Em cartaz nos cinemas desde 23 de novembro, o longa-metragem do experiente cineasta britânico apresenta o drama de uma figura história polêmica que foi consumida pela própria ambição.
Estou vivendo uma fase de total imersão no cinema argentino. Toda semana assisto a um filme contemporâneo nas salas de exibição de Buenos Aires e vejo uma produção clássica nas plataformas de streaming. Inclusive, já andei comentando algumas das boas novidades da sétima arte dos hermanos aqui na coluna Cinema (e da literatura argentina na coluna Livros – Crítica Literária). Por que estou fazendo esse mergulho nas produções audiovisuais dos nossos vizinhos à beira da loucura mileísta (não confundir com milenarismo nem com mineirismo)?!
Em primeiro lugar porque estamos falando da melhor escola cinematográfica da América Latina. Depois, são títulos espetaculares, que agradam em cheio os paladares do público mais exigente (ou seja, dos leitores do Bonas Histórias). E, por fim, para treinar o meu ainda cambaleante espanhol portenho. No caso, o meu curso idiomático é 100% prático e está sendo realizado nas salas de cinema (mais barato do que pagar escolas de idioma), ouvindo conversas nas ruas e no transporte público (ah se Dona Júlia soubesse disso!) e puxando prosa com as comensais do Mostaza devidamente trajadas com o cativante fardamento da Policia de la Ciudad (beso, Paula).
Contudo, no finalzinho de novembro, interrompi momentaneamente a overdose de cinema argentino por uma ótima causa. Fui conferir o lançamento de “Napoleão” (Napoleon: 2023), o novo épico de Ridley Scott que chegou causando barulho nas telonas mundo à fora. Protagonizado por Joaquin Phoenix e roteirizado por David Scarpa, a saga do corso que foi de simples oficial da artilharia a imperador francês entre o final do século XVIII e o início do século XIX ganhou, enfim, uma superprodução hollywoodiana. Vale lembrar que a ideia de produzir a cinebiografia de Napoleão Bonaparte já tinha sido ventilada algumas vezes no cinema norte-americano. Figuras do quilate de Stanley Kubrick (o maior de todos, segundo Franthiesco Ballerini) e Steven Spielberg (o maior de todos, segundo os extraterrestres cinematográficos infantojuvenis) tentaram, mas não conseguiram rodar. Só agora essa história foi para frente e se materializou.
Orçado em US$ 200 milhões, “Napoleão” é o filme mais ambicioso (e caro) de Ridley Scott em duas décadas. O diretor é famoso por produzir épicos, como “1492 – A Conquista do Paraíso” (1492 – Conquest of Paradise: 1992), “Gladiador” (Gladiator: 2000), “Êxodo: Deuses e Reis” (Exodus – Gods and Kings: 2014), ficções científicas, como “Alien, o Oitavo Passageiro” (Alien: 1979), "Blade Runner, o Caçador de Androides" (Blade Runner: 1982) e “Perdido em Marte” (The Martian: 2015), e suspenses dramáticos, como “Thelma e Louise” (Thelma and Louise: 1991), “Hannibal” (2001) e “Os Vigaristas” (Matchstick Men: 2003). Se você quiser, dá ainda para colocar nessa lista classificatória algumas aventuras policiais, mas não acho essa a parte mais rica do trabalho do cineasta.
O mais legal é que ele segue ativo e operante aos 86 anos. No ano retrasado, por exemplo, Scott dirigiu e lançou dois longas-metragens: “Casa Gucci” (House of Gucci: 2021) e “O Último Duelo” (The Last Duel: 2021). Ou seja, ele tem fôlego de um garoto! Confesso que sou fã do cinema de Ridley Scott desde os tempos da faculdade de Comunicação Social na ESPM no início dos anos 2000 (ESPM maravilhosa/ Cheia de tantos As/ ESPM maravilhosa/ A melhor escola do Brasil). João Carlos, o professor de Semiótica (abraço, Joca!), dividiu a sala em grupos e cada um tinha que analisar a cinematografia de um importante diretor. O nosso grupo ficou incumbindo de estudar os filmes justamente de Scott.
