ao mergulho nessa história ficcional.


7.

Parodiando Jojo Todynho: que capa foi essa, viado? Que capa foi essa, que tá um arraso?! A emulação da aquarela na capa mostra vários elementos da infância da protagonista: o edifício do orfanato, o outdoor do terreno baldio, o cachorrinho abandonado em São Paulo e a personagem principal sozinha na estrada da vida (ou seria a bonequinha do vestido azul ou mesmo a melhor amiga a aguardando?). Em outras palavras, não temos na imagem de abertura o retrato de uma cena específica do livro e sim a reunião de vários flashes da trajetória de Luiza. Samba, na cara da inimiga, vai. Samba, desfila com as amigas! Que capa foi essa?!


8.

Do ponto de vista da tipologia narrativa, esta obra pode ser classificada como um drama histórico (o enredo se desenrola de meados de 1978 ao início de 1992), um romance de formação (construção da personalidade da narradora através da apresentação da fase mais difícil da vida) e/ou uma narrativa infantojuvenil (perrengues da protagonista durante a infância e a adolescência). Como já foi mencionado, a narração é em primeira pessoa. Quanto ao tipo de narrador, o detalharei mais à frente. Porém, posso adiantar que, para mim, Luiza Couto é uma narradora pouquíssimo confiável. Ai, ai, ai. Lá vem polêmica!


9.

Polêmica (8 letras).


10.

O primeiro elemento da narrativa que chama nossa atenção neste trabalho literário de Fernanda Caleffi Barbetta é a beleza do seu texto. Temos aqui uma prosa poética ao mesmo tempo sensível e inteligente. A brincadeira metalinguística do verbo “contar” é simples e sofisticada. Nota-se a preocupação da autora em amarrar as questões estéticas da contação da história à lógica do enredo e à personalidade da narradora-protagonista. O resultado é incrível. Não conheço nenhum outro título que tenha participado da edição de 2022 do Prêmio CEPE Nacional de Literatura. Ainda assim, garanto que a conquista de “1+1=2 2-1=0” como melhor romance foi justa, muito justa, justíssima.  

Terceiro romance e sexta publicação literária de Fernanda Caleffi Barbetta, 1+1=2 2-1=0 é o primeiro livro comercial da versátil escritora paulistana

11.

Outra questão que precisamos debater é como autores habilidosos conseguem transformar histórias ficcionais tristes em narrativas maravilhosas. Por mais que o drama da menina recorrentemente abandonada toque nossos corações, é impossível não ficarmos encantados com a maneira como a trama é apresentada. Juro que as melhores experiências literárias que tive nos últimos anos foram de textos que conseguiram extrair beleza das tragédias e/ou reflexões profundas de momentos delicados das personagens principais. Sem sair da literatura em língua portuguesa, dá para citar como exemplos desse processo “Suíte Tóquio” (Todavia), melhor título ficcional de Giovana Madalosso, “O Menino Amarrado ao Manacá” (Publicação Independente), segundo romance de José Carlos Martins, “2 Guerras Surreais” (Publicação Independente), novela fantástica de Graziella Moraes, e “O Mapeador de Ausências” (Companhia das Letras), drama histórico de Mia Couto. Essas são publicações que analisei recentemente na coluna Livros – Crítica Literária.  


12.

Sabe o que podemos fazer para descobrir se o romance tem ou não tem boas cenas e boas personagens? É simples. Leia-o uma vez de maneira descompromissada. Depois, guarde o livro no fundo da estante. Aí pegue-o quase dois anos mais tarde. Se ao reler as primeiras páginas a história vier inteirinha à cabeça e você se lembrar claramente das figuras retratadas, tenha certeza de que está diante de uma excelente trama. Por consequência, as cenas e as personagens são ótimas.


13.

Tenho evidências empíricas de que “1+1=2 2-1=0” é uma narrativa ficcional excelente. Fiz o teste e ele deu positivo.


14.

A ambientação deste livro é sublime. A detalhada construção histórica dos anos 1970 e 1980 e o retrato pujante de uma criança abandonada no orfanato fazem o romance se tornar forte e contundente. Ele também tem temperos de originalidade e um estilo narrativo marcante. Temos doses corrosivas de acidez, humor negro, reflexões filosóficas, metalinguagem literária e jogos matemático-linguísticos. Adorei esse mix de elementos.


15.

