Um dos favoritos ao Oscar de 2023, o longa-metragem anglo-irlandês apresenta uma comédia dramática das mais ácidas, perturbadoras e originais.
No mês passado, aproveitei a Semana do Cinema, promoção realizada pelas principais redes exibidoras, para conferir uma série de bons filmes que estão em cartaz no circuito comercial brasileiro. O começo do ano reserva geralmente um cardápio de títulos cinematográfico farto e de ótima qualidade e em 2023 não foi diferente. Na lista de excelentes longas-metragens à disposição dos cinéfilos nacionais, meus destaques vão para: “Os Banshees de Inisherin” (The Banshees of Inisherin: 2022), “Tár” (2022), “Babilônia” (Babylon: 2022), “M3gan” (2022), “Os Fabelmans” (The Fabelmans: 2022), “Triângulo da Tristeza” (Triangle of Sadness: 2022), “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” (Everything Everywhere All at Once: 2022) e “Nada de Novo no Front” (Im Westen Nichts Neues: 2022).
Não por acaso, a maioria dessas produções foi indicada ao Oscar de 2023, cuja cerimônia de premiação será realizada neste final de semana, 12 de março. Com uma safra de filmes tão reluzente, na certa a festa deste ano da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles deverá girar em torno do debate sobre a qualidade e os méritos dos longas-metragens finalistas. Ou seja, não deveremos ter polêmicas banais trazidas natural ou artificialmente (entenda como quiser) pelos participantes da cerimônia do Oscar, algo que geralmente acontece quando o acervo cinematográfico à disposição do público e dos jurados não é lá muito apetitoso. Não é mesmo Will Smith e Chris Rock?
Antes que os envelopes com os vencedores do principal evento do cinema internacional sejam abertos na noite/madrugada de domingo, resolvi revelar neste post da coluna Cinema quem é o meu favorito à estatueta de melhor filme de Hollywood em 2023. No caso, já adianto (não sou chegado a grandes suspenses, pelo menos não em meus textos analíticos) que minha torcida vai inteiramente para o espetacular e inesquecível “Os Banshees de Inisherin”, produção anglo-irlandesa dirigida por Martin McDonagh. Apesar de saber que “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” é apontado como barbada pelos críticos de cinema (com “Nada de Novo no Front” correndo por fora), ainda sim reafirmo minha confiança em “Os Banshees de Inisherin”.
Para começo de conversa, ainda bem que tenho um blog e não um vlog. Juro que nunca consigo falar direito o nome deste filme! Repita comigo três vezes, rapidinho e em voz alta: Os Banshees de Inisherin. Os Banshees de Inisherin. Os Banshees de Inisherin. Eu não consigo. O que eu consigo expressar sem dificuldade é o impacto que senti na sala de cinema. Essa comédia dramática de McDonagh proporcionou uma das experiências mais angustiantes que já vivenciei em uma sessão cinematográfica. Admito que saí do cinema tenso e nervoso com o conflito assistido. Aí está justamente o maior mérito deste título. Ele foi desenvolvido exatamente para incomodar, para cutucar visceralmente a plateia.
A trama de “Os Banshees de Inisherin” é ao mesmo tempo perturbadora, reflexiva e pitoresca, além de extremamente original. O filme também flerta o tempo inteiro com a dinâmica teatral, algo inusitado para uma produção cinematográfica e uma característica que lhe caiu muito bem. Minha confiança é tanta na consagração do longa-metragem de Martin McDonagh que pensei com os botões inexistentes da minha camiseta: vou escrever um post sobre “Os Banshees de Inisherin” no Bonas Histórias para o pessoal, depois da cerimônia do Oscar, ler a respeito. Justo. Muito justo. Justíssimo. Minha ideia brilhante para maximizar o SEO do blog só tem um probleminha...
Todo ano, eu tenho a mania de apontar o meu filme favorito ao Oscar. E sempre quebro a cara redondamente. Quem acompanha a coluna Cinema já está acostumado com o meu pé frio. Tal sina começou em 2015, justamente quando o Bonas Histórias foi criado. Naquela primeira temporada do blog, apontei “Boyhood – Da Infância à Juventude” (Boyhood: 2014) como o meu queridinho à principal estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles. Deu, claro, “Birdman ou A Inesperada Virtude da Ignorância” (Birdman or The Unexpected Virtue of Ignorance: 2014).