Assim, durante algumas tardes na Vila Mariana, assistimos (eu e os inesquecíveis Adriano, André, Íris e Pedro Francisco) a “Alien, o Oitavo Passageiro”, "Blade Runner, o Caçador de Androides", “Thelma e Louise”, “Até o Limite da Honra” (G.I. Jane: 1997), “Chuva Negra” (Black Rain: 1989), “A Lenda” (Legend: 1985) e “Perigo na Noite” (Someone to Watch Over Me: 1987). Sim, há cursos de graduação em que os alunos criam anúncios publicitários, veem filmes antigos, produzem vídeos e passeiam pela cidade tirando fotos. De qualquer forma, nascia ali minha admiração pelo trabalho do cineasta britânico e boa parte da minha base conceitual para duas décadas mais tarde desenvolver a coluna Cinema no Bonas Histórias.
Atualmente, Ridley Scott é uma das lendas vivas do cinema contemporâneo. Contudo, há muito tempo não emplaca um grande sucesso com capacidade para abalar os alicerces da sétima arte. Seus principais títulos são das décadas de 1980 e 1990 (aqueles que assisti com a turminha da ESPM). Talvez seu último blockbuster tenha sido “Gladiador”, a inesquecível aventura histórica protagonizada por Russell Crowe no papel de Maximus Decimus Meridius, o poderoso general romano que do dia para a noite se tornou prisioneiro e, como o próprio título indica, gladiador. Não por acaso, Scott está neste momento trabalhando na continuação do épico ambientado no Império Romano. “Gladiador 2” (Gladiator II: 2024) está previsto para chegar aos cinemas em novembro do próximo ano (mas não trará, acredite, nem Maximus no enredo nem Crowe no elenco).
Em uma espécie de tentativa obstinada de reviver seu auge artístico, o cineasta britânico traz antes de “Gladiador 2” a cinebiografia de Napoleão Bonaparte, esse sim uma personagem real (diferentemente do que muita gente acredita, Maximus é uma figura ficcional). Produzido por seu próprio estúdio, a Scott Free Productions (em sociedade com o irmão, Tony Scott) e em parceria com Apple Studios, “Napoleão” foi filmado entre fevereiro e junho de 2022 na Inglaterra.
Usando algo que Ridley Scott inventou (ou no pior dos casos disseminou na cultura cinematográfica internacional) no início da década de 1980 com “Blade Runner”, seu novo filme já foi gravado para ter duas versões: a comercial e a do diretor. Assim, o longa-metragem que chega agora aos cinemas com distribuição pela Sony Pictures é a edição comercial e menor (mesmo com mais de duas horas e meia de extensão!). A edição completa (com quatro horas de duração) e com a cara do cineasta será lançada só no próximo ano em uma série no streaming pela Apple TV+. Daí a entrada da Apple Studios na empreitada.
No elenco de “Napoleão”, chamam atenção Joaquin Phoenix, Oscar de melhor ator em 2020 com a interpretação irretocável do inimigo de Batman em “Coringa” (Joker: 2019), e Vanessa Kirby, mais conhecida pelo papel da Princesa Margaret na série “The Crown” (2016-2023). A dupla dá show de interpretação e atrai todos os olhares do público. Até porque, confesso envergonhado, não (re)conheci nenhum outro integrante do elenco. Para não cometer injustiças, só achei, em rápidas passagens, o francês Tahar Rahim, de “Samba” (2014) e “O Profeta” (In Prophète: 2009). Grande parte dos coadjuvantes do novo filme de Ridley Scott é formada por atores e atrizes britânicos de produções locais do cinema e da televisão.
O enredo de “Napoleão” começa em outubro de 1793. Quatro anos e meio após a eclosão da Revolução Francesa que destituiu a família real do poder, a Rainha Maria Antonieta (interpretada pela irlandesa Catherine Walker) é levada à guilhotina em praça pública para delírio sádico da faminta população parisiense. Maria Antonieta ficou famosa pela frase: “Se o povo tem fome e não tem pão, que coma brioches”. A morte da rainha que vivia no mundo da lua é um dos momentos mais catárticos e violentos da revolução. Não por acaso, a primavera de 1793 e o verão de 1793/1794 são chamados de Período do Terror. As prisões e os assassinatos em praça pública comandados pelo impiedoso Robespierre trazem mais instabilidade a já combalida e empobrecida nação.