A publicação é tão fidedigna, mas tão fidedigna que ficamos com a impressão de que Fernanda Caleffi Barbetta está contando a sua própria história. Você teve essa sensação, hein? Admito que eu tive. Na primeira leitura que fiz, podia jurar que estava acompanhando uma trama autobiográfica ou semibiográfica. No pior dos casos, seria um enredo com fortes influências de episódios reais. Entretanto, é importante dizer que a Luiza Martins/Luiza Couto é apenas uma personagem ficcional e não tem qualquer relação com a autora. As únicas semelhanças entre elas são a habilidade com o manuseio das palavras e a capacidade fora do comum de contar histórias.     

Após conquistar o Prêmio CEPE Nacional de Literatura de 2022 na categoria Melhor Romance, 1+1=2 2-1=0 foi lançado nas livrarias brasileiras em outubro de 2023 e representou a estreia de Fernanda Caleffi Barbetta na literatura comercial

16.

As melhores ficções são aquelas que parecem verídicas aos olhos dos leitores desavisados.


17.

A autora escolheu as décadas de 1970 e 1980 para retratar sua história porque essa foi a época em que havia muitas crianças nos orfanatos. Além disso, como era ainda menina nesse período, se tornava mais fácil para ela construir a ambientação da infância da pequena Luiza a partir de suas próprias memórias. Achei essa opção acertadíssima.    


18.

Não sou da Geração X como Fernanda e Luiza. Eu sou da Geração Y Millennium. Ainda assim, fui impactado por várias passagens do romance, que remeteram a momentos emblemáticos da minha infância. Uma das músicas que minha avó me ensinou (e que não esqueço de jeito nenhum) é “Hoje é Domingo”. Consigo cantá-la até hoje do início ao fim numa boa. Minha irmã nasceu em 7 de outubro, assim como a protagonista de “1+1=2 2-1=0”. Tal qual a separação de Luiza e Lena, vivenciei a partida do meu melhor amiguinho (Evandro) na escola quando tinha 10 ou 11 anos. Na minha família, acompanhei de perto o luto de alguns pais e mães e o medo deles de perderem novamente outros filhos. A década de 1980 foi uma época com alta mortalidade infantil.


19.

Para completar o revival, visitei muitos orfanatos paulistanos quando criança. Dona Júlia Minha avó materna adorava distribuir comida e roupa para a criançada dos bairros da periferia de São Paulo. E eu ia junto (não sei o porquê). Não sai da minha memória a imagem das dondocas fúteis que iam a reboque nessas visitas e a impressão que elas causavam na molecada simples e carente. Por isso, consegui visualizar com precisão o clima no Lar das Meninas de Luz após o ligeiro interesse de José Carlos e Janete pela pequena Lena.


20.

Incrível como os romances de qualidade conseguem reativar nossas mais antigas lembranças, né?


21.

Por falar em memória, quando Luiza faz amizade com Lena no orfanato, “1+1=2 2-1=0” me lembrou bastante “A Amiga Genial” (Biblioteca Azul), romance magistral de Elena Ferrante. Porque a relação das duas personagens de Fernanda Caleffi Barbetta é tão contraditória e delicada quanto a de Elena Greco e Rafaella Cerullo. Até o nome e o apelido em certos casos são idênticos. E faço essa associação não para diminuir o livro brasileiro e sim para explicar uma percepção que aflorou em mim a partir dessa comparação.    

Publicado em outubro de 2023 pela CEPE Editora, 1+1=2 2-1=0 é o drama histórico de Fernanda Caleffi Barbetta que mostra o relato de uma menina de 8 anos abandonada pela tia e que foi viver num orfanato

22.

Foi apenas no instante em que Luiza age de maneira questionável no Lar das Meninas de Luz e prejudica propositadamente Lena que minha ficha caiu – eita termo bem anos 1980, né? Tal qual Elena Greco em Nápoles, a protagonista de “1+1=2 2-1=0” não é uma narradora confiável em Minas Gerais. Repito: NEM UM POUCO CONFIÁVEL! Quando temos tal entendimento, a experiência literária se potencializa e o livro ganha novo colorido.


23.

Ao notar que a personagem principal é uma figura redonda, começamos a questionar seus comportamentos, suas crenças e sua índole. O quanto a menina é manipuladora, hein?! O quanto mente e tem gosto por ludibriar a todos a sua volta? Será que como leitores também estamos sendo vítimas de suas maquinações? Por mais que seguimos tocados por sua trajetória difícil e pelos incontáveis dramas infantis (não ter uma família aos 8 anos não é mole!), Luiza tem uma personalidade um tanto difícil. Com tal compreensão, passamos a degustar sua narrativa com o devido cuidado para não sermos enganados pelo texto em primeira pessoa. Incrível, não? 


24.