A partir daí foi uma coleção interminável de apontamentos equivocados da minha parte. Em 2017, por exemplo, cravei: o Oscar vai para “La La Land – Cantando Estações” (2016). Não tinha como dar errado, pensei com minha típica ingenuidade. Deu “Moonligh – Sob a Luz do Luar” (Moonligh: 2016), um título de qualidade beeeeeeem discutível (qualidade bem discutível é um eufemismo, tá?). Em 2020, fiquei dividido entre os espetaculares “1917” (2019) e “Coringa” (Joker: 2019). Por entender que a experiência cinematográfica proporcionada pelo drama histórico fosse mais completa, decretei o filme de Sam Mendes como o meu predileto. Contudo, não descartei totalmente a chance da consagração do vilão de Batman que fora transformado em anti-herói. A estatueta foi então entregue para “Parasita” (Gisaengchung: 2019), o surpreendente título de Bong Joon Ho.
Desde então, confesso que entendi que estava fadado a jamais acertar previamente quem seria o vencedor do Oscar. Portanto, caberia, como único remédio a essa amarga maldição cinematográfica, parar com as previsões, certo? Nananinanão. Como sou brasileiro, não desisto nunca! Agora é questão de honra acabar com a invencibilidade reversa (soou até bonitinho esse termo: invencibilidade reversa). Preciso acertar ao menos um vencedor até o dia do meu encontro inadiável com a Senhora Misteriosa. Não sossegarei enquanto não vier à coluna Cinema e gritar a plenos pulmões: “Estão vendo? Acertei!”. Se os palmeirenses creem que um dia vão conquistar o título mundial, por que eu não poderia vislumbrar minha conquista pessoal com as estatuetas do Oscar, hein?
Pensando bem, acho que o que acontece comigo é uma espécie de praga familiar. A minha mãe tem o mesmo problema, só que relativo à previsão do tempo. Há quatro décadas (é o tempo em que a conheço – a maldição pode ser até mesmo mais longa...), ela decreta diariamente feliz da vida o que acha que vai acontecer com o clima na cidade de São Paulo. Inclusive, orienta as pessoas ao seu redor (conhecidos ou desconhecidos) do que elas devem fazer para não serem surpreendidas por São Pedro. E minha querida e estimada mãezinha erra dia a dia TODAS as suas previsões!!! Eu não estou exagerando quando usei a palavra TODAS (e quando coloquei os três pontos de exclamação) na última frase. Acredite se quiser, mas ela NUNCA acertou um único e mísero palpite meteorológico. Se fala que vai chover, faz sol. Se diz que vai esquentar, faz frio. Se alguma vez, por ventura, escapar um palpite que não vai nevar, é capaz de termos uma tempestade de neve nas ruas da capital paulista.
Com seu impressionante histórico de erros (100%), Dona Cidinha deveria amolecer e parar de tentar adivinhar o que vai acontecer com o céu paulistano, né? O problema é que ela não para. E todo dia temos uma nova previsão furada. Acho que vou repetir seu entusiasmo de não desistir nunca (e de se esquecer das previsões fracassadas de outrora). Acredito sim que um dia ainda vou adivinhar o vencedor do Oscar. Talvez o único que não fique muito feliz com minha iniciativa em 2023 (um ditado que adoro é: o pior burro é aquele que tem iniciativa) seja Martin McDonagh. Realmente, o cineasta inglês não merecia a minha torcida pela sua mais recente produção. Fazer o quê? Cada um tem a torcida que merece...
Por falar em McDonagh, é legal dizer que ainda é um pouco estranho chamá-lo de cineasta. Aos 52 anos e filho de pais irlandeses que se mudaram para Londres, Martin Faranan McDonagh se consolidou como um dos mais talentosos e originais dramaturgos ingleses de sua geração. Suas peças geralmente transbordam humor negro e nonsense e conquistaram uma infinidade de prêmios, principalmente pela estética inusitada e pelo conteúdo corrosivo. Depois da consagração nos palcos de West End e da Broadway, McDonagh, que possui tanto a cidadania inglesa quanto a irlandesa, passou a investir em trabalhos autorais no cinema.