Como consequência da fraqueza política, a França se torna alvo dos países vizinhos, que encontram uma excelente oportunidade para invadi-la e se apropriar de parte do seu território. Porém, a atuação impecável e as estratégias inovadoras de um militar nascido na Córsega impedem a chegada dos exércitos estrangeiros à Paris. Napoleão Bonaparte (Joaquin Phoenix) se torna uma figura extremamente popular entre os franceses ao comandar vitórias improváveis no campo de batalha. Assim, ele vai galgando posições nas Forças Armadas até chegar ao posto de general. Se no início suas ações eram apenas para proteger a França, com o êxito crescente e a empolgação pelo sucesso retumbante o general Bonaparte passa a fazer incursões ao exterior. As campanhas vitoriosas pela Europa e pelo Egito lhe conferem o status de unanimidade francesa.
Diante da tragédia política e da confusão na Assembleia Constituinte durante a Revolução Francesa, Napoleão Bonaparte aproveita sua fama e dá um golpe militar em novembro de 1799. A partir daí, ele se torna cônsul e estabelece uma ditadura na França. Uma vez tendo tomado o poder da nação, a ambição de Bonaparte segue crescendo. O que mais ele precisa? As respostas são óbvias: se tornar rei ou imperador francês; dominar a Europa e quem sabe o mundo inteiro com o avanço de suas tropas; e conquistar uma mulher para ser sua esposa.
Curiosamente, a empreitada que parece mais difícil é a última, já que Napoleão é um sujeito mirrado, sem trato social, calado e sem muito jeito com as integrantes do sexo oposto. Na verdade, ele parece um peixe fora d´água sempre que não está em combate. Se junto à sua tropa no front ele é um general perfeito, no convívio social não passa de um paspalho melancólico, introspectivo, sem graça e enfadonho.
A esperança de Napoleão Bonaparte em conseguir uma companhia feminina fixa surge quando ele conhece Josephine (Vanessa Kirby). A moça bonita e elegante era de uma família nobre que foi levada à miséria após a Revolução Francesa. O interesse do ambicioso militar e político é visto por Josephine como sua oportunidade de reascensão social. Assim, os dois se casam, mesmo com a pouca (ou nenhuma) afinidade pessoal.
O problema é que nos primeiros anos de matrimônio, Napoleão mostra-se um marido pouco carinhoso, comunicativo e participativo, mesmo amando incontestavelmente a esposa. O que melhor configura esse descompasso do casal é as cenas de sexo e as tentativas de engatar um diálogo mínimo. O ato sexual é frio e mecânico, como se fosse uma obrigação para ela e o alívio de uma necessidade biológico por parte dele. Quando tentam engatar uma conversa simples, as complicações aumentam. Não há clima nem afinidade para que eles comecem e mantenham um bate-papo corriqueiro.
Sem o carinho do companheiro, que passa a maior parte do tempo em campanhas militares no exterior, Josephine logo arruma amantes, que além de sexo lhe proporcionam afeto, intimidade e cumplicidade. Napoleão Bonaparte descobre as traições da esposa das piores maneiras possíveis. Primeiramente, ele é informado por um colega de batalhão dos boatos sobre as puladas de cerca de Josephine. Depois, ao regressar para Paris, lê nas manchetes dos jornais os detalhes da picante vida sexual da mulher com seus amantes. Sim, senhores e senhoras, o povão já está comentando o par de chifres que o mandachuva francês passou a ostentar (será que é por isso que ele não tira aquele chapéu ridículo por nada nesse mundo?!). Decepcionado com a parceira, Napoleão expulsa Josephine de casa. Porém, ela perde perdão e retorna ao lar.
A partir daí, o relacionamento do casal melhora. Pouco a pouco, os dois criam afinidades e sentimentos mútuos. O sexo já não é superficial e surgem, acredite se quiser, assuntos para longas conversas. Ele continua cada vez mais apaixonado e dependente dela. Se para o mundo Napoleão Bonaparte é uma figura poderosa e destemida, para Josephine o marido não passa de um bobão desajeitado e depressivo que depende da esposa para sobreviver.