A associação com “A Amiga Genial” é porque, diferente de quase todo mundo que conheço, odeio Elena Greco e admiro Rafaella Cerullo. Para mim, a narradora-protagonista da obra mais famosa de Elena Ferrante é na verdade uma anti-heroína ao estilo de Nazaré de “Senhora do Destino” (2004/2005) e Carminha de “Avenida Brasil” (2012). E a figura que é demonizada pela personagem principal da “Tetralogia Napolitana” é no fundo uma ótima pessoa, tais quais (cuidado que aí vão alguns spoilers) Fitzwilliam Darcy de “Orgulho e Preconceito” (Penguin-Companhia), clássico de Jane Austen, e Andrei Federovitch, do já citado “Nós que Vivemos”.


25.

Pera aí, Ricardo. Você misturou telenovela e literatura nas comparações de um mesmo parágrafo! Pode isso, Arnaldo?!


26.

Se não acredita na possibilidade de termos uma anti-heroína em “1+1=2 2-1=0”, pense no seguinte: se Luiza mentia MUITO e DESCARADAMENTE para sua melhor amiga (e para os pais adotivos e para todo mundo que encontrava pela frente) e fez o que fez com Lena (esse é o meu esforço para não dar o spoiler!), por que ela não ludibriaria e não manipularia você, simples leitor(a), com quem não nutria nenhum sentimento especial?! Ou não faria o mesmo com Doutora Camila, a verdadeira leitora das páginas dos cadernos infantojuvenis? Lembremos que a Luiza adolescente estava tentando convencer a psicóloga a “comprar seu ponto de vista” sobre os perrengues do passado.

Livro mais premiado de Fernanda Caleffi Barbetta, 1+1=2 2-1=0 é um romance original, sensível e surpreendente sobre o abandono na infância

27.

Não podemos nos esquecer que a narradora-protagonista era alguém que dominava desde cedo a arte da contação das histórias e sabia manusear a oratória muitíssimo bem. Apesar de vir com um papinho de que não era tão habilidosa quanto a mãe na difícil tarefa de caçar as palavras ou de cruzá-las, a adolescente era genial em construir relatos fortes, dramáticos e convincentes. Em suma, é uma legítima escritora ficcional. Aí está mais um motivo para ficarmos com um pé atrás em relação a veracidade de sua narrativa.


28.

As dúvidas do que é verdade e o que é mentira trazem uma camada extra de força narrativa e de beleza interpretativa ao romance. Por exemplo, será mesmo que Tia Nanci era uma bruxa como o texto indica? Ou será que Luiza era uma mini terrorista na casa daquela pobre senhora? Será que foi mesmo Nanci que abandonou a filha da sobrinha na porta do orfanato? Ou foi a própria menina que fugiu de casa, mas revelou ao mundo mais tarde que fora abandonada pela única parente que conhecia? Quando temos uma história em que o(a) narrador(a) não é confiável (eu também já vi um homem passeando com hipopótamo na coleira na frente da casa da minha avó), temos que nos questionar cada linha e cada passagem do enredo.   


29.

Bato mais uma vez na tecla: a dualidade e as contradições da personalidade de Luiza a fazem uma personagem ainda mais rica literariamente. E vivam as figuras redondas na ficção, senhoras e senhores! E salvem os narradores pouco confiáveis e de índoles questionáveis!


30.

Antes que me chovam críticas, alerto que continuo gostando muito de Luiza (diferentemente de Elena Greco, que não gosto nada!) e que permaneço admirando sua trajetória infantil. Só estou dizendo que não confio totalmente em seus relatos. Só isso, tá? Não é porque temos dúvidas sobre a veracidade de uma história em primeira pessoa que não nutrimos carinho pelo(a) narrador(a). Sabe que música do Calcinha Preta me veio, por acaso, à cabeça agora? Aquela que tinha os versos: “Você não vale nada/Mas eu gosto de você!/Você não vale nada/Mas eu gosto de você!/Tudo que eu queria/Era saber por que?/Tudo que eu queria/Era saber por que?”.    


31.

A própria configuração da personalidade da protagonista foi, na minha opinião, um recurso estratégico para se evitar um problemão de ordem narrativa. Afinal, o texto de “1+1=2 2-1=0” oscila o tempo inteiro entre a inocência/pureza da infância (algo que só as crianças conseguem exibir com naturalidade) e a beleza estética/reflexão apurada da realidade (habilidade mais comum do universo adulto). Enquanto uma menina não teria repertório linguístico e bagagem literária para construir uma narrativa mais intrincada e reluzente, um adulto perderia a candura e a fofura dos tempos de meninice. E por que isso seria um possível problema? Porque o romance ficaria inverossímil com essa junção de características tão antagônicas, né? Pelo menos do ponto de vista da Teoria Literária.