Sua primeira produção cinematográfica foi o curta-metragem “Six Shooter” (2004). Já o primeiro longa-metragem, “Na Mira do Chefe” (In Bruges: 2008), chegou aos cinemas quatro anos mais tarde. Adaptado de uma de suas peças (como todos os seus filmes, vale a pena ressaltar), o longa de estreia do anglo-irlandês foi indicado ao Oscar de 2009 na categoria Melhor Roteiro Original. Até o lançamento de “Os Banshees de Inisherin”, Martin McDonagh só tinha dirigido mais dois longas-metragens: “Sete Psicopatas e Um Shit Tzu” (Seven Psychopaths: 2012) e “Três Anúncios para Um Crime” (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri: 2017). Ambos os títulos foram indicados ao Oscar e conquistaram alguns relevantes prêmios no Globo de Ouro e no BAFTA Awards.
Apesar do êxito dos quatro filmes iniciais de McDonagh, o melhor ainda estava por vir. E ele veio agora com o sensacional e incomparável “Os Banshees de Inisherin”. Escrito, dirigido e coproduzido pelo próprio dramaturgo-cineasta britânico, este longa-metragem concorre em oito categorias do Oscar 2023: Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Roteiro Original, Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Trilha Sonora Original e Melhor Montagem. Por isso, já é possível dizer que este trabalho colocou Martin McDonagh definitivamente como uma das estrelas de primeira grandeza do cinema internacional. Se as estatuetas da Academia de Los Angeles não vierem dessa vez (lembre-se da minha previsão/torcida!), na certa elas não tardarão em chegar para sua galeria de troféus.
Orçado em US$ 20 milhões, “Os Banshees de Inisherin” estreou nos cinemas da Inglaterra, Irlanda e Estados Unidos em outubro de 2022. No Brasil, ele aportou em nossas salas no comecinho de fevereiro de 2023. Dono de três prêmios no Globo de Ouro (melhor filme na categoria musical/comédia, melhor ator em musical/comédia e melhor roteiro) e de quatro no BAFTA em 2023 (melhor filme britânico, melhor roteiro original, melhor ator coadjuvante e melhor atriz coadjuvante), “Os Banshees de Inisherin” foi rodado inteiramente na costa Oeste da Irlanda, onde se passa a história ficcional. As filmagens foram feitas basicamente entre agosto e outubro de 2021 em Inishmore, a maior das Ilhas Aran na Baía de Galway, e Achill, uma das ilhas do condado de Mayo.
Além do roteiro impecável e da fotografia deslumbrante, o que mais chama a atenção nesta nova produção cinematográfica de McDonagh é o elenco extremamente gabaritado que foi escalado para atuação na frente das câmeras. Por conhecer os principais atores e atrizes da Inglaterra e da Irlanda (essa é uma das vantagens de ser dramaturgo, né?), o diretor anglo-irlandês geralmente utiliza nas telas o que há de melhor nos palcos. E em “Os Banshees de Inisherin” não foi diferente. Com um elenco formado 100% por atores e atrizes irlandeses de enorme experiência e competência (muitos deles já tinham inclusive trabalhado em filmes e peças anteriores de Martin McDonagh), o resultado não poderia ter sido outro além do sublime.
Os destaques vão para Colin Farrell, de “Minority Report” (2002) e “Por Um Fio” (Phone Booth: 2003), Brendan Gleeson, de “No Coração do Mar” (In The Heart of the Sea: 2015) e “Assassin's Creed” (2016), Kerry Condon, de “Capitão América – Guerra Civil” (Captain America – Civil War: 2016) e “A Casa do Medo” (Bad Samaritan: 2018), e Barry Keoghan, da série “Chernobyl” (2019) e “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (The Killing of a Sacred Deer: 2017). O quarteto constitui o time de protagonistas do filme. A equipe de atores e atrizes é complementada por Gary Lydon, David Pearse, Pat Shortt, Sheila Flitton, Jon Kenny, Aaron Monaghan e Bríd Ni Neachtain.