Com a coroação de ambos como imperador e imperatriz da França, surge uma nova crise no casamento. Josephine não consegue engravidar para desespero de Napoleão, que quer um herdeiro. A harmonia conjugal desaparece e a tensão passa a predominar dentro de casa. A pressão se torna insuportável quando Bonaparte ameaça a esposa: se ela não engravidar até tal data, ele será obrigado a pedir a separação. Sabendo que o marido não vive sem ela, a ameaça parece um tanto infundada.
Afinal de contas, teria mesmo ele coragem de em nome da vaidade masculina interromper o relacionamento de vários anos com a mulher que tanto ama e o apoia? Para responder a tal questão, é preciso avaliar dois aspectos: a intensidade do amor de Bonaparte por Josephine e o tamanho de sua ambição por poder. O que será que pende mais na balança da alma do imperador francês, hein?! É essa a dúvida que o filme de Ridley Scott se propõe a debater e, por consequência, responder.
O primeiro elemento de “Napoleão” que precisamos debater aqui na coluna Cinema é a proposta do longa-metragem. Napoleão Bonaparte é uma figura polêmica por natureza e com múltiplas interpretações possíveis. Ele pode ser visto como o militar genial que revolucionou os confrontos bélicos na virada do século XVIII para o XIX. Mas pode ser encarado como o estrategista que não soube a hora de parar os avanços das tropas e ultrapassou o ponto em que o fracasso era iminente. Há quem o enxergue como o líder que unificou a França após seu período mais turbulento. E há quem o tenha como aquele que acabou com os ideais da Revolução Francesa para o retorno da Monarquia Absolutista.
Bonaparte também pode ser olhado como o mais poderoso político europeu da Idade Moderna ou como aquele que aglutinou seus inimigos em prol da destruição do expansionismo francês. Seria um visionário à frente do seu tempo ou só um paspalhão que era um zero à esquerda no traquejo social. E temos ainda a possibilidade de tê-lo como o marido apaixonado que realmente amava sua mulher ou o homem que tinha sérias dificuldades para demonstrar afeto e carinho.
Diante dessa concha de retalhos absurda (um prato cheio para cineastas e escritores), qual foi a opção de dicotomia que Ridley Scott escolheu para retratar na telona? Sabiamente, a última. No filme, assistimos ao conflito do relacionamento de Napoleão e Josephine. O restante da história do longa-metragem serve apenas como base para entendermos a personalidade ambiciosa e conflitante do monarca francês e sua postura dúbia com a esposa. Inclusive, as cenas de guerra e as ações no campo de batalha são meramente secundárias na trama. Por isso, não há tanta preocupação em explicar os acontecimentos geopolíticos e os detalhes no front (justamente uma das falhas de “Napoleão”, como veremos mais à frente neste post do Bonas Histórias). A parte bélica da produção cinematográfica é apenas para deleite visual da plateia.
Curiosamente, o aspecto sentimental da vida de Bonaparte está muito bem documentado. Os historiadores têm boa parte das cartas trocadas pelo imperador com a imperatriz da França ao longo dos anos e conseguem compreender o que se passava realmente entre eles. Foi nesse ponto específico da biografia de Napoleão Bonaparte que Ridley Scott mergulhou (não dava para retratar todas as facetas da vida de alguém tão plural em um longa-metragem).
Ou seja, o filme é mais um drama sentimental do que um épico de aventura. E não é que isso se mostrou extremamente positivo no final das contas! Adorei ver o lado mais humano, frágil e contraditório do homem que era temido na Europa inteira. No fundo, ele só era, parodiando a mais bela canção de Aldir Blanc e Cristóvão Bastos que conheci na voz de Nana Caymmi (que merece uma análise na coluna Músicas), “uma eterna criança que não soube amadurecer”. Ou em outra menção musical explícita, dessa vez usando a composição de Leoni que se tornou famosa com o Kid Abelha: “Garotos não resistem aos seus mistérios/ Garotos nunca dizem não/ Garotos como eu sempre tão espertos/ perto de uma mulher são só garotos/ Perto de uma mulher são só garotos”.