32.

Qual foi a solução genial encontrada por Fernanda Caleffi Barbetta para exterminar definitivamente esse possível B.O.? Tal qual um mágico que saca da cartola um coelho para admiração do público, a romancista paulistana lançou como sua narradora uma adolescente com grande habilidade na arte da contação das histórias. Aí o milagre foi feito diante dos nossos olhos. Ao mesmo tempo em que Luiza de quase 15 anos tinha as lembranças frescas da infância recém-terminada, ela também tinha a capacidade e a maturidade para construir uma prosa poética bonita e sensível com maestria. Não nos esquecemos que era uma mentirosa nata. Ou, no linguajar mais literário, uma ficcionista precoce.   

Lançado pela CEPE Editora no final de 2023, 1+1=2 2-1=0 é o melhor romance até aqui de Fernanda Caleffi Barbetta, uma das promessas da literatura brasileira contemporânea

33.

Os últimos capítulos do livro vão até 13 de fevereiro de 1992, quando Luiza Couto tinha 21 anos. Será que ela, agora com mais recursos literários na bagagem, mexeu no texto original que deixou registrado nos cadernos da adolescência? Conhecendo sua índole, não duvido numa intervenção. Na hora de passar o material para o arquivo eletrônico a máquina de escrever, certeza que ela mexeria em muita coisa. Estamos falando de uma artista, senhoras e senhores. Estamos falando de uma moça com alma de escritora!


34.

Quando escrevi lá no primeiro parágrafo deste post do Bonas Histórias que “1+1=2 2-1=0” é um romance impecável não foi por acaso. Simplesmente não achei um “A”, uma vírgula, nada para contestar. NADA! Admito que fico frustrado quando isso acontece. Minha tarefa como crítico literário é justamente apontar tanto os pontos fortes quanto os pontos fracos das publicações analisadas. Não dá para apresentar uma avaliação imparcial na coluna Livros – Crítica Literária sem algumas sugestões de melhoria. Sou tão cara de pau nesse sentido que tenho a presunção de comentar nomes como José Saramago, Isabel Allende, Mia Couto, Régine Deforges, José Eduardo Agualusa, Agatha Christie, Jorge Amado, Virginia Woolf e Rubem Fonseca e listar falhas em suas narrativas. Acredite se quiser, mas faço isso sem corar.


35.

Mas o que eu teria para reclamar desta obra ficcional de Fernanda Caleffi Barbetta, Santo Deus?!   


36.

Na primeira leitura que fiz no fim de 2023, confesso que não gostei da extensão da história para depois da narrativa dos cadernos de Luiza com 14 anos. O acréscimo dos capítulos produzidos por Luiza aos 21 anos me soou desnecessário. Entretanto, nesta segunda leitura, achei brilhante o desfecho. Ou seja, não mudaria isso.


37.

Nossa, por falar nessa questão, já estava me esquecendo de comentar com você: o desenlace de “1+1=2 2-1=0” é estupendo. Ainda bem que não trocaram o título do livro para “Todo Fim é Um Abandono”.


38.

Outro componente narrativo que me incomodou um pouquinho na leitura inicial foi o caráter meio caricato de algumas personagens, como Tia Nanci, Janete Couto e a própria Lena. Originalmente, elas me pareceram figuras excessivamente planas, algo que convenhamos estraga bastante a qualidade do texto literário. Contudo, na releitura, entendi que as descrições delas não fazem parte da realidade ficcional, mas são reflexos da percepção da narradora-protagonista. Portanto, não há erro nenhum aqui. Outra vez, é uma peça muito bem encaixada da estrutura narrativa. O retrato estereotipado e maniqueísta de algumas personagens faz total sentido aos olhos de cigana oblíqua e dissimulada de Luiza.  

Nascida em São Paulo e morando desde 2019 nos Estados Unidos, Fernanda Caleffi Barbetta é autora de 1+1=2 2-1=0, livro vencedor do Prêmio CEPE Nacional de Literatura de 2022 na categoria Melhor Romance

39.

Viu só como está complicado achar o que criticar reclamar?!


40.

Romance impecável (6 números).

“1+1=2 2-1=0” (16 palavras).


41.

Pela excelência desse romance, acho difícil Fernanda Caleffi Barbetta voltar à autopublicação. Aposto que já deve haver uma fila considerável de grandes editoras interessadas em lançar comercialmente suas novas histórias (e até relançar as antigas obras). Falo como leitor apaixonado por ficção: eu vou sim comprar seus próximos trabalhos literários. Fiquei fã de seu estilo e da qualidade de seu texto.   


42.

Fim. Todo fim também é um começo.


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