Por trás das câmeras, os profissionais técnicos de “Os Banshees de Inisherin” são Ben Davis como diretor de fotografia, Carter Burwell como responsável pela produção da trilha sonora e Mikkel E. G. Nielsen como diretor de montagem e edição de vídeo. Além da participação de McDonagh, a produção do longa-metragem foi realizada em conjunto com os britânicos Graham Broabent e Peter Czernin. Acho legal destacar que toda a equipe já tinha trabalhado em algum dos filmes anteriores do diretor. Ou seja, não faltou entrosamento entre eles e McDonagh.
O enredo de “Os Banshees de Inisherin” se passa na ilha irlandesa (fictícia) de Inisherin durante a Guerra Civil. Em 1923, logo após a independência da Grã-Bretanha, a Irlanda é palco de sangrentas batalhas internas. Em jogo está a política do país dali em diante: reintegração com os vizinhos ou sequência da postura autônoma. A sorte (e, ao mesmo tempo, o azar) dos moradores de Inisherin é que a ilha está distante de tudo e de todos, quase que esquecida da civilização e dos compatriotas. Por ser pequena, distante do continente, muito pacata e não ter absolutamente nada de economicamente interessante, além de alguns pequenos criadores de gado, a localidade passa imune ao conflito armado. Dessa maneira, o dia a dia dos habitantes de Inisherin se mantém rigorosamente dentro da rotina entediante e calma de sempre.
Para se ter uma ideia do quão tranquilo é o cotidiano local, a grande novidade no povoado é a desavença curiosa e inexplicável entre Pádraic Súilleabháin (interpretado por Colin Farrell), um humilde criador de ovelhas, e Colm Doherty (Brendan Gleeson), um músico erudito. A amizade de algumas décadas dos dois sujeitos simplesmente acaba de uma hora para outra para perplexidade de todos os moradores da ilha.
Como fazia todos os dias, Pádraic procura Colm para eles tomarem uma cerveja no bar/pub de Jonjo Devine (Pat Shortt). Contudo, o criador de ovelhas não consegue falar com seu melhor amigo, que parece evitá-lo e até mesmo fugir de sua companhia. Quando enfim consegue se encontrar com Colm, Pádraic ouve do então parceiro de bebedeiras que não quer mais ter aquela amizade pouco salutar e muitíssimo improdutiva. O músico diz que acha a companhia de Pádraic uma enorme perda de tempo e um desserviço à sua atividade intelectual. Além de chato e burro, o criador de ovelhas não tem mais nada a acrescentar à vida sociocultural de Colm, que quer a partir dali se dedicar mais às composições de suas canções e às aulas de música que ministra para os alunos de fora da ilha. Seu sonho é compor uma obra-prima da música erudita, que ele batizou de Os Banshees de Inisherin. Por isso, o amigo revoltado pede para Pádraic não lhe dirigir mais a palavra.
Sem entender o que está acontecendo, Pádraic Súilleabháin fica perplexo e assustado. Como assim, ele não terá mais a companhia do melhor amigo e as conversas animadas no pub?! O que será que ele fez para ter ganhado a antipatia daquele que até ontem o estimava tanto? Desnorteado e sem reação, o rapaz não esconde dos demais moradores de Inisherin a tristeza pelo novo tipo de relacionamento com Colm Doherty. Sensibilizados com amargura do criador de ovelhas, a maioria dos habitantes da ilha decide ajudá-lo a solucionar a questão.
A primeira a conversar com o músico para entender o que está acontecendo é Siobhan Súilleabháin (Kerry Condon), irmã de Pádraic. A moça vai tirar satisfações com o antigo amigo do irmão. Ela quer saber os motivos do comportamento ingrato e transloucado de Colm. Mais uma vez, ele explica o quão imbecil é Pádraic (algo que ninguém melhor do que a irmã para saber), o que o faz ser uma enorme perda de tempo para aqueles que o rodeiam. Agora idoso e se aproximando da morte, Colm Doherty quer usar o tempo que lhe resta de um jeito mais produtivo e intelectualmente saudável. E para tal, ele quer distância das asneiras e das conversas fiadas de Pádraic Súilleabháin. Simples assim.