Com a proposta clara de ser um drama psicológico (e não uma ação visceral à la heróis da Marvel e da D.C.), a escalação de Joaquin Phoenix e Vanessa Kirby como casal de protagonistas foi acertadíssima. A sensação é que eles nasceram para interpretar tipos melancólicos, desesperados e depressivos. Phoenix, vale uma recordação rápida, arrebentou na pele de homens carentes e atordoados em “Ela” (Her: 2014), “Homem Irracional” (Irrational Man: 2015) e “Coringa”. Juro que ninguém tem uma cara mais maníaco-depressiva do que ele. Basta Joaquin Phoenix, transmutado em seu papel ficcional, se voltar para a câmera e encarar em silêncio e de frente a plateia para vermos a aridez interna de suas personagens. Quem for fã do ator norte-americano (e do cineasta Todd Phillips), prepare-se: em 2024 chegará aos cinemas “Coringa 2”.
E se você acha que Kirby seria eclipsada pelo talento absurdo do companheiro de filme, saiba que ela não só apresentou brilho próprio em “Napoleão” como em muitos momentos roubou a cena. Vanessa Kirby foi tão bem que não seria nenhum absurdo tê-la entre as indicadas ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante na próxima cerimônia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles. Considerei sua Josephine simplesmente irretocável. Além de bela, inteligente e poderosa (ao ponto de ter colocado ninguém menos do que Napoleão Bonaparte no bolso), a imperatriz francesa ainda possuía doses de ousadia, humor e zombaria. Que Scarlett Johansson, Lou de Laâge, China Suárez e Isis Valverde me perdoem, mas é impossível não nos apaixonar por uma mulher dessas.
Outro aspecto que gostei bastante foi de assistir em “Napoleão” as cenas mais emblemáticas (ou folclóricas) do protagonista e do seu contexto histórico. Estão no longa-metragem a violência insana da Revolução Francesa, a cabeça de Maria Antonieta rolando da guilhotina, as discussões sem fim na Assembleia Nacional Constituinte (e dale embate entre girondinos e jacobinos), o Bloqueio Continental (estratégia inglesa para acabar com os planos de expansão territorial de Bonaparte) e a desastrada campanha militar na Rússia (o famoso General Inverno e a estratégia russa da Terra Arrasada).
Também são retratados a ousadia do corso em tirar a coroa francesa das mãos do papa para coroar a si mesmo, a campanha no Egito, o conflito de Waterloo, os dois exílios em ilhas distantes, o discurso do casal imperial no momento do divórcio, a fuga de Bonaparte da Ilha de Elba, a lábia do antigo líder ao convencer os soldados franceses quando rumava para Paris e a paixão do general pelo seu cavalo branco (que era branco mesmo?!). Convenhamos: essas passagens são marcantes para os fãs de História e não poderiam ficar de fora de uma boa cinebiografia napoleônica, não é mesmo?
Em relação aos aspectos técnicos do filme de Ridley Scott (acho que só falei de sua linha narrativa até agora, né?), meus destaques positivos vão para: (1) a trilha sonora; (2) o figurino e o cenário; (3) o impacto visual das cenas de combate; e (4) o contraste das luzes dependendo do tipo de ambiente e de cena.
Como já é tradição nos longas-metragens de Scott (lembre-se de “Gladiador”), “Napoleão” tem uma trilha sonora impecável. Esse é um filme para ser apreciado com os ouvidos bem abertos. O compositor responsável pelas 15 músicas originais e instrumentais do filme é o premiado Martin Phipps, de “The Crown” e “A Dama Dourada” (Woman In Gold: 2015). No que se refere às demais canções comerciais, temos dos famosos Jacques Gautier e Édith Piaf aos intérpretes de música clássica Víkingur Ólafsson e Franco Mezzena & Patrizia Bettotti.
Os figurinos e os cenários são um caso à parte. Na minha visão, eles estão perfeitos e criam a atmosfera necessária para uma trama de época. Em alguns momentos, a própria roupa de Napoleão ganha um inusitado destaque na história, principalmente quando ele não se separa do uniforme militar e do chapéu de general, tornando-o uma figura ainda mais caricata e deprimente fora dos campos de batalha.
Para ser sincero neste meu relato, achei o figurino e o cenário quase perfeitos. O único escorregão da produção foi vestir Joaquin Phoenix no momento da coroação de Napoleão como Commodus, o Imperador Romano que era o inimigo de Maximus em “O Gladiador”. As semelhanças se tornam ainda maiores porque o ator que interpretou os dois papéis é o mesmo (ou você não se lembrava de Phoenix como o Imperador Romano que odiava a personagem de Russell Crowe, hein?). Juro que pensei ao ver essa cena no cinema: será que editaram um take de “Gladiador” em “Napoleão”?! Achei desnecessária essa semelhança, até porque o novo filme de Scott se passa entre os séculos XVIII e XIX e o anterior ocorria na Idade Antiga.
E o que falar do impacto visual das cenas de combate em “Napoleão”?! Elas são de tirar o fôlego da plateia na sala de cinema. Se faltou certa contextualização do que se passa na telona, conforme já mencionei (e que vou explorar mais nos próximos parágrafos), não se economizou na exuberância audiovisual. A sensação é de estarmos acompanhando realmente vários episódios de guerra clássica. Além da inegável beleza estética, há muita violência, personagens simultaneamente e ação. Se você não gostar dos efeitos visuais dessa parte do filme, você tem sérios problemas de ordem estética (ou simplesmente um péssimo gosto cinematográfico).
Para corroborar com a tese de que Ridley Scott se mantém como um excelente cineasta, repare no contraste de luzes nos momentos em que Bonaparte está guerreando e quando ele está no âmbito doméstico. A tonalidade indica bastante da personalidade do protagonista de “Napoleão” nesses dois ambientes. Nas tomadas externas junto aos batalhões de soldados, as imagens adquirem tons claros (predomínio do cinza claro e do branco) e pastéis. Essa pegada mais clássica mostra o quão à vontade (e, de certa maneira, sereno) Napoleão Bonaparte fica na hora de enfrentar os inimigos. Aí quando ele vai para casa ou para os palácios de Paris, a escuridão predomina. Nesse instante, a mescla de claro e escuro se acentua, o que mostra que a personagem não está feliz nem tranquila. Só quando Napoleão está apaixonado por Josephine ou quando é coroado Imperador surgem tons de cores mais quentes (amarelo e vermelho, por exemplo).
Falemos agora dos pontos negativos do filme “Napoleão”, que não são poucos. Começo mencionando a sua extensão. O longa-metragem (que deveria ser classificado como um muito-longa-metragem) tem quase 2 horas e 40 minutos de duração. Não sei se eu estou ficando velho ou se minha paciência está se esgotando rapidamente (ou as duas coisas juntas!), mas não fico mais tão à vontade ao permanecer tanto tempo em uma sessão de cinema (e imaginar que eu era daqueles que curtia o Noitão no Cine Belas Artes, lembra da tradicional sessão paulistana de três filmes em seguida?). Chega uma hora que cansa o corpo e a mente. Não dava para Ridley Scott ter enxugado à trama para 2 horas? Acho que dava. Só precisava de um pouquinho de coragem no trabalho de edição.
Até porque, como já falei, “Napoleão” foi concebido para ser ao mesmo tempo um longa-metragem e uma série de streaming. A Apple Studios entrou com uma parte considerável do orçamento de produção (só assim foi possível angariar os US$ 200 milhões do orçamento) em troca do direito de lançar a versão estendida do filme na Apple TV+ em 2024. Na transmissão realizada no conforto do lar e com a narrativa dividida em vários capítulos, aí sim dá para aumentar o tempo de duração da trama sem incomodar o público. Por isso mesmo, reafirmo: dava perfeitamente para ter reduzido a extensão da versão enviada às salas de cinema e ter deixado a versão maior (com quase 4 horas de duração) para a série televisiva.
Prova do que estou dizendo é que há algumas partes da sessão que se tornam cansativas e sonolentas. Não tenho vergonha de dizer que em vários momentos dei aquelas pescadas constrangedoras (vontade-de-domir-agora-não-fique-acordado-de-novo-não-fique-acordado-Ricardo-que-sono-é-esse-meu-Deus-acordei-onde-estou). E olhe que o meu sono está em dia (meus vizinhos portenhos são menos barulhentos do que os do Parque São Domingos, em São Paulo – abração, Mauro, Alaíde e molecada!). Ao menos dessa vez não ouvi roncos nas poltronas ao lado nem sofri com a baba da companheira de sessão, perrengues vividos, acredite se quiser, em “Oppenheimer” (2023) em agosto. Seriam os espectadores argentinos mais polidos do que os cinéfilos paulistanos?! Juro que não sei.