Depois de Siobhan, outros moradores de Inisherin tentam remediar a situação sem sucesso. Até o padre (David Pearse) entra em cena e não é bem-sucedido em restabelecer a união dos velhos companheiros. Alguns preferem consolar Pádraic. Outros optam por lhe fazer companhia. O candidato a novo “melhor amigo” do criador de ovelhas é Dominic Kearney (Barry Keoghan), um rapaz solitário, melancólico e com sérios problemas de relacionamento. Aproveitando-se para criar um laço de amizade com Pádraic, Dominic começa a aconselhá-lo sobre o que fazer em relação à postura estranha do músico.
O problema é que Colm está realmente irredutível na decisão tomada. Mesmo assim, Pádraic insiste em conversar com o antigo amigo e quer a todo custo retomar a velha camaradagem. Vendo que não terá sossego, Colm Doherty resolve radicalizar. Sem alternativa, ele faz uma ameaça sinistra para Pádraic Súilleabháin. Toda vez que o criador de ovelhas voltar a falar com ele, o músico simplesmente arrancará um dedo da mão e ofertará de presente para o sujeito sem noção que insiste em conversar. Será que a companhia de Pádraic é tão repugnante que mereça uma ação tão radical quanto aquela? E Colm terá coragem de levar à sério a ameaça de autoimolação?!
O fato é que a trama chega a um impasse. Pádraic Súilleabháin não se contentará em viver sem o contato próximo com o melhor amigo. Por sua vez, Colm Doherty não aceitará de jeito nenhum retomar a amizade nem voltar a manter a mínima interação com alguém tão estúpido. E ninguém ao redor da dupla parece conseguir fazê-los mudar de ideia. O conflito com jeitão de humor nonsense e de paródia de costumes está armado. O que irá surpreender a plateia é para onde essa história caminhará. Pouco a pouco, o tom de comédia existencialista dá lugar para um drama psicológico dos mais aterrorizantes, ácidos e, por que não, violento. Exatamente por isso, não é errado enxergarmos esta produção como uma tragicomédia.
Com aproximadamente duas horas de duração, “Os Banshees de Inisherin” é uma narrativa histórica com forte conotação filosófica e política. Para compreender a evolução do enredo, o comportamento das personagens e a dinâmica do conflito, o público precisa olhar a trama pela perspectiva da paródia e, principalmente, da alegoria. Sim, temos aqui uma história de certa forma alegórica. Em outras palavras, a maior força do roteiro está no subtexto (repito: de ordem existencialista e ideológica) e não na camada externa dos acontecimentos (que parecem banais e até mesmo sem lógica à primeira vista). Daí a riqueza e a profundidade do filme. Se você não mergulhar no que está escrito nas entrelinhas, na certa não achará este longa-metragem tão interessante. Se conseguir se aprofundar, aí ele se descortinará de um jeito impecável aos seus olhos.
Você pode me perguntar: mas afinal de contas, do que fala esse longa-metragem propriamente dito, hein?! O conflito (no caso, a vontade de Colm Doherty em encerrar abruptamente a amizade com Pádraic Súilleabháin) tem várias interpretações possíveis. Várias!!! Atire a primeira pedra quem não cortou ou não quis cortar relações com pessoas próximas com visões políticas opostas e/ou com atitudes corrosivas ao bem-estar coletivo. Tenho amigos e amigas que foram simplesmente expelidos do grupo de convívio por causa, por exemplo, de visões negacionistas na época da pandemia da Covid-19 e de crenças preconceituosas alimentadas por extremistas nas redes sociais (que de sociais, convenhamos, não têm nada!). Sei que é polêmica essa questão do cancelamento, mas ela está aí. Fazer o quê?!
Atire a segunda pedra quem nunca se questionou se aquele(a) amigo(a), irmão/irmã, namorado(a), companheiro(a) ou colega de profissão um tanto burrinho(a) não estava, depois de certo tempo, te jogando para baixo, fazendo tua vida regredir. Conheço um amigo muito bonzinho e legal (sem formação universitária, sem grande intelecto e com uma rotina simples e banal) que levou um pé na bunda da noiva (uma moça culta, com doutorado e com um dia a dia movimentado intelectualmente) algumas semanas antes do casamento. A justificativa que ela me deu (repare que foi para mim, um amigo dele, que ela deu explicações!) é que ela não conseguia se ver casada com alguém tão fútil e limitado cognitivamente, apesar de achá-lo bonito e divertido. Fiquei em choque. Aqui não estou colocando em debate as diferenças de classes sociais, de níveis educacionais ou de hábitos culturais. Não é isso, por favor! O que separou o casal (visto até então como perfeito aos olhos de quem estava de fora do relacionamento) pouco antes de subir ao altar é o choque cultural e de afinidade intelectual, independentemente dos preconceitos que esse assunto possa suscitar.