Outra questão importante que preciso comentar com os leitores da coluna Cinema é sobre as gritantes diferenças entre as passagens históricas mencionadas na trama ficcional e as passagens históricas reais. Para ser honesto no meu comentário, não foram muitos os equívocos do ponto de vista da História. O que me incomodou foi que eles beiram o absurdo e poderiam muito bem ter sido adaptados sem comprometer o enredo cinematográfico.
Vejamos a incursão de Napoleão pelo Egito. Ele e sua tropa jamais lançaram projéteis de canhão nas pirâmides nem dispararam contra o nariz da Esfinge. Então por que Ridley Scott filmou essas cenas tão bisonhas? Por puro prazer estético com a imagem que renderia na telona. Novamente: achei desnecessária essa invenção descabida da trama, ainda mais porque o general francês amava a cultura egípcia e enviou uma equipe para estudar aquela civilização da Antiguidade. É o tipo de cena que se saísse do longa-metragem contribuiria mais do que mantê-lo.
Outra passagem delicada foi no comecinho do filme, quando Bonaparte assiste in loco à execução de Maria Antonieta. Reconheço que a cena é ótima (e bastante forte!). Porém, essa passagem não é real. Napoleão não estava presente na praça pública na capital francesa naquele dia e sim em ação militar fora de Paris. Acredito que dava muito bem, com uma boa dose de criatividade no roteiro, para mostrar a relação entre o impacto da morte da rainha e o caos da Revolução Francesa com a ascensão político-militar de Napoleão.
Ainda na seara dos elementos históricos, o filme de Ridley Scott não aborda diretamente em nenhum momento o tamanho reduzido de seu protagonista (as menções são meramente sutis). Napoleão Bonaparte real tinha apenas 1,60 metro de altura. Ou seja, estava mais próximo do tamanho de um anão do que de um homem com estatura comum. O fato de ser um tampinha (naquela época não havia bullying – por isso posso chamá-lo de tampinha sem problema) sempre suscitou incontáveis teorias psicológicas. Uma das mais famosas é que sua ambição desmedida pelo poder e pela conquista territorial era para suprir a inferioridade corporal (como se as pessoas altas não tivessem esse desvio de personalidade!).
Acho que o filme “Napoleão” não precisava entrar nas suposições psicológicas, mas podia muito bem ter retratado um general e imperador baixinho (ao melhor estilo Baixinho da Kaiser, personagem ícone dos comerciais de cerveja que fez muito sucesso nas décadas de 1980 e 1990). E não é isso definitivamente o que ocorre no longa-metragem. A menção ao tamanho reduzido de Bonaparte aparece bem pontualmente: na hora de subir ao cavalo, o corso precisa de um suporte; na hora de dançar com Josephine, ele olha para cima pois ela é mais alta; e mania de sempre usar o chapéu militar, o que o faz parecer um pouco mais alto (ou menos baixo). Como consequência, muitos espectadores vão sair da sessão de cinema sem notar que a polêmica figura retratada tinha pouco mais de 1,5 metro de altura. Fazer a cinebiografia de Napoleão Bonaparte e não mencionar tal peculiaridade física é como contar a história de Jô Soares e não falar que ele era gordo.
Por essa perspectiva anatômica, a escolha de Joaquin Phoenix como protagonista do filme me soou um tanto estranha, por maior que seja seu talento interpretativo (desculpe-me o trocadilho involuntário). Já que entramos no assunto de incompatibilidade entre ficção e realidade, o que falar, então, de um elenco inteiro de franceses interpretado por atores e atrizes de origem britânica e que só falam inglês em cena, hein? A contradição é absurda. Para quem não se recorda, França e Inglaterra são rivais históricos no cenário geopolítico e possuem uma longa lista de conflitos armados. Não à toa, a produção de Ridley Scott sofreu intensas críticas entre os franceses, que não aceitaram o olhar estrangeiro a uma figura nacional que ainda possui a aura de mito político acima de qualquer ideologia.
Imagine você filmar uma história real só com elementos da nação inimiga ou com aspectos de uma cultura totalmente distinta! É o que temos em “Napoleão”. Você consegue conceber a história de Josef Stalin durante a Guerra Fria sendo retratada no cinema por atores norte-americanos e falando inglês? Ou o filme sobre um famoso imperador japonês sendo protagonizado por um ator mexicano falando espanhol? Ou a façanha da seleção uruguaia de futebol com o título da Copa do Mundo de 1950 sendo encenada nas telonas por brasileiros falando português? Ou recriar a saga de Fidel Castro na Cuba comunista por um elenco alemão? Vamos combinar que no mínimo fica estranho. Muito estranho!
Outro aspecto que merece minha menção crítica é as cenas de guerra. Como já disse neste post do Bonas Histórias, elas são espetaculares. Isso não dá para contestar. Scott sabe muito bem filmar esse tipo de ação e o resultado é normalmente impactante no quesito estético. O problema é que a preocupação visual acabou deixando a contextualização narrativa em segundo plano. Em outras palavras, se você não souber previamente os motivos e as consequências de cada vitória e de cada derrota bélica de Napoleão Bonaparte, poderá ficar confuso durante a sessão de cinema.
Dessa maneira, o longa-metragem acaba pecando pelo que chamo de contradição conceitual. “Napoleão” exige certo conhecimento histórico prévio da plateia, mas não fornece nenhuma novidade nesse quesito para o público com maior bagagem de informação. A sensação é (falo como alguém que adora História e sabe bastante coisa a respeito) de assistir a um vale a pena ver de novo: com vários clichês. Já para o segmento dos espectadores ávidos por conhecer as peripécias de Bonaparte nos campos de batalha, que poderiam se encantar com tais passagens, não há um maior detalhamento do que se passa no front, o que torna as ações um tanto confusas. Se você não souber de antemão o que irá acontecer, certamente não enxergará as diferenças nos exércitos durante os combates e não saberá quem venceu quem nos duelos.
Então quer dizer que “Napoleão” é um filme ruim? Não diria isso. O que posso falar é que depende de sua expectativa. Se você entrar na sala de cinema esperando um drama psicológico profundo e com pegada existencialista, certamente sairá bastante satisfeito da experiência cinematográfica. Afinal, Ridley Scott mostra o lado humano (e falível) de Bonaparte. Quem era o homem melancólico, sem amigos e tedioso que ceifou tudo (inclusive o amor da mulher por quem sempre fora apaixonado) e todos (a vida de três milhões de pessoas) em nome da grandeza militar?
Por outro lado, se você esperar um épico com muita ação como “Gladiador”, reviravoltas de tirar o fôlego como “Jojo Rabbit” (2019), suspense entre soldados como “Nada de Novo no Front” (Im Westen Nichts Neues: 2022) e cenas eletrizantes de combate como “1917” (2019), aí a chance de ter uma frustração é muito maior. Assim, meu conselho é: assista ao novo longa-metragem de Ridley Scott tendo em mente que ele é mais um drama introspectivo e menos uma aventura épica. Com isso em mente, as chances de decepção caem significativamente.
Confira, a seguir, o trailer de “Napoleão” (Napoleon: 2023):
De qualquer maneira, me parece que entre a versão comercial que está em cartaz nos cinemas e a versão do autor que será lançada no streaming nos próximos meses, a melhor opção é a segunda. Por que digo isso sem ter assistido ao seriado de televisão? Porque pelos cortes feitos no longa-metragem (que me pareceram muito ruins), a sensação é que a produção de Ridley Scott foi desenvolvida originalmente para ser um seriado de várias horas de duração.
Portanto, o filme com mais de duas horas e meia de duração é apenas um subproduto menor e limitado da produção do streaming. Talvez a única parte que o público perca ao não ir ao cinema é a overdose de imagens impressionantes das cenas de luta nas telonas. Aí cabe a cada espectador avaliar se esse aspecto é o mais importante na sua experiência cinematográfica.
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