E, lá vamos nós de novo, atire a terceira pedra quem não conhece alguém que deixou a tranquilidade e a segurança de seu mundo (até parece letra de música do Legião Urbana....) pela ambição de progredir. Quase todos os meus colegas de faculdade deixaram suas cidades de origem e se mudaram para São Paulo com a meta de evoluir profissionalmente. Largar pessoas amadas, mudar rotinas estabelecidas e se aventurar pelo ambiente inóspito da metrópole são pré-requisitos para alguém que anseia crescer em muitas profissões.
Repare que essas são três interpretações possíveis de “Os Banshees de Inisherin”, que tive o cuidado de apresentar bem sutilmente neste post da coluna Cinema para não influenciar a visão de ninguém nem dar o spoiler do filme. Há outras possibilidades. Caberá a você, como já disse, achar a razão do comportamento aparentemente transloucado de Colm Doherty em relação ao pacato e simplório Pádraic Súilleabháin. Adoro filmes que me fazem pensar e exploram a minha (possível) inteligência. E esse longa-metragem de Martin McDonagh faz exatamente isso. Ele é espetacular!!!
Além do roteiro excelente (e impecável), a ambientação ao estilo noir potencializa ainda mais a experiência cinematográfica. Note como a equipe técnica de “Os Banshees de Inisherin” construiu a fotografia do filme. Basicamente, temos duas classes de cenários e enquadramentos neste longa-metragem: o aberto (arejado e luminoso) e o fechado (claustrofóbico e escuro). O que determina qual abordagem será utilizada é o tipo de ambiente filmado. Quando as cenas acontecem na parte externa, temos o primeiro tipo de fotografia: cenários abrangentes, muita luz natural, paisagens de tirar o fôlego e enquadramentos que valorizam o gigantismo da ilha). Quando as cenas acontecem na parte interna das construções da ilha, temos o segundo tipo de fotografia: cenários apertados e pobres de mobília, pouquíssima luz natural (a escuridão domina o palco), ausência de paisagem e takes de câmera que mal enquadram as personagens. Não por acaso, temos no filme uma dicotomia entre dia (usado mais nas cenas externas) e noite (explorada mais nas cenas internas). Em outras palavras, a fotografia é um dos pontos altos desta produção anglo-irlandesa e ela demonstra com vigor as inquietações íntimas das personagens.
É verdade que o clima noir é reforçado pelas temáticas utilizadas em “Os Banshees de Inisherin”. O que prevalece nessa história são assuntos de opressão social e de violência. Não se engane com a aparente singeleza do longa-metragem nos minutos iniciais. Seu enredo irá desaguar em um mar caudaloso de dor e tragédias, causando uma forte sensação de inquietude na plateia. Por exemplo, é até difícil apontar todos os tipos de violência, crimes, atitudes eticamente questionáveis e aspectos sociais muitas vezes ocultados que a trama do filme faz questão de escancarar. Posso citar alguns dos elementos narrativos mais delicados: suicídio, assassinato, traição, autoimolação, incesto, estupro, mentira, corrupção, guerra, machismo, misoginia, bullying, etarismo, homofobia, voyeurismo, orfandade, solidão, masturbação, deficiência física e mental, fofoca, loucura, bruxaria, cultura do cancelamento, injustiça social, ameaça física, chantagem, tortura, invasão e depredação de patrimônio, abuso de autoridade etc. Já deu para ver o quão pesado é o filme, né?
Juntamente com a temática polêmica, a ambientação pesada e a exploração de vários tipos de violência, “Os Banshees de Inisherin” traz alguns componentes cênicos bem sutis que dialogam de maneira singela com o enredo. É até bonito/poético procurar (e achar) esses vários aspectos subliminares na trama. Posso apontar, para começo de citação, os animais de estimação da dupla de protagonistas. Enquanto Pádraic Súilleabháin tem um pônei (com cara, jeito e comportamento de jumento), Colm Doherty possui um cachorro. Não é preciso dizer que o jumento faz referência à burrice e o cachorro remete à lealdade. Antes que alguém me questione sobre a lealdade de Colm, é preciso olhá-la em relação à música e à sua paixão pela composição de Os Banshees de Inisherin (e não ao antigo amigo). Nesse caso, o cãozinho faz todo o sentido.
Esse é apenas um elemento que extraí da trama e que debati rapidamente com você. Há muitos outros em “Os Banshees de Inisherin”. As profissões das personagens (o fato de o protagonista ser um criador de ovelhas e o antagonista ser um músico não é por acaso), a guerra, o bar, a música, a postura da irmã de Pádraic, o fogo e os dedos da mão de Colm são componentes que dialogam por si só com o conflito apresentado. A profundidade do debate existencialista sobre a vida que levamos e o alcance da discussão sobre o tipo de amizade/relacionamento que escolhemos ter passam diretamente pela representação narrativa desses elementos simbólicos do filme. Por isso, vale um esforço extra da plateia para procurar e interpretar cada peça semiótica deixada por McDonagh.
Ainda falando na estética do longa-metragem, tive a impressão de que “Os Banshees de Inisherin” flerta o tempo inteiro com a dinâmica teatral. Será que mais alguém teve essa percepção ou só fui eu que tive, hein? Certamente, Martin McDonagh não conseguiu abandonar totalmente o dramaturgo que há dentro de si. Ainda bem! Confesso que gostei bastante dessa particularidade do filme.
O tom teatral não é parecido com o que vimos em “Dogville” (2003), clássico contemporâneo de Lars von Trier que aboliu totalmente os cenários, o figurino e os efeitos sonoros artificiais e realizou as filmagens em uma espécie de palco. Em “Os Banshees de Inisherin”, temos um tipo de produção cinematográfica aparentemente convencional. Afinal, há cenários, cuidado com a fotografia, investimento no figurino, trilha sonora e mudança de set de filmagem. Até aí nada de novo no Reino de Abrantes. A novidade está na maneira como as cenas foram captadas e, principalmente, como são apresentadas ao público. Com poucos cortes de câmera, com a priorização dos diálogos à ação das personagens, com pouquíssimas figuras em cena e com o foco na expressividade corporal (facial e gestual) dos atores e das atrizes, elementos tipicamente teatrais, a sensação é de estarmos acompanhando mais uma peça cênica e menos um filme. Incrível, né?
Considerando o caráter teatral de “Os Banshees de Inisherin”, algo que ajudou sensivelmente na excelência desta produção foi a atuação impecável do elenco. Não é errado afirmar que todos (eu disse TODOS!!!) os atores e atrizes deram show de interpretação. O resultado é que quatro deles concorrem à estatueta do Oscar em 2023: Colin Farrell (melhor ator), Kerry Condon (melhor atriz coadjuvante) e Brendan Gleeson e Barry Keoghan (melhores atores coadjuvantes).
Curiosamente, não foi apenas o elenco principal que conseguiu roubar as cenas toda vez em que aparecia na tela. A equipe de apoio também foi muitíssimo bem. Destaque para Gary Lydon (o policial cruel), David Pearse (o padre vacilante), Pat Shortt (o dono do pub local), Sheila Flitton (a bruxa) e Bríd Ni Neachtain (a fofoqueira profissional da ilha). Como estamos falando de uma história alegórica, era importante que cada personagem extrapolasse suas ações individuais e representasse um tipo popular. E eles conseguiram fazer isso com louvor.
Confira, a seguir, o trailer legendado de “Os Banshees de Inisherin” (The Banshees of Inisherin: 2022):
Por tudo isso, reafirmo minha torcida por “Os Banshees de Inisherin” no próximo domingo. Sei que meu gosto cinematográfico é distinto ao do júri da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles. E também sei que “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” reúne todas as condições para sair consagrado da cerimônia como a melhor produção da temporada passada (ele é outro filmão!!!). Todavia, um dia a minha sina em relação ao Oscar terá que acabar. Vai que em 2023 acontece o milagre que tanto espero, hein? Aguardemos a abertura dos envelopes, ladies and gentlemen. A esperança é a última que morre, como já sabia a boceta de Pandora.
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